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Processo nº 914/2012 Data: 31.01.2013
(Autos de recurso penal)

Assuntos : Crime de “furto” (qualificado e simples).
Valor.
In dubio pro reo.
Pena.



SUMÁRIO

1. O princípio “in dubio pro reo” identifica-se com o da “presunção da inocência do arguido” e impõe que o julgador valore sempre,em favor dele, um “non liquet”.
Perante uma situação de dúvida sobre a realidade dos factos constitutivos do crime imputado ao arguido, deve o Tribunal, em harmonia com o princípio “in dúbio pro reo”, decidir pela sua absolvição.

Constitui um princípio fundamental do processo penal com aplicação limitada à decisão (julgamento) da matéria de facto.

2. Na determinação da medida da pena, adoptou o Código Penal de Macau no seu art.º 65.º, a “Teoria da margem da liberdade”, segundo a qual, a pena concreta é fixada entre um limite mínimo e um limite máximo, determinados em função da culpa, intervindo os outros fins das penas dentro destes limites.

O relator,

______________________
José Maria Dias Azedo

Processo nº 914/2012
(Autos de recurso penal)






ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:





Relatório

1. A, arguido, com os sinais dos autos, respondeu no T.J.B., vindo a ser condenado como autor da prática em concurso real de 2 crimes de “furto (qualificado)” p. e p. pelo art. 198°, n.° 2, al. e) do C.P.M., na pena de 5 anos de prisão cada, e 1 outro de “furto (simples)”, na forma tentada, p. e p. pelo art. 197°, n.° 1 e 21° e 22° do mesmo C.P.M., na pena de 9 meses de prisão.

Em cúmulo, foi condenado na pena única de 7 anos e 9 meses de prisão, assim como no pagamento de uma indemnização de MOP$28.110,00 ao assistente dos autos; (cfr., fls. 453 a 453-v que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).

*

Do assim decidido, e porque inconformados, vieram recorrer o Exmo. Magistrado do Ministério Público e o arguido.

*

O Exmo. Magistrado do Ministério Público, apresentando as seguintes conclusões:

“1. O Tribunal a quo convolou o crime anteriormente imputado, condenando o arguido pela prática, em autoria material e na forma tentada, de um crime de furto, p. e p. pelo art.º 197º, n.º 1 do Código Penal. Este MºPº não se conformou com este ponto de vista.
2. Primeiro, em termos de organização e lógica, o crime de furto qualificado previsto no art.º 198º do Código Penal é um acto consumado e, em conjugação com o art.º 197º do Código Penal, aquele crime tem por base o crime de furto simples. Portanto, o crime de furto qualificado é aplicável quando se verifiquem circunstâncias discriminadas nos n.ºs 1 e 2 do artigo 198º do Código Penal, enquanto os n.ºs 3 e 4 do mesmo artigo são situações especiais, cuja sua existência é dependente dos n.ºs 1 e 2 do referido artigo.
3. Todavia, o crime de furto é um crime de resultado, enquanto o disposto no n.º 4 do artigo 198º do Código Penal é justamente uma disposição especial aplicada na situação em que se verifique um resultado que cause menos prejuízos aos bens jurídicos. O agente pode obter “benefício” no aludido resultado objectivo, sendo condenado pelo crime de furto simples, já que, no aspecto objectivo, o grau de violação dos bens jurídicos do direito de propriedade dos bens das vítimas é relativamente baixo.
4. No momento em que o Tribunal a quo considerou que o acto de furto qualificado abordado nesta causa era praticado na forma tentada, revelou-se que o Tribunal entendeu simultaneamente que o resultado do crime ainda não tinha sido surgido (caso contrário, o arguido seria condenado pelo cometimento, na forma consumada, do crime de furto qualificado), pelo que não é aplicável o “benefício” proveniente do resultado menos grave, ao acto de furto qualificado tentado que não tenha resultado efectivamente maléfico.
5. Conforme o sentido da letra, a “coisa furtada” consiste na coisa furtada por alguém, ou seja, coisa subtraída pelo agente. Portanto, se o caso for tentativa, como é que podemos considerar que a coisa é “furtada”? E aspecto jurídico, se o acto de furto estar em estado de tentativa, ou seja, a coisa em causa ainda não estar fora da posse do seu dono ou da área em que seja possivelmente vigiada pelo mesmo, o aludido acto não é considerado consumado, por sua vez, a coisa também não é considerada “furtada”.
6. Daí, vislumbra-se que ao crime de furto qualificado tentado não é aplicável o disposto no n.º 4 do artigo 198º do Código Penal.
7. Segundo, quanto à seguinte parte do acórdão: “tendo em conta que a acusação não descreveu concretamente as coisas que eventualmente fossem furtadas pelo arguido ao introduzir naquela moradia nem indicou os valores das mesmas”, segundo o processo n.º 9740169 do Tribunal de Segunda Instância do Porto: “Tendo sido deduzida acusação por um crime de furto qualificado, na forma tentada, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 204º, n.º 2, alínea c), 22º, 23º e 73º, todos do Código Penal, mas não se tendo indicado o valor dos objectos de que o arguido pretendia apropriar-se – que aliás não é elemento constitutivo do tipo legal de crime de furto – a determinação de tal valor só poderá ser feita em sede de julgamento, e não antes, designadamente aquando do despacho liminar do artigo”.
8. Pelo acima exposto, como o valor dos objectos, ora alvos de furto, não é o elemento constitutivo do crime de furto qualificado tentado, apesar de não ter indicado na acusação o valor dos bens que eventualmente fossem furtados pelo arguido no dia da ocorrência dos factos, o aludido valor pode ser verificado e comprovado na audiência de julgamento.
9. Conforme os dois actos de furto qualificado consumados, conjugado com as regras da experiência comum, mormente, atendendo aos alvos dos actos de furto praticados pelo arguido e ao valor dos bens geralmente encontrados no interior da moradia, bem como tendo em conta que XXX é uma moradia privada de classe superior, quanto ao presente caso (3º caso) de furto tentado, prevê-se que, depois de ter introduzido na fracção, o arguido tinha a intenção subjectiva de subtrair objectos com valor superior a 500,00 patacas.
10. À luz da análise acima exposta e das regras da experiência comum, em 13 de Abril de 2012, na altura em que o arguido praticou o acto de furto tentado, sem dúvida, estavam postos na fracção onde morava a vítima B bens com o valor superior a 500,00 patacas, pelo que se exclui a aplicação do “princípio de in dubio pro reo”.
11. Assim sendo, caso os Venerandos Juízes do T.S.I. não concordarem com a interpretação deste MºPº, isto é, aos crimes tentados não é aplicável o disposto no n.º 4 do artigo 198º do Código Penal, devem os mesmos atender a que, segundo os pontos 34 a 49 dos factos provados e a análise acima exposta, reúnem-se os elementos constitutivos do crime de furto qualificado tentado.
12. Deste modo, atendendo aos fundamentos supramencionados, com base na razão de que a acusação não descreveu concretamente as coisas alheias que eventualmente fossem furtadas pelo arguido ao praticar o acto de furto em 13 de Abril de 2012 nem indicou os valores das mesmas, bem como, segundo o princípio de in dubio pro reo, o Tribunal recorrido aplicou o disposto no art.º 198º, n.º 4 do Código Penal, convolando o crime imputado para o crime de furto previsto no art.º 197º do Código Penal, pois, esta decisão do Tribunal violou o disposto nos artigos 21º, 22º, 197º e 198º do Código Penal”.
Pede que se “julgue procedente o recurso interposto, por ter fundamentos bastantes, declarar-se que a parte da decisão, que o Tribunal a quo condenou o arguido A, pela prática, em autoria material e na forma tentada, de um crime de furto, p. e p. pelo art.º 197º, n.º 1 do Código Penal, convolando de imputado crime de furto qualificado, praticado em autoria material e na forma tentada, p. e p. pelos art.ºs 198º, n.º 2, al. e), 21º e 22º do Código Penal, padece de vício previsto no n.º 1 do artigo 400º do Código de Processo Penal, declarando nula a parte da decisão em apreço, bem como, nos termos dos artigos 21º, 22º, 197º e 198º, n.º 2, al. e) do Código Penal, condenar-se o arguido A, pela prática, em autoria material e na forma tentada, de um crime de furto qualificado”; (cfr., fls. 457 a 471-v).

*

O arguido, pugnando pela redução das penas parcelares e única; (cfr., fl.s 472 a 474).

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Admitidos os recursos, e remetidos os autos a este T.S.I., juntou o Ilustre Procurador Adjunto o seguinte douto Parecer:

“Cremos assistir razão ao M.P. no recurso por si interposto.
Face à imputação empreendida quanto ao ilícito em questão - furto qualificado, nos termos da al e) do n° 2 do art° 198°, CP, sob a forma tentada - a descrição e indicação do valor dos bens passíveis de furto não se apresentam como elementos constitutivos do tipo legal, pelo que não têm as mesmas que constar, forçosamente, do libelo acusatório, sendo que a eventual "desqualificação" do ilícito, resultante do preceituado no n° 4 da mesma norma - "valor diminuto" da coisa furtada ou a furtar - poderá e deverá resultar da discussão e prova em audiência de julgamento, até por que, como é óbvio, tal se apresenta como "elemento negativo" a favorecer as pretensões do arguido.
Por outra banda, não vemos como accionar validamente o princípio
"in dubio pro reo" em sede de qualificação e subsunção jurídicas da conduta imputada ao visado : aquele princípio releva apenas no domínio da apreciação dos factos. Na dúvida razoável sobre a prática destes, a mesma reverterá em favor do arguido.
Ora, no caso, através do externado pelo acórdão sob escrutínio, não se alcança que, minimamente, se tenha estabelecido ou tentado estabelecer factualidade que permitisse alcançar aquela dúvida àcerca da eventualidade de os bens passíveis de furto serem de valor diminuto.
O tribunal "a quo", fundado apenas na circunstância de não se terem descrito e valorado na acusação os bens passíveis de furto e estribado no aludido princípio "in dubio pro reo ", este, interligado com o previsto no referido n° 4 do art° 198°, CP, entendeu por bem convolar a tentativa de furto qualificado para tentativa de furto, o que, quanto a nós, na falta do estabelecimento de qualquer factualidade a tal concernente, não poderá deixar de configurar erro de direito, a justificar o provimento do recurso.
O mesmo não se diga relativamente ao recurso apresentado por A, já que
- não se vê que não tenham, na determinação concreta da pena ao mesmo aplicada, sido levadas em conta as circunstâncias relevantes que o devessem ser, designadamente as em seu abono, como a "confissão sincera e sem reservas" e o facto de ser primário;
- pese embora os circunstancialismos específicos relativos a cada um dos ilícitos consumados fossem diferentes, nada impedia, atentos nomeadamente os similares graus de ilicitude e culpa e interesses a proteger, que os julgadores, dentro da margem disponível, entendessem por bem aplicar similar medida concreta relativamente a cada um deles não se divisando, quer na forma de actuação, quer nos 'prejuízos causados diferenças tão substanciais que, por si, houvessem que inviabilizar medidas de pena idênticas; - finalmente, a medida concreta alcançada relativamente a cada um dos referidos ilícitos consumados, situada abaixo do limite médio da pena abstractamente considerada, mostra-se, perante os circunstancialismos concretos apurados e o disposto nos art° 40° e 65°, CP, como justa e adequada, a não merecer reparo.
Donde, sem necessidades de maiores considerações ou alongamentos, sermos a entender merecer provimento o recurso do MP, nos termos sobreditos, não o merecendo o recurso interposto pelo arguido”; (cfr., fls. 566 a 568).


Fundamentação

Dos factos

2. Pelo Colectivo do T.J.B. foi dado como provado o que segue:

“1.
Em 11 de Maio de 2011, pelas 09H11, o arguido A entrou em Macau através do Posto Fronteiriço das Portas do Cerco (vide registo de entrada em Macau de fls. 114 dos autos).
2.
Depois, no casino o arguido perdeu todo o dinheiro que tinha trazido com ele. Para arranjar dinheiro para regressar a casa, o arguido decidiu furtar as moradias em Coloane.
3.
Em 12 de Maio de 2011, por volta das 10H50, na moradia da 1ª vítima C, sita em Coloane, XXX, as janelas estavam fechadas, enquanto o portão e a porta de madeira apenas estavam fechadas mas não trancadas.
4.
Na manhã do mesmo dia (12 de Maio de 2011), o arguido ia de autocarro para Coloane e escolheu a moradia da 1ª vítima como alvo de furto.
5.
O arguido estava permanecido na parte exterior da referida fracção, observando-a durante meia hora através das janelas, e, em seguida, após ter presumido que não havia ninguém naquela fracção, o arguido pegou numa pedra e atirou-a para uma janela do 2º andar e, logo, este escondeu-se e continuou a observar a situação.
6.
Depois de ter confirmado que não havia ninguém na aludida fracção, o arguido, usando o escadote que estava no exterior da fracção, subiu até à cozinha do 2º andar da fracção e entrou nela através da janela partida pela pedra lançada. Ao passar pela referida janela partida, o arguido tinha o pulso ferido descuidadamente pelo vidro.
7.
Após a entrada na aludida fracção, o arguido foi logo à procura de toalha para embrulhar a ferida, entretanto, este encontrou-se em hemorragia quantiosa no decurso do tratamento da ferida, pelo que deixou as manchas de sangue na fracção da 1ª vítima.
8.
Posteriormente, o arguido começou a vasculhar dentro da aludida fracção e encontrou uma carteira na gaveta da parte inferior da cama que estava dentro do quarto, subtraindo os valores em numerários de diversas moedas que estavam postos na dita carteira, abrangendo AUD, HKD, EUR, TWD, CHF, RMB, THB, KRW e USD, correspondendo a MOP5.000,00.
9.
Em seguida, o arguido subtraiu dois computadores portáteis encontrados na cave: um computador portátil preto, de marca “Apple”, custa MOP13.230,00; e um computador portátil branco, de marca “Apple”, modelo n.º GF9400, série n.º S45009HTQ8PW, custa MOP8.880,00.
10.
Depois, o arguido abandonou a referida fracção e foi de autocarro para o Posto Fronteiriço das Portas do Cerco.
11.
Após a saída do autocarro, o arguido deslocou-se a uma casa de câmbio que estava nas proximidades das Portas do Cerco, convertendo as moedas estrangeiras da 1ª vítima para mais de RMB3.000,00 e, em seguida, dirigiu-se a uma farmácia, comprando medicamentos para embrulhar a ferida.
12.
No mesmo dia (12 de Maio de 2011), a 1ª vítima C apresentou queixa à polícia, pedindo pelo auxílio.
13.
No mesmo dia (12 de Maio de 2011), por volta das 15H37, o arguido regressou ao Interior da China através do Posto Fronteiriço das Portas do Cerco, vendeu os referidos dois computadores portáteis em Gongbei e, na mesma noite, foi de carro para o Tibete (vide registo de saída de Macau de fls. 114 dos autos).
14.
Em 1 de Fevereiro de 2012, por volta das 09H08, o arguido A entrou em Macau através do Posto Fronteiriço das Portas do Cerco (vide registo de entrada em Macau de fls. 108 dos autos).
15.
No casino o arguido perdeu todo o dinheiro que tinha trazido com ele. Em 1 de Fevereiro de 2012, por volta das 23H00, o arguido apanhou um autocarro nas proximidades do “Casino Grand Lisboa” e deslocou-se à Praia de Hac Sá.
16.
Em 2 de Fevereiro de 2012, por volta de 00:00, o arguido andou a passear ao redor da Praia de Hac Sá.
17.
No mesmo dia (2 de Fevereiro de 2012), por volta das 02H00, a 2ª vítima D foi dormir no seu quarto depois de ter averiguado que o portão de ferro da moradia (sita em Coloane, XXX) estava fechado e trancado por uma tranca de madeira, bem como a porta de madeira estava fechada e trancada.
18.
No mesmo dia (2 de Fevereiro de 2012), por volta das 04H30, o arguido, passando por XXX, reparou que a porta de vidro da varanda do apartamento do 4º andar B do aludido edifício (moradia da 2ª vítima) estava aberta, e, em consequência, o arguido escolheu aquela fracção como alvo de furto.
19.
Em seguida, o arguido trepou pelo cano de água fixado na parede exterior do aludido edifício e subiu até a uma fracção devoluta, sito no 3º andar daquele edifício, posteriormente, trepou pelo ar condicionado fixado na parede exterior da varanda da dita fracção, subindo até à varanda da fracção do 4º andar, e entrou na sala de estar da moradia da 2ª vítima.
20.
O arguido verificou que a aludida fracção tinha dois quartos com as portas abertas, por conseguinte, entrou num deles e encontrou alguém a dormir na cama, subtraindo uma mala de modelo feminino encontrada no armário de cabeceira e uns lai-sis postos em cima do armário e, depois, dirigiu-se à sala de estar e colocou na varanda os bens acima mencionados.
21.
Posteriormente, o arguido entrou num outro quarto e encontrou alguém a dormir na cama, portanto, subtraiu um telemóvel branco de modelo “IPHONE 4” e um telemóvel preto de marca “NOKIA” encontrados em cima do armário de cabeceira, bem como uma carteira de criança.
22.
Em seguida, o arguido subtraiu o dinheiro da carteira posta na mesa de refeição na sala de estar, posteriormente, voltou à varanda para verificar os bens e, na altura, encontrou no interior da aludida mala de modelo feminino um telemóvel branco de marca “SONY ERICSSON”.
23.
O arguido deixou a carteira e a mala de modelo feminino acima referidas no chão da varanda, enquanto os demais bens subtraídos foram metidos nos bolsos das suas calças.
24.
Posteriormente, o arguido, seguindo o mesmo caminho, desceu para o rés-do-chão e dirigiu-se à paragem de autocarro em Hac Sá, ficando lá à espera até às cerca de 06H30 do mesmo dia (2 de Fevereiro de 2012) e, enfim, apanhou um autocarro e regressou ao local nas proximidades do “Hotel Grand Lisboa”.
25.
No mesmo dia (2 de Fevereiro de 2012), por volta das 07H00, a filha da 2ª vítima D acordou e descobriu que foi extraviado o telemóvel posto em cima do armário de cabeceira do seu quarto.
26.
Em seguida, a 2ª vítima também detectou que foram extraviados os valores em numerários postos na sua carteira, os valores em numerários e o telemóvel postos na mala da sua esposa, o telemóvel do seu filho e o dinheiro de lai-sis, por conseguinte, a 2ª vítima apresentou queixa à polícia, pedindo pelo auxílio.
27.
Após a verificação, constata-se que a 2ª vítima e os seus familiares sofreram os seguintes prejuízos:
1) Os valores em numerários e o dinheiro de lai-sis encontrados na carteira da 2ª vítima que foi posta na mesa de refeição na sala de estar, no valor global de cerca de MOP5.000,00;
2) Os valores em numerários e o dinheiro de lai-sis encontrados na mala da esposa da 2ª vítima que foi posta no cabide no quarto da 2ª vítima, no valor global de cerca de MOP5.000,00;
3) Os valores em numerários e o dinheiro de lai-sis encontrados na carteira do filho da 2ª vítima que foi posta na pasta que estava em baixo da secretária no quarto do mesmo, no valor de cerca de MOP1.500,00;
4) Os valores em numerários e o dinheiro de lai-sis encontrados na carteira da filha da 2ª vítima que foi posta em cima do armário de cabeceira no quarto da mesma, no valor de cerca de MOP1.500,00;
5) O telemóvel branco, de marca “SONY ERICSSON”, de modelo E15, pertencendo à esposa da 2ª vítima, que custa MOP1.500,00;
6) O telemóvel preto, de marca “NOKIA”, pertencendo ao filho da 2ª vítima, que custa MOP2.000,00;
7) O telemóvel branco, de marca “APPLE”, de modelo IPHONE 4, pertencendo à filha da 2ª vítima, que custa MOP4.800,00;
28.
No mesmo dia (2 de Fevereiro de 2012), às 18H30, o arguido deslocou-se à loja “XX Tong Son (XX通訊)”, sita no Istmo de Ferreira do Amaral, n.º XX, Edf. XX, R/c, e vendeu-lhe o aludido telemóvel branco, de marca “SONY ERICSSON”, de modelo E15, pelo preço de MOP600,00 (vide registo do negócio da referida loja, constante de fls. 45 dos autos).
29.
Em 3 de Fevereiro de 2012, por volta das 10H00, o arguido saiu de Macau e regressou ao Interior da China (vide registo de saída de Macau de fls. 108 dos autos).
30.
Em 12 de Abril de 2012, por volta das 09H46, o arguido entrou em Macau através do Posto Fronteiriço das Portas do Cerco (vide registo de entrada em Macau de fls. 109 dos autos).
31.
Até ao dia seguinte (13 de Abril de 2012), o arguido perdeu quase todo o dinheiro no casino, restando de cerca de RMB300,00, pelo que este preparou furtar novamente as moradias em Coloane.
32.
No mesmo dia (13 de Abril de 2012), por volta das 11H00, o arguido apanhou um autocarro nas proximidades do “Casino Grand Lisboa” e deslocou-se à Praia de Hac Sá.
33.
No mesmo dia (13 de Abril de 2012), por volta das 12H00, o arguido andou a passear ao redor da Praia de Hac Sá.
34.
No mesmo dia (13 de Abril de 2012), por volta das 15H00, o arguido foi à procura do alvo de furto em XXX.
35.
Posteriormente, o arguido entrou numa passagem para peões duma garagem e daí introduziu numa zona de lazer no 2º andar. No momento, o arguido reparou que podia aproveitar um cano de água fixado na parede exterior de XXX, para a prática do escalamento (vide fotografias do local da ocorrência dos factos de fls. 96 e 97 dos autos).
36.
O arguido trepou pelo referido cano de água até à varanda do 3º andar H de Lily Court, detectando que aquela fracção encontrava-se em vazio, consequentemente, o arguido saiu pela porta principal daquela fracção e subiu até ao terraço do edifício por meio da escadaria de emergência (vide fotografias do local da ocorrência dos factos de fls. 98 dos autos).
37.
Após a chegada ao terraço de Lily Court, o arguido continuou o escalamento e deslocou-se ao terraço de XXX, reparando que a fracção de duplex do 6º andar I encontrava-se em vazio. O arguido entrou na sala de estar do primeiro piso da aludida fracção e viu que a varanda daquela fracção e a da fracção vizinha (ora moradia da 3ª vítima, B, sita em XXX eram muito próximas, pois, dirigiu-se à varanda da moradia da 3ª vítima, B (vide fotografias do local da ocorrência dos factos de fls. 99 dos autos).
38.
Depois de ter trepado até à moradia da 3ª vítima, o arguido detectou que estava instalada na fracção em causa uma câmara de “cctv” e havia um cão que não parava de ladrar contra ele, por conseguinte, o arguido regressou imediatamente à varanda da fracção do 6º andar I.
39.
Em seguida, o arguido pegou num pedaço de pano da cor-de-rosa e matizada, voltando a trepar para a varanda da moradia da 3ª vítima, e, na altura, este encobriu a sua cara com o pano supramencionado, porém, o cão em apreço continuou a ladrar contra ele (vide fotografias extraídas de vídeo, constantes de fls. 82 dos autos).
40.
O arguido estava com receio de ser descoberto, por isso, regressou novamente à fracção do 6º andar I. Na altura, o arguido viu que ainda não houve ninguém a passar pela varanda da moradia da 3ª vítima, pois, julgou que não estava ninguém naquela fracção.
41.
Pois, o arguido voltou a trepar para a varanda da moradia da 3ª vítima e reparou que na sala de estar havia uma escada ligada ao piso superior (vide fotografias extraídas de vídeo, constantes de fls. 83 e 84 dos autos).
42.
Na dada altura, a empregada doméstica da 3ª vítima, E, estava a descer para o piso inferior, por sua vez, o arguido regressou logo à fracção do 6º andar I e, depois, seguindo o mesmo caminho, abandonou o aludido edifício (vide fotografias extraídas de vídeo, constantes de fls. 86 dos autos).
43.
Posteriormente, o arguido apanhou um autocarro e regressou ao local nas proximidades do “Casino Grand Lisboa”.
44.
No mesmo dia (13 de Abril de 2012), por volta das 16H00, E telefonou à 3ª vítima, comunicando-lhe tal assunto.
45.
Em 14 de Abril de 2012, por volta das 11H30, o arguido foi interceptado pelos guardas policiais ao sair de Macau através do Posto Fronteiriço das Portas do Cerco, e, em seguida, foi encaminhado para a esquadra da P.J. para efeitos de investigação.
46.
Com o consentimento do arguido, o perito de criminalística da P.J. retirou da boca do arguido as amostras, a fim de proceder à comparação dos dados do ADN do mesmo com o ADN das manchas de sangue recolhido, em 12 de Maio de 2011, no local da ocorrência dos factos.
47.
Como os dados dos dois grupos do ADN eram idênticos, o relatório do exame da P.J. considerou que, no dia da ocorrência dos factos (12 de Maio de 2011), o arguido tinha deixado na fracção da 1ª vítima grande quantidade de manchas sanguíneas (vide teor do relatório pericial de fls. 165 e 264 a 268 dos autos).
48.
O arguido tinha a intenção de violar o direito de propriedade de outrem, e, por meio de arrombamento e escalamento, entrou nas aludidas três moradias. Entre esses casos, duas vezes, o arguido subtraiu os bens de duas vítimas e apropriou-os para si sem ter o consentimento das mesmas, mesmo que tivesse conhecimento perfeito de que os bens pertenciam às vítimas; e, um dos casos, o arguido não conseguiu atingir a finalidade por motivo fora da sua vontade.
49.
O arguido agiu livre, voluntária e conscientemente os referidos actos, sabendo perfeitamente que a sua conduta era proibida e punida por lei.
*
Mais se provaram:
Conforme o certificado de registo criminal, o arguido é delinquente primário em Macau”; (cfr., fls. 464 a 450).

Do direito

3. Dois são os recursos nos presentes autos trazidos a este T.S.I..

Um, do Exmo. Magistrado do Ministério Público, em que coloca apenas a questão da “qualificação jurídica” pelo Tribunal a quo efectuada, e o do arguido, em que pugna por uma redução das penas parcelares e única.

–– Vejamos, começando pelo recurso do Ministério Público.

Como se viu, foi o arguido condenado como autor da prática em concurso real de 2 crimes de “furto (qualificado)” p. e p. pelo art. 198°, n.° 2, al. e) do C.P.M., na pena de 5 anos de prisão cada, e 1 outro de “furto (simples)”, na forma tentada, p. e p. pelo art. 197°, n.° 1 e 21° e 22° do mesmo C.P.M., na pena de 9 meses de prisão.

Para a decisão ora recorrida assim ponderou o Colectivo a quo:

“Pelos factos provados nesta causa, este Juízo considerou que o arguido praticou, em autoria material e na forma consumada, dois crimes de furto qualificado, p. e p. pelo art.º 198º, n.º 2, al. e) do Código Penal, já que este introduziu, livre, voluntária e conscientemente, em 12 de Maio de 2011, por arrombamento e escalamento, na moradia da 1ª vítima C, sita em Coloane, XXX, e, em 1 de Fevereiro de 2012, por escalamento, na moradia da 2ª vítima D, sita em Coloane, em XXXX, bem como subtraiu e apropriou para si os bens com o valor superior a 500 patacas em respectivamente duas moradias acima mencionadas, sem ter o consentimento dos seus donos.
Por outro lado, em 13 de Abril de 2012, o arguido introduziu, por escalamento, na moradia da 3ª vítima B, sita em Coloane, em XXX, com a intenção de subtrair os bens encontrados naquela moradia, sem ter o consentimento do seu dono, contudo, o referido acto ilícito não foi consumado por ter sido descoberto. Todavia, tendo em conta que a acusação não descreveu concretamente as coisas que eventualmente fossem furtadas pelo arguido ao introduzir naquela moradia nem indicou os valores das mesmas, nos termos do art.º 198º, n.º 4 do Código Penal e segundo o princípio de in dubio pro reo, salvo o devido respeito à interpretação jurídica contrária do MºPº, deve alterar-se a qualificação do crime imputado pelo MºPº ao arguido, de modo a condenar o arguido pela prática, em autoria material e na forma tentada, de um crime de furto, p. e p. pelo art.º 197º, n.º 1 do Código Penal, em vez de o condenar pela prática, em autoria material e na forma tentada, de um crime de furto qualificado, p. e p. pelos art.ºs 198º, n.º 2, al. e), 21º e 22º do Código Penal”; (cfr., fls. 451).

Inconformado com o segmento decisório que não acolheu a parte da acusação do arguido como autor de 1 crime de “furto qualificado” na forma tentada, e que o condenou como autor de 1 crime de “furto simples”, também na forma tentada, diz o Exmo. Magistrado do Ministério Público que incorreu o Colectivo a quo em “erro de direito”, alegando, essencialmente, que:

“(…)tendo em conta que XXX é uma moradia privada de classe superior, quanto ao presente caso (3º caso) de furto tentado, prevê-se que, depois de ter introduzido na fracção, o arguido tinha a intenção subjectiva de subtrair objectos com valor superior a 500,00 patacas”;
“À luz da análise acima exposta e das regras da experiência comum, em 13 de Abril de 2012, na altura em que o arguido praticou o acto de furto tentado, sem dúvida, estavam postos na fracção onde morava a vítima B bens com o valor superior a 500,00 patacas, pelo que se exclui a aplicação do “princípio de in dubio pro reo”; e, assim, que,
“esta decisão do Tribunal violou o disposto nos artigos 21º, 22º, 197º e 198º do Código Penal”; (cfr., concl. 9°, 10° e 12°).

E, por sua vez, afirma o Ilustre Procurador Adjunto que “não se alcança que, minimamente, se tenha estabelecido ou tentado estabelecer factualidade que permitisse alcançar aquela dúvida àcerca da eventualidade de os bens passíveis de furto serem de valor diminuto”.

Pois bem, eis o que se nos mostra de consignar.

Tem este T.S.I. entendido que o “O princípio “in dubio pro reo” identifica-se com o da “presunção da inocência do arguido” e impõe que o julgador valore sempre,em favor dele, um “non liquet”.
Perante uma situação de dúvida sobre a realidade dos factos constitutivos do crime imputado ao arguido, deve o Tribunal, em harmonia com o princípio “in dúbio pro reo”, decidir pela sua absolvição”; (cfr., v.g. o Ac. de 06.04.2000, Proc. n.° 44/2000 e de 27.09.2012, Proc. n.° 700/2012).

Assim, e sendo de facto um princípio fundamental do processo penal com aplicação limitada à decisão (julgamento) da matéria de facto, impõe-se reconhecer que pelo Colectivo a quo não foi o mesmo correctamente invocado; (cfr., sobre o “princípio in dubio pro reo”, e sobre questão idêntica, a Anotação de S. Santos ao Ac. do S.T.J. de 17.12.1997, in R.P.C.C., Ano 8, pág. 459 e segs.).

Todavia, há que dizer que também não se afigura que daí se possa extrair a conclusão da procedência do recurso em apreciação, com a condenação do arguido nos termos pretendidos, como autor de (mais) 1 crime de “furto qualificado na forma tentada”.

Vejamos.

–– Nos termos do art. 196° do C.P.M.:

“Para efeitos do disposto no presente Código, considera-se:

a) Valor elevado: aquele que exceder 30 000 patacas no momento da prática do facto;

b) Valor consideravelmente elevado: aquele que exceder 150 000 patacas no momento da prática do facto;

c) Valor diminuto: aquele que não exceder 500 patacas no momento da prática do facto;

d) Arrombamento: o rompimento, fractura ou destruição, no todo ou em parte, de dispositivo destinado a fechar ou impedir a entrada, exterior ou interiormente, de casa ou de lugar fechado dela dependente;

e) Escalamento: a introdução em casa, ou em lugar fechado dela dependente, por local não destinado normalmente à entrada, nomeadamente por telhados, portas de terraços ou de varandas, janelas, paredes, aberturas subterrâneas ou por qualquer dispositivo destinado a fechar ou impedir a entrada ou passagem;

f) Chaves falsas:

(1) As imitadas, contrafeitas ou alteradas;

(2) As verdadeiras quando, fortuita ou sub-repticiamente, estiverem fora do poder de quem tiver o direito de as usar; e

(3) As gazuas ou quaisquer instrumentos que possam servir para abrir fechaduras ou outros dispositivos de segurança;

g) Marco: qualquer construção, plantação, valado, tapume ou outro sinal destinado a estabelecer os limites entre diferentes propriedades, colocado por decisão judicial ou com o acordo de quem esteja legitimamente autorizado para o dar”.

Por sua vez, prescreve o art. 197° que:

“1. Quem, com ilegítima intenção de apropriação para si ou para outra pessoa, subtrair coisa móvel alheia é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.

2. A tentativa é punível.

3. O procedimento penal depende de queixa”.

E, nos termos do art. 198°:

“1. Quem furtar coisa móvel alheia

a) de valor elevado,

b) transportada em veículo, colocada em lugar destinado ao depósito de objectos ou transportada por passageiros utentes de transporte colectivo, mesmo que a subtracção tenha lugar na estação ou cais,

c) afecta ao culto religioso ou à veneração da memória dos mortos e que se encontre em lugar destinado ao culto ou em cemitério,

d) explorando situação de especial debilidade da vítima, de desastre, acidente, calamidade pública ou perigo comum,

e) fechada em gaveta, cofre ou outro receptáculo, equipados com fechadura ou outro dispositivo especialmente destinado à sua segurança,

f) introduzindo-se ilegitimamente em habitação, ainda que móvel, estabelecimento comercial ou industrial ou outro espaço fechado, ou aí permanecendo escondido com intenção de furtar,

g) com usurpação de título, uniforme ou insígnia de funcionário, ou alegando falsa ordem de autoridade pública;

h) fazendo da prática de furtos modo de vida, ou

i) deixando a vítima em difícil situação económica, é punido com pena de prisão até 5 anos ou com pena de multa até 600 dias.

2. Quem furtar coisa móvel alheia

a) de valor consideravelmente elevado,

b) que possua significado importante para o desenvolvimento tecnológico ou económico,

c) que, por natureza, seja altamente perigosa,

d) que possua importante valor científico, artístico ou histórico e se encontre em colecção ou exposição públicas ou acessíveis ao público,

e) introduzindo-se em habitação, ainda que móvel, estabelecimento comercial ou industrial ou outro espaço fechado, por arrombamento, escalamento ou chaves falsas,

f) trazendo, no momento do crime, arma aparente ou oculta, ou

g) como membro de grupo destinado à prática reiterada de crimes contra o património, com a colaboração de pelo menos outro membro do grupo, é punido com pena de prisão de 2 a 10 anos.

3. Se na mesma conduta concorrerem mais do que um dos requisitos referidos nos números anteriores, só é considerado, para efeitos de determinação da pena aplicável, o que tiver efeito agravante mais forte, sendo o outro ou outros valorados na determinação da medida da pena.

4. Não há lugar à qualificação se a coisa furtada for de valor diminuto”.

No caso, e como se viu, nada se dizia na acusação quanto ao valor do(s) ben(s) do “furto (tentado)” ocorrido no dia 13.04.2012, o mesmo sucedendo com o Acórdão ora recorrido; (cfr., ponto 34 e segs. da matéria de facto).

Desta forma, desconhecendo-se o dito “valor”, e atento o estatuído no transcrito art. 198°, n.° 4 do C.P.M. – onde, repete-se, se preceitua que “Não há lugar à qualificação se a coisa furtada for de valor diminuto” – quid iuris?

Poder-se-á acompanhar o Exmo. Recorrente quando se afirma que:

“(…)tendo em conta que XXX é uma moradia privada de classe superior, quanto ao presente caso (3º caso) de furto tentado, prevê-se que, depois de ter introduzido na fracção, o arguido tinha a intenção subjectiva de subtrair objectos com valor superior a 500,00 patacas” ?

Ora, independentemente do demais, é sabido que este T.S.I. pode tirar ilações da matéria de facto; (cfr., v.g., o Ac. do T.U.I. de 15.12.2006, Proc. n.° 40/2006 e mais recentemente de 16.05.2012, Proc. n.° 20/2012, onde se consignou que “é lícito ao Tribunal de Segunda Instância, depois de fixada a matéria de facto, fazer a sua interpretação e esclarecimento, bem como extrair as ilações ou conclusões que operem o desenvolvimento dos factos, desde que não os altere”).

Todavia, será tal possível no caso dos autos?

Cremos que a resposta terá que ser negativa.

Percorrendo a matéria de facto que para a questão releva – ponto 34° e segs. – apenas se consegue apurar que na fracção em causa estava instalada uma “câmara de CCTV”, e que na mesma havia “um cão que não parava de ladrar” assim como “uma empregada a descer para o piso inferior”, nada mais constando, nomeadamente quanto a qualquer (outro) bem tipicamente passível de furto, o seu valor, e a intenção do arguido em se apoderar do mesmo.

Dizer-se mesmo assim, (sem qualquer suporte credível), que (era óbvio) que na dita fracção haveriam objectos que “interessariam” ao arguido e que valeriam mais que MOP$500,00, não deixa de ser, em nossa opinião, e no mínimo, algo “arriscado”, e, (aqui sim), incompatível com o aludido princípio “in dubio pro reo”.

Assim, mostra-se de confirmar a decisão proferida que condenou o arguido como autor do crime de “furto (simples)” na forma tentada, pois que não constando da acusação o seu valor, e não se sabendo assim que o mesmo não tinha “valor diminuto”, reunidos não estão os elementos para se considerar que incorreu o arguido na prática de 1 crime de “furto qualificado” do art. 198° do C.P.M., (na forma tentada, como acusado estava).

–– Do recurso do arguido

Bate-se o arguido pela redução das penas que lhe foram impostas.

Como se viu, foi o arguido condenado como autor da prática em concurso real de 2 crimes de “furto (qualificado)” p. e p. pelo art. 198°, n.° 2, al. e) do C.P.M., na pena de 5 anos de prisão cada, e 1 outro de “furto (simples)”, na forma tentada, p. e p. pelo art. 197°, n.° 1 e 21° e 22° do mesmo C.P.M., na pena de 9 meses de prisão.

E, também aqui, afigura-se-nos que censura não merece o Acórdão recorrido.

Vejamos.

Os dois “furtos (qualificados)” pelo arguido cometidos são punidos com a pena de prisão de 2 a 10 anos; (cfr., art. 198°, n.° 2 do C.P.M.).

Por sua vez, ao “furto simples”, cabe a pena de prisão até 3 anos ou multa, e por se tratar de um crime cometido na forma tentada, é a pena especialmente atenuada; (cfr., art. 196° e 22°, n.° 2 do C.P.M.).

Nos termos do art. 40° do C.P.M.:

“1. A aplicação de penas e medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade.

2. A pena não pode ultrapassar em caso algum a medida da culpa.

3. A medida de segurança só pode ser aplicada se for proporcionada à gravidade do facto e à perigosidade do agente”.

E, tem este T.S.I. entendido que:

“Na determinação da medida da pena, adoptou o Código Penal de Macau no seu art.º 65.º, a “Teoria da margem da liberdade”, segundo a qual, a pena concreta é fixada entre um limite mínimo e um limite máximo, determinados em função da culpa, intervindo os outros fins das penas dentro destes limites”; (cfr., v.g., o Ac. de 03.02.2000, Proc. n° 2/2000, e, mais recentemente, de 06.12.2012, Proc. n° 903/2012).

Nesta conformidade, ponderando a factualidade apurada, o dolo directo e intenso do arguido, a acentuada ilicitude da sua conduta, as evidentes e fortes necessidades de prevenção, e visto que as penas (de prisão) impostas, mesmo assim, não atingem sequer o meio da pena, motivos não vemos para se proceder à sua redução.

Não se nega que em relação ao “furto simples”, era o mesmo passível de ser punido com multa, aplicável sendo então o art. 64° do C.P.M..

Todavia, atenta a personalidade pelo arguido demonstrada com a sua conduta, e as fortes necessidades de prevenção, adequada não se afigura uma pena não privativa da liberdade.

Por fim, e atento o estatuído no art. 71° do C.P.M., que regula a punição do “concurso de crimes” e a feitura o do cúmulo jurídico das penas, e em causa estando uma moldura de 5 anos a 10 anos e 9 meses de prisão, censura também não merece a pena única de 7 anos e 9 meses de prisão que ao arguido foi fixada.

Tudo visto, resta decidir.

Decisão

4. Nos termos que se deixam expostos, acordam julgar improcedentes os recursos interpostos.

Pagará o arguido a taxa de justiça de 6 UCs, (não se tributando o Ministério Público dada a sua isenção).

Honorários ao Exmo. Defensor no montante de MOP$1.200,00.

Macau, aos 31 de Janeiro de 2013
José Maria Dias Azedo [Não obstante ter relatado o acórdão que antecede, não subscrevo a solução dada ao recurso do Ministério Público, pois que me parece que na parte em questão, padece a decisão recorrida do vício de “insuficiência da matéria de facto provada para a decisão”, vício este que, ainda que não invocado, não impedia este T.S.I. de o declarar, dado que o consideramos de conhecimento oficioso.

Vejamos.

O aludido vício de “insuficiência” tem sido entendido como aquele que ocorre quando o Tribunal omite pronúncia sobre matéria objecto do processo; (cfr., v.g., o recente Ac. deste T.S.I. de 24.01.2013, Proc. n.° 891/2012).

E, nesta conformidade, ainda que na acusação não houvesse referência ao valor do(s) ben(s) que o arguido pretendia fazer seu(s), não se pode olvidar que (já) estava o mesmo acusado da prática de 1 “furto qualificado” (na forma tentada), e, assim, devia, o Colectivo a quo, (pelo menos), tentar apurar tal realidade, pois que, em nossa opinião, não pode o Tribunal deixar de investigar “toda a matéria de facto com interesse para a decisão final”.

Dir-se-á que não constando da acusação o “valor dos bens”, ao Tribunal não cabia apurar o mesmo, sob pena de ir além do “objecto do processo”.

Ora, é certamente um entendimento, que se respeita.

Porém, em nossa modesta opinião, não nos parece o melhor, ou o que melhor serve o processo penal e o fim que com o mesmo se pretende alcançar: a “justiça material”.

Com efeito, prescreve o art. 321°, n.° 1 do C.P.P.M. que “o tribunal ordena, oficiosamente ou a requerimento, a produção de todos os meios de prova cujo conhecimento se lhe afigure necessário à descoberta da verdade e à boa decisão da causa”.

E “neutralidade” não é sinónimo de “inactividade”,

Não há dúvida nenhuma que o objecto do processo é o objecto da acusação, no sentido em que é esta que fixa os limites da actividade cognitiva e decisória do Tribunal, ou, noutros termos, o thema probandum e o thema decidendum.

Como afirma G. Marques. da Silva, o processo de estrutura acusatória exige uma necessária correlação entre a acusação e a decisão. A definição do “thema decidendum” na acusação é uma consequência da estrutura acusatória do processo; (v.d., “Curso de Processo Penal”, III, pág. 266 e segs.).

Na verdade, e como tem sido entendido, há pois uma estreita ligação entre o objecto da acusação, que se há-de manter essencialmente idêntico até a decisão final e as garantias de defesa do arguido. O tribunal poderá considerar factos novos, desde que não colidam com a essência da acusação ou, se colidirem, desde que o arguido consinta, devendo-lhe ser, sempre assegurada a preparação da defesa em razão dos novos factos; (cfr., art°s 339° e 340° do C.P.P.M.).

Como também refere Castanheira Neves, (v.d. “Sumários de Processo Criminal”, pág. 196 e segs.) o problema da identificação e da delimitação do objecto do processo é problema que só se põe num processo criminal de estrutura acusatória. Apenas esta implica que o tribunal só possa agir no pressuposto de uma prévia acusação cujo conteúdo intencional delimita justamente o âmbito do seu conhecimento e decisão. E o problema que aqui se põe não é outro que o de saber em que termos – de que modo ou mediante que critérios – se pode dizer assegurada a identidade entre o acusado, o conhecido e o decidido enquanto exigência essencial da própria estrutura acusatória.

Todavia, cremos que a delimitação do objecto do processo deve-se orientar no sentido de ser uma “garantia para o arguido” – a garantia de que apenas do que é acusado se terá de defender, e de que só por isso será julgado, mas, por outro lado, no sentido também de “não frustar uma averiguação e um julgamento justos e adequados da infracção acusada”.

Isto é, no problema do objecto do processo deparamos com o próprio problema jurídico do processo criminal: se este terá a sua solução justa na equilibrada ponderação entre o interesse público da aplicação do direito criminal e da eficaz perseguição e condenação dos delitos cometidos e o direito incondicional do arguido a uma defesa eficaz.

E, nesta conformidade, afigura-se-nos que a “identidade do objecto do processo” não pode ser encarada de forma tão rígida, (como um “bloco de betão”), que impeça um esclarecimento suficientemente amplo e adequado da infracção imputada e da correlativa responsabilidade.
Como (citando vários autores) se consignou no Ac. do S.T.J. de 13.10.2011, Proc. n.° 141/06, “a delimitação do objecto do processo está relacionada fundamentalmente com todas as garantias de defesa, assegurando-se que nenhum outro indivíduo, que não o arguido, seja julgado pelos factos constantes da acusação e permitindo-se-lhe uma defesa eficaz, subordinada aos princípios do contraditório e da audiência, mas também garantindo, dentro de certa maleabilidade, conjugada com a rigidez que lhe é característica, a investigação da verdade material. (Cr. FIGUEIREDO DIAS, Direito Processual Penal, Coimbra Editora, Lda. 1984, 1.° Vol., pp. 144 e ss., CASTANHEIRA NEVES, Sumários de Direito Processual Penal, Coimbra 1968, pp. 210, 254 e ss. e FREDERICO ISASCA, Alteração Substancial Dos Factos E Sua Relevância No Processo Penal Português, p. 240 e ss.)”.

Como também já dizia Castanheira Nunes, não deve entender-se em termos de uma “identidade euclideana”, de uma “identidade-igualdade” que se defina por uma coincidência “ponto por ponto” e em “todos os pontos”.

Seria pois, em nossa opinião, uma exigência insuportável negar ao julgador a possibilidade de adaptar as palavras da acusação, integrando-as e explanando o seu conteúdo.

E então, cabe perguntar?

Vai-se além do “objecto do processo” se estando o arguido acusado de ter agredido o ofendido se dá como provado que desferiu dois socos na cara daquele?

Cremos que não, pois que, em nossa opinião, o Tribunal limitou-se a concretizar ou esclarecer o que já constava da acusação.

Nesta conformidade, como temos vindo a entender e já tivemos oportunidade de consignar no Ac. deste T.S.I. de 12.12.2002, Proc. n.° 117/2002, “somos pois de opinião que a acusação não fixa em termos absolutamente inalteráveis e processualmente irremediáveis o objecto do processo, e que, em consequência dela, não possa o Tribunal, na base da essencialidade dos factos aí inscritos, aprofundá-la ou desenvolvê-la, tendo em conta as soluções de direito que se lhe mostrem adequadas”; (neste sentido cfr. também os Acs. do S.T.J. de 12.11.98, Proc. nº 869/98 e de 21.02.02, Proc. nº 368/02).

Não sendo este o lugar próprio para dissertações, (e para abreviar), mostra-se assim de consignar que se nos afigura que a situação dos autos é, no mínimo, próxima do exemplo atrás referido.

Com efeito, o arguido estava acusado da prática de um “furto qualificado” (na forma tentada), p. e p. pelo art. 198°, n.° 2, al. e) do C.P.M..
E, não constando na acusação o “valor” do objecto do dito “furto”, não nos parece que devesse o Tribunal “cruzar os braços” perante tal omissão, acabando depois por decidir como decidiu, convolando para a prática de 1 crime de “furto simples” (na forma tentada), por mera aplicação do n.° 4 do art. 198°, que preceitua que: “não há lugar à qualificação se a coisa furtada for de valor diminuto”.

Tal entendimento, não se nos afigura em harmonia com o “princípio da verdade material”, parecendo também olvidar-se que o “valor” do(s) ben(s) não é elemento constitutivo do crime de “furto” em questão, sendo apenas uma circunstância de cuja verificação dependia a qualificação da conduta do arguido nos termos da acusação já deduzida.

Daí, e por considerar que na parte em questão se incorreu no vício de “insuficiência da matéria de facto provada para a decisão”, decidia pelo reenvio do processo para novo julgamento].
Chan Kuong Seng
Tam Hio Wa
Proc. 914/2012 Pág. 48

Proc. 914/2012 Pág. 1