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Processo n.º 14/2014. Recurso jurisdicional em matéria administrativa.
Recorrente: A.
Recorrido: Chefe do Executivo.
Assunto: Acto vinculado. Princípio da proporcionalidade. Vinculação ou discricionariedade. Terrenos do Estado. Ocupação.
Data da Sessão: 9 de Abril de 2014.
Juízes: Viriato Manuel Pinheiro de Lima (Relator), Song Man Lei e Sam Hou Fai.

SUMÁRIO:
I – Os órgãos administrativos competentes – nos quais se inclui o Chefe do Executivo – não têm quaisquer poderes discricionários em tolerar ou deixar de tolerar a ocupação e a construção, não autorizadas legalmente, em terrenos do Estado. Estão vinculados a reprimir os abusos na matéria e a impedir a utilização desses terrenos por pessoas sem direito a eles.
II – Quando a Administração não dispõe, face ao tipo legal do acto, de margem de discricionariedade ou liberdade decisória, é inoperante a alegação de violação do princípio da proporcionalidade.
  O Relator,
  Viriato Manuel Pinheiro de Lima
ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU:

I – Relatório
A (doravante, também designada por recorrente), interpôs recurso contencioso de anulação do despacho do Chefe do Executivo, de 13 de Janeiro de 2012, que determinou a desocupação de um terreno junto ao edifício [Endereço (1)], bem como a demolição e desocupação de um edifício informal no mesmo terreno e a remoção de todos os objectos e materiais e equipamentos e a devolução do terreno ao Governo, no prazo de 30 dias.
Por acórdão de 12 de Dezembro de 2013, o Tribunal de Segunda Instância (TSI) julgou improcedente o recurso.
Inconformada, interpõe A recurso jurisdicional para o Tribunal de Última Instância (TUI), terminando a respectiva alegação com a formulação das seguintes conclusões úteis:
- O acto administrativo de que ora se recorre é nulo, nos termos previstos na alínea d) do n.º 2 do artigo 122.° do Código de Procedimento Administrativo, uma vez que ofende o conteúdo essencial de um direito, pois quando a Administração classifica como sendo pública, uma parte de um prédio urbano que, manifestamente, e propriedade de um particular, que o ocupa há mais de 10 anos e de forma pacífica e notória, e viola o conteúdo essencial de um direito da Recorrente, que adquiriu de forma legítima o direito resultante da concessão por arrendamento incluindo a propriedade de construção dos prédios urbanos descritos na Conservatória do Registo Predial de Macau sob os n.º XXXXX e XXXXX.
- Ora, é precisamente neste contexto que o presente acto administrativo parece padecer de violação de lei, por colidir com o princípio da proporcionalidade, previsto no artigo 5.° n.º 2 do Código de Procedimento Administrativo, já que não será nunca aceitável a demolição da parte direita da construção nos termos ora preconizados pela Administração, porquanto o prejuízo que daí resultará será incomensuravelmente mais gravoso do que aquele que resultaria, para o interesse público, da alegada ocupação (ilegal) de uma parcela de terreno que não pertence à ora Recorrente.
- É que a ser verdade que aquele pedaço de terreno não integra a área do prédio descrito sob o n. º XXXXX, o que mais uma vez não se concede, a ora Recorrente teria de cumprir o estipulado no despacho que ora se recorre, e demolir a parte direita da construção, conforme aparece identificada no processo administrativo que com este recurso subirá, só que a demolição dessa construção, implicaria inutilizar por completo todo o imóvel pertencente à ora Recorrente, uma vez que não será possível demolir aquela parte da construção, sem destruir totalmente, a função do imóvel que ali se encontra construído, que é a habitação sendo esta uma consequência que se revela manifestamente exagerada, desproporcionada, excessivamente punitiva do interesse individual da ora Recorrente e por esse facto contrária ao princípio da proporcionalidade previsto no n.º 2 do artigo 5.° do Código de Procedimento Administrativo,.
O Ex.mo Procurador-Adjunto emitiu douto parecer em que se pronuncia pela improcedência do recurso.

II - Os Factos
Estão provados os seguintes factos:
1. Desde 30 de Julho de 2001, a Recorrente adquiriu o direito resultante da concessão por arrendamento dos prédios urbanos identificados pelas vivendas [Endereço (2)], e descritos na Conservatória do Registo Predial de Macau sob os n.º XXXXX e XXXXX.
2. Em 5 de Maio de 2011, o pessoal da DSSOPT descobriu, no terreno e na encosta juntos ao edifício [Endereço (1)], um edifício informal construído em betão, muro de alvenaria e janelas de alumínio, bem como um tanque de água e um canteiro de jardim. O pessoal mais descobriu que o espaço debaixo da rotunda da Rua Um dos jardins de Cheoc Van foi ocupada para a colocação de mobiliários e a instalação de vedações metálicas.
3. A DSSOPT não emitiu a licença em relação à respectiva obra.
4. Segundo a certidão emitida pela CRP, sobre o terreno ilegalmente ocupado não há qualquer registo de direito de propriedade ou de outro direito real a título particular, não havendo, nomeadamente, registo de concessão por aforamento ou arrendamento.
5. Segundo as plantas cadastrais, o terreno e a encosta juntos ao edifício [Endereço (1)] não pertencem ao terreno concedido à Recorrente (vd. fls. 86 a 97 dos autos, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido).
6. Em 17 de Outubro de 2011, a DSSOPT procedeu à notificação edital da realização de audiência da interessada através da publicação de anúncios em jornais em língua chinesa e língua portuguesa para que esta emitisse o parecer escrito no prazo de 10 dias a contar da data da publicação de anúncios.
7. No prazo de audiência acima referido, a DSSOPT não recebeu qualquer parecer escrito apresentado pela interessada.
8. Em 21 de Novembro de 2011, a DSSOPT emitiu a ordem de suspensão dos trabalhos ordenando a imediata suspensão dos trabalhos no respectivo local da obra pelo prazo de 48 horas (vd. fls. 160 dos autos administrativos, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido).
9. Até 16 de Março de 2012 ainda havia obras em curso no respectivo local (vd. fls. 225 dos autos administrativos, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido).
10. Em 25 de Novembro de 2011, o pessoal da DSSOPT lavrou o relatório n.º XXXX/DURDEP/2011 sugerindo que ordenasse à interessada, no prazo de 30 dias, a desocupação do terreno e da encosta juntos ao edifício [Endereço (1)], a demolição e a desocupação dos edifícios informais no respectivo terreno, a remoção de todos os objectos, materiais e equipamentos nele existentes e, a devolução do terreno ao Governo da RAEM sem ter direito a qualquer indemnização (vd. fls. 119 a 122 dos autos administrativos, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido).
11. Em 13 de Janeiro de 2012, o Sr. Chefe do Executivo do Governo da RAEM proferiu despacho no aludido relatório, concordando com a proposta.
12. O advogado da Recorrente foi notificado da respectiva decisão através do ofício n.º XXXXX/DURDEP/2012 (vd. fls. 213 a 214 dos autos administrativos, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido).




III – O Direito
1. As questões suscitadas e a apreciar
O TUI, em recursos jurisdicionais do TSI, como é o nosso caso, não tem poder de cognição em matéria de facto (artigos 47.º, n.º 1, da Lei de Bases da Organização Judiciária e 152.º do Código de Processo Administrativo Contencioso).
Logo, temos por assente a matéria de facto considerada provada pelo acórdão recorrido, designadamente que a recorrente construiu parte do seu edifício (em terreno concedido por arrendamento) em terreno que não lhe pertencia e a que não tinha qualquer direito, sendo que sobre este terreno não incide qualquer registo de propriedade ou outro, nem sobre o mesmo foi constituído qualquer direito real reconhecido como propriedade privada.
Não se conhecerá, portanto, do vício do erro sobre pressupostos de facto.
A recorrente suscitou no recurso jurisdicional, pela primeira vez, o vício de desvio de poder. Não se conhecerá de tal questão, por não sido suscitada no recurso contencioso. Como é sabido, salvo matéria de conhecimento oficioso – o que não é o caso – o recurso jurisdicional não tem por objecto questões não conhecidas pela sentença recorrida.
Apreciar-se-á a questão da ofensa ao conteúdo essencial do direito de propriedade e a violação do princípio da proporcionalidade.

2. Ofensa ao conteúdo essencial do direito de propriedade
Na tese da recorrente o acto recorrido constituiu ofensa ao conteúdo essencial do seu direito de propriedade, dado que o terreno lhe pertence e o ocupa há mais de 10 anos de forma pacífica e notória.
Quanto à primeira questão, este TUI não sindica que sobre a parte do terreno em questão não está registado qualquer direito de propriedade da recorrente ou de terceiro.
Quanto à posse, não se provou que a recorrente tenha a posse do direito de propriedade do terreno durante mais de 10 anos. Mas ainda que se tivesse provado, não se vislumbra a que título é que tal posse se pudesse converter em direito de propriedade.
Improcede a questão suscitada.

3. Violação do princípio da proporcionalidade
Na tese da recorrente, o acto recorrido viola o princípio da proporcionalidade porque a demolição da parte em causa implicaria demolir todo o edifício.
Também nesta parte, o acórdão recorrido não deu por adquirido que a demolição de parte do edifício construído em terreno alheio, implique a demolição da totalidade do edifício.
Mas ainda que isso aconteça, não há violação do princípio da proporcionalidade.
Em primeiro lugar, os órgãos administrativos estão submetidos ao princípio da legalidade, devendo actuar em obediência à lei e ao direito (artigo 3.º do Código de Procedimento Administrativo).
Tratando-se de um terreno que não está reconhecido como propriedade privada, ele pertence ao Estado, nos termos do artigo 7.º da Lei Básica.
Assim, os órgãos administrativos competentes – nos quais se inclui o Chefe do Executivo – não têm quaisquer poderes discricionários em tolerar ou deixar de tolerar a ocupação e a construção em terrenos do Estado. Estão vinculados a reprimir os abusos na matéria e a impedir a utilização desses terrenos por pessoas sem direito a eles.
Ora, como se sabe, em sede de vinculações legais, não está em causa a infracção de princípios como o da proporcionalidade ou da justiça, que só têm razão de ser naquelas matérias em que os órgãos administrativos têm poderes discricionários, o que não é o caso.
Como referimos no acórdão de 14 de Dezembro de 2011, no Processo n.º 54/2011, quando a Administração não dispõe, face ao tipo legal do acto, de margem de discricionariedade ou liberdade decisória, é inoperante a alegação de violação dos princípios da boa-fé, da igualdade, proporcionalidade ou justiça.
Ainda que assim não fosse e que o terreno ocupado pertencesse a um privado e não ao Estado – o que não é o caso - a acessão industrial imobiliária de má fé, consistindo em prolongar a construção de edifício próprio por terreno alheio, confere sempre ao dono do terreno o direito de exigir a demolição da obra, por maior que seja o prejuízo do dono da obra (artigos 1260.º e 1263.º do Código Civil). Nem poderia ser de outro modo. De outra forma, estava aberto o caminho a todas as usurpações. Alguém construía em terreno alheio, sabendo que o era (má fé) e depois vinha alegar ser desproporcional ter de demolir todo o edifício, por não se poder manter sem a parte ocupada pertencente a outrem.
A recorrente mostra ter pouco respeito pelo direito de propriedade … dos outros.
Improcede o vício suscitado.

IV – Decisão
Face ao expendido, negam provimento ao recurso jurisdicional.
Custas pela recorrente, fixando a taxa de justiça em 6 UC.
Macau, 9 de Abril de 2014.
Juízes: Viriato Manuel Pinheiro de Lima (Relator) – Song Man Lei – Sam Hou Fai


O Magistrado do Ministério Público
presente na conferência: Vítor Manuel Carvalho Coelho




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