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Processo n.º 872/2012 Data do acórdão: 2013-3-14
(Autos de recurso penal)
  Assuntos:
  – burla como modo de vida
  – uso de documento alheio
S U M Á R I O

1. Estando já provada em primeira instância uma série de actos de burla, cometidos como modo de vida, há que dar por verificados cabalmente tantos os crimes de burla, p. e p. pelo art.º 211.º, n.º 4, alínea b), do Código Penal, quantos os praticados.
2. O crime de uso de documento alheio, praticado para cometer o crime de burla, não se absorve por este, porquanto esses dois tipos legais de crime tutelam bens jurídicos diferentes.
O relator,
Chan Kuong Seng

Processo n.º 872/2012
(Autos de recurso penal)
Recorrente: Ministério Público
Recorridos: 1.o arguido A (XXX)
  2.o arguido B(XXX)
  3.o arguido C (XXX)






ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU
I – RELATÓRIO
Inconformada com o acórdão proferido a fls. 1626 a 1642 dos autos de Processo Comum Colectivo n.° CR3-12-0026-PCC do 3.o Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base na parte em que se decidiu condenar os três arguidos dos autos, chamados A (XXX), B (XXX) e C (XXX), como co-autores materiais de um só crime consumado de burla como modo de vida, p. e p. pelo art.o 211.o, n.o 4, alínea b), do Código Penal vigente (CP), veio a Digna Delegada do Procurador recorrer para este Tribunal de Segunda Instância (TSI), imputando a essa decisão penal a violação dos tipos legais de burla como modo de vida e de uso de documento alheio, para rogar que se passasse a condenar, e com necessária nova medida da pena, os três arguidos em todos os crimes inicialmente acusados, a saber: por parte do 1.o arguido, onze crimes consumados de burla como modo de vida e dez crimes consumados de uso de documento alheio (p. e p. pelo art.o 20.o da Lei n.o 6/2004, de 2 de Agosto), todos praticados em autoria material; por parte do 2.o arguido, quatro crimes consumados de burla como modo de vida; por parte dos 1.o e 2.o arguidos, em co-autoria material, um crime consumado de burla como modo de vida; por parte dos 1.o e 3.o arguidos, em co-autoria material, um crime consumado de burla como modo de vida e um crime tentado de burla como modo de vida (cfr. a motivação do recurso a fls. 1649 a 1654v dos presentes autos correspondentes).
Ao recurso não exerceram o direito de resposta por banda dos três arguidos.
Subidos os autos, emitiu o Digno Procurador-Adjunto parecer (a fls. 1683 a 1687), pugnando pelo provimento do recurso.
Feito o exame preliminar (em sede do qual se chegou a ordenar a notificação do Ente Recorrente da eventualidade de o seu recurso não vir a ser conhecido por este TSI na parte respeitante aos 2.o e 3.o arguidos recorridos, então julgados à revelia e ainda não notificados pessoalmente do acórdão final da Primeira Instância, tendo a mesma Entidade Recorrente respondido que o seu recurso, na parte atinente aos dois arguidos revéis, deveria ser conhecido só depois de se mostrarem notificados os mesmos do referido acórdão), corridos os vistos e realizada a audiência, cabe decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICA
Como não foi impugnada a matéria de facto já fixada no texto do acórdão recorrido, é de tomar a mesma como a fundamentação fáctica do presente acórdão de recurso, por aval do art.o 631.o, n.o 6, do vigente Código de Processo Civil, ex vi do art.o 4.o do CPP, sendo certo que já foi aí descrita como provada toda a matéria de facto então imputada pelo Ministério Público (cfr. o teor das páginas 14 a 24 desse texto decisório, ora concretamente a fls. 1632v a 1637v dos autos).
De acordo com o Tribunal recorrido, o 1.o arguido confessou francamente os factos na audiência de julgamento, é delinquente primário, sem encargos familiares e com curso secundário profissional como habilitações literárias.
Os 2.o e 3.o arguidos foram julgados à revelia em primeira instância, e ainda não notificados pessoalmente do acórdão ora recorrido.
III – FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
De antemão, é de notar que mesmo em processo penal, e com excepção da matéria de conhecimento oficioso, ao tribunal de recurso cumpre resolver só as questões material e concretamente alegadas na motivação do recurso e devidamente delimitadas nas conclusões da mesma, e já não responder a toda e qualquer razão aduzida pela parte recorrente para sustentar a procedência das suas questões colocadas (nesse sentido, cfr., de entre muitos outros, os acórdãos do TSI, de 7 de Dezembro de 2000 no Processo n.o 130/2000, de 3 de Maio de 2001 no Processo n.o 18/2001, e de 17 de Maio de 2001 no Processo n.o 63/2001).
É mister, entretanto, decidir primeiro da questão suscitada pelo relator em exame preliminar dos autos, relativa ao conhecimento para já, ou não, do recurso do Ministério Público no concernente aos 2.o e 3.o arguidos revéis.
A este propósito, e na esteira da abundante jurisprudência do TSI em outros recursos semelhantes anteriormente julgados, não é de conhecer mesmo dessa parte do recurso, porquanto esses dois revéis ainda não estão notificados do veredicto final da Primeira Instância, pelo que o recurso nessa parte só deverá ser conhecido após feita essa notificação.
E quanto à remanescente parte do recurso, da respectiva motivação sabe-se que o Ministério Público discorda, antes do mais, da decisão do Tribunal Colectivo a quo de convolação de todos os crimes de burla como modo de vida então acusados para um só crime consumado de burla como modo de vida.
Para este Tribunal ad quem, estando já provada em primeira instância uma série de actos de burla, cometidos como modo de vida, há que dar por verificados cabalmente tantos os crimes de burla como modo de vida quantos os acusados e efectivamente praticados.
Por outra banda, foi também posta em causa na presente lide recursória, a decisão absolutória do 1.o arguido de todos os crimes de uso de documento alheio, com fundamento na entendida já absorção deste tipo de delito pelo tipo legal de burla.
Nesta parte, também procede o recurso. De facto, tutelando os dois tipos legais de crime bens jurídicos totalmente diferentes, não pode existir qualquer nexo de absorção nos termos entendidos pelo Colectivo recorrido, mesmo que o crime de uso de documento alheio tenha sido cometido para praticar o crime de burla.
Do exposto resulta a necessidade de se proceder à nova medida da pena. E como não se trata de um recurso interposto pelo Ministério Público no exclusivo interesse do 1.o arguido ora em causa, mas sim em defesa da legalidade, não é aplicável, ao caso, o princípio da proibição de reforma para pior plasmado no art.o 399.o do Código de Processo Penal vigente.
Nesses parâmetros, e sendo o crime consumado de burla como modo de vida punível, nos termos do art.o 211.o, n.o 4, alínea b), do CP, com pena de dois a dez anos de prisão, o crime tentado de burla como modo de vida punível, atento o disposto nos art.os 22.o, n.os 1 e 2, 67.o, n.o 1, alíneas a) e b), e 41.o, n.o 1, do CP, com pena de um mês a seis anos e oito meses de prisão, e o crime consumado de uso de documento alheio punível, por comando do art.o 20.o da Lei n.o 6/2004, de 2 de Agosto, com prisão até três anos, e também ponderando todas as circunstâncias fácticas pertinentes já apuradas pelo Colectivo recorrido, com relevância para a comprovação desses tipos legais de crime e para a aplicação dos padrões da medida da respectiva pena vertidos mormente nos art.os 40.o, n.os 1 e 2, e 65.o, n.os 1 e 2, do CP, é de passar a condenar o 1.o arguido (em devida alteração da decisão penal final da Primeira Instância):
– pela autoria material de onze crimes consumados de burla como modo de vida, em dois anos e três meses de prisão por cada um;
– pela autoria material de dez crimes consumados de uso de documento alheio, em seis meses de prisão por cada um;
– pela co-autoria material de dois crimes consumados de burla como modo de vida, em dois anos e três meses de prisão por cada um;
– pela co-autoria material de um crime tentado de burla como modo de vida, em nove meses de prisão;
– e, em cúmulo dessas 24 penas (operado nos termos ditados no art.o 71.o, n.os 1 e 2, primeira parte, do CP, e, portanto, dentro da correspondente moldura aplicável de dois anos e três meses a trinta anos de prisão), na pena única de seis anos e seis meses de prisão.
IV – DECISÃO
Dest’arte, acordam em:
– 1) não conhecer, por ora, do recurso interposto pelo Ministério Público da decisão penal final da Primeira Instância na parte respeitante aos 2.o e 3.o arguidos reveis B (XXX) e C (XXX);
– 2) e julgar procedente o mesmo recurso na parte referente ao 1.o arguido A (XXX), passando a condenar este, pela autoria material de onze crimes consumados de burla como modo de vida, p. e p. pelo art.o 211.o, n.o 4, alínea b), do Código Penal, em dois anos e três meses de prisão por cada um, pela autoria material de dez crimes consumados de uso de documento alheio, p. e p. pelo art.o 20.o da Lei n.o 6/2004, de 2 de Agosto, em seis meses de prisão por cada um, pela co-autoria material de dois crimes consumados de burla, p. e p. pelo art.o 211.o, n.o 4, alínea b), do Código Penal, em dois anos e três meses de prisão por cada um, e pela co-autoria material de um crime tentado de burla, p. e p. pelos art.os 211.o, n.o 4, alínea b), 21.o, 22.o e 67.o do Código Penal, em nove meses de prisão, e, finalmente, em cúmulo dessas 24 penas, na pena única de seis anos e seis meses de prisão.
Sem custas na presente lide recursória (tendo sobretudo em conta que o 1.o arguido não deu causa ao recurso). E fixam em mil e oitocentas patacas os honorários totais na presente lide recursória a favor da Ex.ma Defensora Oficiosa dos três arguidos, a suportar pelo Gabinete do Presidente do Tribunal de Última Instância.
Comunique a presente decisão às casas de penhor ofendidas e referidas no dispositivo do acórdão recorrido.
Macau, 14 de Março de 2013.
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Chan Kuong Seng
(Relator)
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Tam Hio Wa
(Primeira Juíza-Adjunta)
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José Maria Dias Azedo
(Segundo Juiz-Adjunto)



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