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 Processo n.º 762/2012
  (Revisão e Confirmação de Decisão do Exterior)


Data: 6/Junho/2013


Assuntos :

- Revisão de divórcio celebrado no Exterior, celebrado perante autoridade administrativa
- Requisitos formais necessários para a confirmação
- Colisão ou não com matéria da exclusiva competência dos Tribunais de Macau
- Compatibilidade com a ordem pública



SUMÁRIO :

1. É passível de revisão a decisão administrativa que enquadra um divórcio por mútuo consentimento, registado na China, em Zhuhai, junto da autoridade competente, ainda que não consubstanciado numa decisão judicial.

2. Não se conhecendo do fundo ou do mérito da causa, na revisão formal, o Tribunal limita-se a verificar se a decisão proferida satisfaz certos requisitos de forma e condições de regularidade, pelo que não há que proceder a novo julgamento tanto da questão de facto como de direito.
3. É de confirmar a decisão proferida por autoridade administrativa do Interior da China que reconheceu um divórcio por mútuo conhecimento e regulou o poder paternal, não se vislumbrando qualquer violação ou incompatibilidade com a ordem pública ou qualquer obstáculo à revisão dessa decisão.

O Relator,


(João Gil de Oliveira)

Processo n.º 762/2012
(Revisão e Confirmação de Decisão do Exterior)

Data : 6/Junho/2013
Requerente: A (XXX)
Requerido: B (XXX)

    ACORDAM OS JUÍZES NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
    I – RELATÓRIO
    A (XXX), , vem propor
    Processo especial de confirmação de decisões proferidas por entidades do Exterior de Macau
  contra
    B (XXX),
    ambos mais bem identificados nos autos,
    nos termos e com os seguintes fundamentos:
 
“Artigo 1.º
  A requerente e o requerido casaram-se no Interior da China em 28 de Setembro de 1999 (vide Anexo I).
Artigo 2.º
  Em XX de XX de XXXX, a requerente deu à luz duas filhas que se chamam XXX (XXX) e XXX (XXX). (vide Anexos II e III)
Artigo 3.º
  Em 24 de Maio de 2010, a requerente e o requerido celebraram um acordo de divórcio no Departamento de Administração Civil do Distrito de Xiangzhou da Cidade de Zhuhai da Província de Guangdong da RPC, com o seguinte teor: (vide Anexo IV)
  “1. Estão rompidas as relações conjugais por causa da incompatibilidade dos caracteres pessoais e da separação a longo tempo, em consequência, as partes consentem voluntariamente em divorciar-se.
  2. No que diz respeito ao poder paternal das filhas: a filha legítima mais velha, XXX (XXX), nascida a XX de XX de XXXX, fica à guarda e custódia do marido, e a filha legítima mais nova, XXX (XXX), nascida a XX de XX de XXXX, também fica ao marido. Sem afectar a vida e o estudo das filhas, a mulher pode visitá-las sempre que quiser. O marido tem que assegurar o tempo de visita não inferior a um dia por semana.
  3. No que diz respeito à partilha de bens (incluindo uma moradia individual): pertencerá à mulher o direito de propriedade do imóvel (património comum), fracção sita na Cidade de Zhuhai da China, 灣仔南灣南路XXXX號XX棟XXX房, e os trâmites da alteração do nome do proprietário deste imóvel devem ser efectuados dentro de dois meses após o divórcio. E o marido deve assistir à mulher para tratar todos os trâmites e pagar as taxas sobre a transferência de direito de propriedade. Os depósitos bancários das partes em nome próprio mantêm-se inalterados, não sofrendo partilha. Outros bens: os bens antes de casamento pertencerão a si próprios, e os bens de uso diário e as jóias particulares das partes pertencerão a si próprios. O direito de propriedade da Companhia em nome do marido pertencerá a si próprio. E o veículo (com matrícula n.º Yue CDXXXX) pertencerá à mulher e o veículo (com matrícula n.º Ao ZXXXX) pertencerá ao marido.
  4. No que diz respeito à dívida: não existe dívida comum durante a constância da relação conjugal das partes, e qualquer parte que tem dívida externa deve assumir por si próprio.
  5. Outros acordos: o marido concordou com o pagamento da quantia por uma vez à mulher, no valor de RMB 500.000,00 a título da compensação e ajuda económica, o que deverá ser paga antes do dia 1 de Julho de 2010.
  6. O acordo supracitado foi celebrado através da negociação das partes. No caso de esconder a verdade, as partes assumirão a responsabilidade de disputa susceptível no futuro ou a responsabilidade legal consequente.
  7. O presente acordo é celebrado em triplicado, destinando-se um a cada das partes, e um a arquivo no Serviço que procede ao registo.
  8. Este acordo entrará em vigor desde dia de decretação do divórcio.”
Artigo 4.º
  A requerente e o requerido efectuaram imediatamente o registo de divórcio no dia de celebração do acordo de divórcio supracitado, pelo que foi decretado o registo do divórcio em 24 de Maio de 2010. (vide Anexo V)
Artigo 5.º
  Nos termos do art.º 2.º do Acordo sobre a confirmação e execução recíprocas de decisões judiciais em matéria civil e comercial entre o Interior da China e a Região Administrativa Especial de Macau, o termo designado no presente Acordo por “decisão” abrange no Interior da China a sentença, o acórdão, a decisão, o termo de conciliação e o mandato de pagamento, e na RAEM o acórdão, a sentença, a homologação de transacção, bem como a decisão e o despacho judiciais.
Artigo 6.º
  Com referência do acórdão no Processo n.º 801/2011 do TSI de Macau, por estar conforme ao disposto do art.º 1200.º do Código de Processo Civil, deve-se dar confirmação ao divórcio por mútuo consentimento decretado pelo órgão do governo do exterior de Macau.
Artigo 7.º
  Ainda se refere no acórdão supracitado que as “decisões” alegadas no art.º 1199.º do Código de Processo Civil não abrange expressamente o registo de divórcio por mútuo consentimento efectuado pelo órgão do governo do exterior de Macau referido neste caso, apesar disso, considerando as funções da revisão e confirmação supracitadas e a interpretação extensiva do aludido art.º, o divórcio por mútuo consentimento envolvido neste caso deve ser considerado objecto de revisão e confirmação deste processo.”
Artigo 8.º
  Não se incorre dúvida sobre a autenticidade do documento supracitado nem sobre a inteligibilidade do teor deste.
Artigo 9.º
  Não há indício da desigualdade das partes.
Artigo 10.º
  Os tribunais de Macau não têm competência exclusiva sobre o divórcio em apreço, isto é, o divórcio não se enquadra nas circunstâncias previstas no art.º 20.º do Código de Processo Civil.
Artigo 11.º
  Não há indício de que a competência do órgão que decretou o registo foi provocada em fraude à lei, e já existe litispendência ou caso julgado do mesmo género nos tribunais de Macau.
Artigo 12.º
  O respectivo registo do divórcio não mostra manifestamente incompatível com a ordem pública da RAEM, nem viola os princípios fundamentais do direito privado vigente em Macau.
Artigo 13.º
  Sendo assim, o pedido da confirmação formulado pela requerente satisfaz o disposto do art.º 1200.º do Código de Processo Civil.
Artigo 14.º
  Aqui vale a pena declarar que a requerente e o requerido já cumpriram efectivamente o acordo de divórcio supracitado. Aliás, existe um imóvel sito em Macau a ser partilhado, pelo que a requerente instaurou o presente processo de modo que os tribunais de Macau efectuem o processo de partilha deste imóvel resultante do divórcio.
 
  Face ao exposto, pede-se a revisão e confirmação do relativo acordo de divórcio para o acordo produzir efeitos jurídicos em Macau, e por isso solicita-se a citar o requerido para contestar dentro do prazo legal quando quiser e proceder ao processo consequente até ao seu termo. “

Foi oportunamente citado o requerido que não deduziu qualquer oposição.
O Exmo Senhor Procurador Adjunto emitiu o seguinte douto parecer:
    Inculca o douto TSI, constante e proficientemente, que não se conhecendo do fundo ou do mérito da causa na revisão formal, o Tribunal limita-se a verificar se a decisão estrangeira satisfaz certos requisitos de forma e condições de regularidade, pelo que não há que proceder a novo julgamento tanto da questão de facto como de direito. No que respeite aos requisitos relativos ao trânsito em julgado, competência do tribunal do exterior, ausência de litispendência ou de caso julgado, citação e garantia do contraditório, o tribunal verifica oficiosamente se concorrem as condições indicadas nas alíneas a) e f) do art. 1200º do CPC negando também oficiosamente a confirmação quando, pelo exame do processo ou por conhecimento derivado do exercício das funções, apure que falta algum dos requisitos exigidos nas alíneas b), c) d) e e) do mesmo preceito.
    No Processo n.º 801/2011, o TSI acordaram ainda a viabilidade de revisão e confirmação dos registos concedidos por autoridade administrativa do exterior ao divórcio por mútuo consentimento, se satisfizerem os requisitos previstos no art. 1200º do CPC.
    Por sua vez, o venerand9o TUI perfilha que não é acção real sobre imóvel a acção de divórcio, na parte em que o juiz, em consequência da dissolução do casamento, determina que uma das partes transfira todos os direitos sobre imóvel do casal para a outra parte.
    No caso vertente, o documento de fls. 15 a 16 dos autos demonstra que a decisão a rever se consubstancia no acordo de divórcio por mútuo consentimento (離婚協議書), incluindo a regulação do poder paternal e a divisão de bem comum do anterior casal.
    Examinada a decisão revidenda em harmonia com as deliberadas jurisprudências acima referidas, parece-nos que se preenchem in casu os requisitos consagrados no n.º 1 do art. 1200º do CPC, não descortinando obstáculo a deferir o pedido formulado no Requerimento Inicial.
    Foram colhidos os vistos legais.
    
II - PRESSUPOSTOS PROCESSUAIS

   O Tribunal é o competente internacionalmente, em razão da matéria e da hierarquia.
As partes são dotadas de personalidade e capacidade judiciária, dispondo de legitimidade ad causam.
Inexistem quaisquer outras excepções ou questões prévias de que cumpra conhecer.
    
    III - FACTOS
    Relativamente ao processo de divórcio que correu seus termos no departamento respectivo do Distrito de Xiangzhou da Cidade de Zhuhai, Província de Guangdong, República Popular da China,, certifica-se o seguinte:
 
 “ACORDO DE DIVÓRCIO
 
 Yue Zhu Xiang Li Zi, n.º 440
Relator:
Requerente (o): B (XXX)

Requerente (a): A (XXX)

Local de trabalho: Co.de Tecnologia de XX de Zhuhai, Ltd.
Nada
Residência: Zhuhai, XXXX巷1號
Zhuhai, XXXX巷6號
Tel.: XXXXXXXXX
XXXXXXXXXX
Data de casamento: 23/09/1999
Segundo os dispostos no Regime de Casamento e no Regulamento do Registo do casamento, as partes chegaram ao seguinte acordo através da plena negociação:
 1. Estão rompidas as relações conjugais por causa da incompatibilidade dos caracteres pessoais e da separação a longo prazo, em consequência, as partes consentem voluntariamente em divorciar-se.
 2. No que diz respeito ao poder paternal das filhas: a filha legítima mais velha, XXX (XXX), nascida a XX de XX de XXXX, fica à guarda e custódia do marido, e a filha legítima mais nova, XXX (XXX), nascida a XX de XX de XXXX, também fica ao marido. Sem afectar a vida e o estudo das filhas, a mulher pode visitá-las sempre que quiser. O marido tem que assegurar o tempo de visita não inferior a um dia por semana.
 3. No que diz respeito à partilha de bens (incluindo uma moradia individual): pertencerá à mulher o direito de propriedade do imóvel (património comum), fracção sita na Cidade de Zhuhai da China, 灣仔南灣南路XXXX號XX棟XXX房, e os trâmites da alteração do nome do proprietário deste imóvel devem ser efectuados dentro de dois meses após o divórcio. E o marido deve assistir à mulher para tratar todos os trâmites e pagar as taxas sobre a transferência de direito de propriedade. Os depósitos bancários das partes em nome próprio mantêm-se inalterados, não sofrendo partilha. Outros bens: os bens antes de casamento pertencerão a si próprios, e os bens de uso diário e as jóias particulares das partes pertencerão a si próprios. O direito de propriedade da Companhia em nome do marido pertencerá a si próprio. E o veículo (com matrícula n.º Yue CDXXXX) pertencerá à mulher e o veículo (com matrícula n.º Ao XXXX) pertencerá ao marido.
 4. No que diz respeito à dívida: não existe dívida comum durante a constância da relação conjugal das partes, e qualquer parte que tem dívida externa deve assumir por si próprio.
 5. Outros acordos: o marido concordou com o pagamento da quantia por uma vez à mulher, no valor de RMB 500.000,00 a título da compensação e ajuda económica, o que deverá ser paga antes do dia 1 de Julho de 2010.
 6. O acordo supracitado foi celebrado através da negociação das partes. No caso de esconder a verdade, as partes assumirão a responsabilidade de disputa susceptível no futuro ou a responsabilidade legal consequente.
 7. O presente acordo é celebrado em triplicado, destinando-se um a cada das partes, e um a arquivo no Serviço que procede ao registo.
 8. Este acordo entrará em vigor desde dia de decretação do divórcio.
 Assinatura do requerente: (ass.: vide o original)
 Assinatura da requerente: (ass.: vide o original)
 Data de assinatura: 24/05/2010

*
 REPÚBLICA POPULAR DA CHINA
 CERTIDÃO DE DIVÓRCIO
*
CERTIDÃO DE DIVÓRCIO
 Departamento de Administração Civil da RPC
*
    Perante o divórcio solicitado, regista-se o divórcio por estar conforme aos dispostos no Regime de Casamento da RPC e emite-se a tal certidão.
    
    Órgão de registo: Departamento de Administração Civil do Distrito de Xiangzhou da Cidade de Zhuhai (com carimbo aposto)
    Conservador: (ass.: vide o original)
 
*
 Titular: A (XXX)
 Data de registo: 24/05/2010
 N.º da série de divórcio: L440402-2010-000693
 Observações:
 
*
 Nome: A (XXX) Sexo: feminino
 Nacionalidade: chinesa Data de nascimento: XX/XX/XXXX
 n.º BI: XXXXXXXXXXXXXX
 
 Nome: B (XXX) Sexo: masculino
 Nacionalidade: chinesa Data de nascimento: XX/XX/XXXX
 n.º BI: XXXXXXXXXXXXXX
*
    Segundo o disposto no Regime de Casamento, é decretado o divórcio quando as partes consentem voluntariamente em divorciar-se. E já foi verificado pelo órgão de registo do casamento que as partes agiram de forma voluntária e efectuaram ao tratamento adequado sobre as filhas e os bens. Para efeito, emite-se a tal certidão de divórcio.”
    
    III - FUNDAMENTOS
    O objecto da presente acção - revisão da decisão do divórcio que ocorreu no Departamento de Administração Civil do Distrito de Xiangzhou da Cidade de Zhuhai, Província de Guangdong, República Popular da China, de forma a produzir aqui eficácia, passa pela análise das seguintes questões:
   
   1. Requisitos formais necessários para a confirmação;
   2. Colisão ou não com matéria da exclusiva competência dos Tribunais de Macau;
3. Compatibilidade com a ordem pública;
*
1. Prevê o artigo 1200º do C. Processo Civil:
“1. Para que a decisão proferida por tribunal do exterior de Macau seja confirmada, é necessária a verificação dos seguintes requisitos:
a) Que não haja dúvidas sobre a autenticidade do documento de que conste a decisão nem sobre a inteligibilidade da decisão;
b) Que tenha transitado em julgado segundo a lei do local em que foi proferida;
c) Que provenha de tribunal cuja competência não tenha sido provocada em fraude à lei e não verse sobre matéria da exclusiva competência dos tribunais de Macau;
d) Que não possa invocar-se a excepção de litispendência ou de caso julgado com fundamento em causa afecta a tribunal de Macau, excepto se foi o tribunal do exterior de Macau que preveniu a jurisdição;
e) Que o réu tenha sido regularmente citado para a acção, nos termos da lei do local do tribunal de origem, e que no processo tenham sido observados os princípios do contraditório e da igualdade das partes;
f) Que não contenha decisão cuja confirmação conduza a um resultado manifestamente incompatível com a ordem pública.
2. O disposto no número anterior é aplicável à decisão arbitral, na parte em que o puder ser.”

    Com o Código de Processo Civil (CPC) de 1999, o designado privilégio da nacionalidade ou da residência - aplicação das disposições de direito privado local, quando este tivesse competência segundo o sistema das regras de conflitos do ordenamento interno - constante da anterior al. g) do artigo 1096º do CPC, deixou de ser considerado um requisito necessário, passando a ser configurado como mero obstáculo ao reconhecimento, sendo a sua invocação reservada à iniciativa da parte interessada, se residente em Macau, nos termos do artigo 1202º, nº2 do CPC.

   A diferença, neste particular, reside, pois, no facto de que agora é a parte interessada que deve suscitar a questão do tratamento desigual no foro exterior à R.A.E.M., facilitando-se assim a revisão e a confirmação das decisões proferidas pelas autoridades estrangeiras, respeitando a soberania das outras jurisdições, salvaguardando apenas um núcleo formado pelas matérias da competência exclusiva dos tribunais de Macau e de conformidade com a ordem pública.
Não se conhecendo do fundo ou do mérito da causa, na revisão formal, o Tribunal limita-se a verificar se a sentença estrangeira satisfaz certos requisitos de forma e condições de regularidade1, pelo que não há que proceder a novo julgamento tanto da questão de facto como de direito.

Vejamos então os requisitos previstos no artigo 1200º do CPC.

Autenticidade e inteligibilidade da decisão.
Parece não haver dúvidas de que se trata de um documento autêntico devidamente selado e traduzido, certificando-se uma decisão relativa a uma autorização de um registo de um divórcio por mútuo consentimento proferida pelo departamento respectivo da República Popular da China, cujo conteúdo facilmente se alcança, em particular no que respeita aos efeitos jurídicos da dissolução do casamento, sendo certo que são estes que devem relevar.2

É certo que não se trata de uma sentença proferida por um Tribunal do Exterior, mas não deixamos de estar perante uma decisão proferida por uma autoridade administrativa que não deixa de produzir os mesmos efeitos, adoptando-se o critério que já tem seguido pelos Tribunais de Macau3 para confirmação de divórcios ocorridos perante autoridades administrativas ou até em termos de Jurisprudência Comparada.4
   
    Sob pena até de os interessados se verem na impossibilidade de reconhecimento na ordem interna relativamente ao seu próprio estado civil.

Quanto aos requisitos relativos ao trânsito em julgado, competência do tribunal ou autoridade do exterior, ausência de litispendência ou de caso julgado, citação e garantia do contraditório, dispõe o artigo 1204º do CPC:

    “O tribunal verifica oficiosamente se concorrem as condições indicadas nas alíneas a) e f) do artigo 1200º, negando também oficiosamente a confirmação quando, pelo exame do processo ou por conhecimento derivado do exercício das suas funções, apure que falta algum dos requisitos exigidos nas alíneas b), c), d) e e) do mesmo preceito”.
  
Tal entendimento já existia no domínio do Código anterior5, entendendo-se que, quanto àqueles requisitos, geralmente, bastaria ao requerente a sua invocação, ficando dispensado de fazer a sua prova positiva e directa, já que os mesmos se presumiam6.

    É este, igualmente, o entendimento que tem sido seguido pela Jurisprudência de Macau.7
  
    Ora, nada resulta dos autos ou do conhecimento oficioso do Tribunal, no sentido da não verificação desses requisitos que assim se têm por presumidos.

2. Já a matéria da competência exclusiva dos Tribunais de Macau está sujeita a indagação, implicando uma análise em função do teor da decisão revidenda, à luz, nomeadamente, do que dispõe o artigo 20º do CC:

“A competência dos tribunais de Macau é exclusiva para apreciar:
a) As acções relativas a direitos reais sobre imóveis situados em Macau
b) As acções destinadas a declarar a falência ou a insolvência de pessoas colectivas cuja sede se encontre em Macau.”

Ora, facilmente se observa que nenhuma das situações contempladas neste preceito colide com o caso sub judice, tratando-se aqui da revisão de um divórcio acordado por ambos os cônjuges e regulação das filhas do casal.

   3. Da ordem pública.
Não se deixa de ter presente a referência à ordem pública, a que alude o art. 273º, nº2 do C. Civil, no direito interno, como aquele conjunto de “normas e princípios jurídicos absolutamente imperativos que formam os quadros fundamentais do sistema, pelo que são, como tais, inderrogáveis pela vontade dos indivíduos.”8E se a ordem pública interna restringe a liberdade individual, a ordem pública internacional ou externa limita a aplicabilidade das leis exteriores a Macau, sendo esta última que relevará para a análise da questão.

   No caso em apreço, em que se pretende confirmar a decisão em que se autorizou o registo do divórcio, reconhecendo tais efeitos como extintivos da relação matrimonial em causa, não se vislumbra que haja qualquer violação ou incompatibilidade com a ordem pública. Aliás, sempre se realça que o nosso direito substantivo prevê a dissolução do casamento, igualmente por mútuo consentimento, por mera manifestação de vontade de ambos os cônjuges nesse sentido, preenchidos os respectivos requisitos.
   
   Temos presente ainda a regulação do poder paternal que se operou por vontade dos progenitores, não ferindo igualmente a regulação operada os princípios do nosso ordenamento, sendo as crianças entregues à guarda e cuidados do pai, com garantia da visita por parte da mãe, regulação essa bem podia aqui acontecer igualmente.
   
   À luz das leis da RPC mostra-se comprovada a dissolução do casamento, o que não fere os princípio do nosso ordenamento.

O pedido de confirmação do divórcio ocorrido na RPC não deixará, pois, de ser procedente, confirmação essa que não se estende ao acordo de partilha, situação que se aparta daqueles casos em que a partilha é homologada judicialmente.

V - DECISÃO
    Pelas apontadas razões, acordam conceder a revisão e confirmar o divórcio entre A (XXX) e B (XXX), bem como a regulação do poder paternal em relação às filhas do casal, XXX (XXX) e XXX (XXX), acordo registado no Departamento de Administração Civil do Distrito de Xiangzhou da Cidade de Zhuhai, Província de Guangdong, República Popular da China, em 24/5/2010, no sentido de poder produzir eficácia na RAEM, nos seus exactos termos constantes dos documentos juntos aos autos.

Custas pela requerente.
Macau, 6 de Junho de 2013,

João A. G. Gil de Oliveira
Ho Wai Neng
Choi Mou Pan (com declaração de voto vencido que se junta)


    
Declaração de Voto
Vencido nos seguintes termos:
Não posso deixar de discordar com a decisão de maioria que admitiu o pedido de revisão e confirmação do certificado do qual consta a decisão de dissolução do casamento proferida pelo Conservador de Registo Civil em Portugal.
A admissão do pedido da revisão e confirmação da decisão em questão pressupõe necessariamente a obtenção da resposta positiva das seguintes questões:
1. Pode o Tribunal da Região, nalguns casos, confirmar uma decisão tomada pela autoridade administrativa do exterior?
2. A decisão in casu carece da revisão e confirmação do Tribunal da região?
O que nos parece é que não podemos ter a resposta positiva. É desta premissa grande que partimos.
Não está em causa o incurso na apreciação à organização judiciária do exterior da RAEM, ao contrário, por isso mesmo, estamos perante um obstáculo à revisão e confirmação que consiste na decisão proferida por uma autoridade administrativa, em conformidade com a lei do local. Esta a firmação é diferente de que se afirma: trata-se de um obstáculo à revisão que a decisão não tenha sido proferida pelo Tribunal do local – esta que obviamente não está convergente com nossa. Pois nunca podemos exigir que a decisão de divórcio por mútuo consentimento, a tomar no exterior da Região, devia ser decretada também por Tribunal, como em Macau, para o efeito de ser revista e confirmada.
A nossa lei é muito clara, o artigo 1199º do Código de Processo Civil define o âmbito e o objecto do pedido de revisão e confirmação, que deve ser uma decisão de um Tribunal (mesmo com lato sensu, incluindo v.g. a decisão arbitral) sobre direito privado.
Aqui há duas delimitações:
Uma é delimitação subjectiva, deve o Tribunal ser o autor da decisão o objecto de revisão e confirmação;
Outra é delimitação objectiva, ou seja, o objecto de revisão e confirmação deve ser uma decisão sobre o direito privado.
Daí, a lei põe ênfase na “decisão do tribunal” e a letra a lei, de modo algum, permite fazer uma interpretação extensiva no sentido de considerar que é sujeita à revisão e confirmação uma decisão de autoridade administrativa.
Pois, na interpretação da lei, não se pode ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso – artigo 8º nº 2 do Código Civil.
Dispõe o artigo 1200º do CPC que “[p]ara que a decisão proferida por tribunal do exterior de Macau seja confirmada, é necessária a verificação dos seguintes requisitos: ....”.
Dispõe também o artigo 680º (Exequibilidade de decisões e outros títulos do exterior de Macau):
“1. Salvo disposição em contrário de convenção internacional aplicável em Macau ou de acordo no domínio da cooperação judiciária, as decisões proferidas por tribunais ou árbitros do exterior de Macau só podem servir de base à execução depois de revistas e confirmadas pelo competente tribunal de Macau.
2. Não carecem de revisão nem de confirmação pelos tribunais de Macau para ser exequíveis quaisquer outros títulos exarados fora de Macau.”
Como se sabe, os Tribunais do exterior de Macau estão nos ordenamentos jurídicos distintos e autónomos, e as suas decisões não podem ter eficácias noutro ordenamento sem estarem vigorados os acordos bilaterais entre os dois ordenamentos jurídicos ou são membros de acordos multilaterais sobre o reconhecimento da decisão sobre direito privado, razão por que a lei estabelece o mecanismo de revisão e confirmação da decisão dos Tribunais do exterior de Macau para evitar que a sua decisão impunha nesta Região, e vica-versa.
Mas isto não implica de maneira alguma que a lei pretende também competir o Tribunal o poder de rever e confirmar um acto, seja qual for a natureza, praticado pelo órgão administrativo do exterior de Macau.
Na obra do Prof. Alberto dos Reis, 《Processos Especiais》(vol II pp. 139 a 204) referia-se sempre à decisão do Tribunal sujeita à revisão, considerando que “o artigo 1100º (artigo 1094º do Código de 1961 e actualmente artigo 1199º nº 1 – acrescentado nosso) declara que, sem prejuízo do que se achar estabelecido em tratados e leis especiais, nenhuma decisão sobre direitos privados, proferida por tribunal estrangeiro ou por árbitros no estrangeiro, terá eficácia em Portugal, seja qual for a nacionalidade das partes, sem estar revista e confirmada”.
Sendo também certo que os Acórdãos do então T.S.J.M. de 29.01.97, Proc. nº 536, de 19.11.97 e do Plenário daquele mesmo Tribunal de 25.02.98, estes, do Proc. nº 786, firmaram que “a decisão de uma autoridade administrativa que decreta o divórcio por mútuo consentimento no exercício de competência que a lei local lhe confere é equiparada a decisão judicial, para efeitos de revisão e confirmação, cabendo na letra do nº 1 do artigo 1094º do CPC”, e nos Acórdãos deste TSI de 4 de Abril de 2001 do processo nº 33/2001, de 10 de Outubro de 2002 do processo nº 105/2002 e de 11 de Julho de 2002 do processo nº 76/2002 subscreveram esse entendimento, não podemos concordar, salvo o muito respeito, com estes entendimentos, pois quanto a nós, estes acórdão omitiram-se a justificar carecem da revisão e confirmação a respectiva decisão de uma organização administrativa sobre direito privado, ou seja, partiram esta premissa efectuaram a respectiva revisão e confirmação não devida.
Mesmo no caso de divórcio decretado pelo Tribunal do exterior de Macau, se a decisão for invocada apenas como mera prova do estado civil perante os respectivos serviços da Região, não é necessária a revisão – artigo 6º nº 2 do Código do Registo Civil aprovado pelo D.L. nº 59/99/M
Isto significa que, para admitir o presente pedido de revisão e confirmação, devemos de confirmar que carece revisão e confirmação da decisão, ou seja para a revisão e confirmação da decisão em causa deve obter uma resposta positiva daquela segunda questão.
Como se sabe, em Macau, o facto de divórcio, tal como os factos de nascimento, de casamento, de óbito, de filiação etc., está sujeito ao registo nos termos do artigo 1º do Código do Registo Civil, isto, porém, só vale para os factos ocorridos em Macau.
E os actos de registo lavrados fora da Região pelas entidades competentes, respeitantes a indivíduos com residência habitual na Região podem ingressar no registo civil em face dos documentos que os comprovem, em conformidade com a lei do local onde foram emitidos e desde que não haja manifesta incompatibilidade com a ordem pública. – no 1 do artigo 5º do Código do Registo Civil.
Se os actos respeitarem a indivíduos não abrangidos pelo número anterior, o seu ingresso no registo apenas será permitido quando o requerente mostre legítimo interesse na transcrição. – nº 2 deste artigo citado.
E o artigo 6º nº 1 dispõe sobre a decisão de tribunal do exterior de Macau, prevendo que “as decisões proferidas por tribunais do exterior de Macau relativas ao estado e à capacidade civil, depois de revistas e confirmadas, são directamente registadas por meio de averbamento aos assentos a que respeitam”.
Trata-se o documento apresentado de um certificado do acto que decretou o divórcio por mútuo consentimento na Conservatória em Portugal, deve ser apenas sujeito aos dispostos no Código do Registo Civil, já não à competente revisão e confirmação do Tribunal da Região.
Não carece, pois, a revisão e confirmação do Tribunal, ainda por cima, ao próprio conservador na RAEM já foi conferido o poder de decretar o divórcio por consentimento – artigo 1634° do Código Civil, tendo os mesmos efeitos das sentenças judiciais.
Se afirmássemos que, por natureza da questão em causa, há lugar à revisão e confirmação da decisão que decretou o divórcio por mútuo consentimento, não interessando o facto de ser proferido por um órgão administrativo, estaríamos a introduzir nosso juízo de valor sobre a decisão administrativa do exterior de Macau ou indevida apreciação sobre a organização administrativa do exterior de Macau.
Pelo que devia considerar não ter este Tribunal a jurisdição para a revisão e confirmação do documento juntado, e, em consequência, indeferir-se o pedido.
    RAEM, aos 6 de Junho de 2013
    
    Choi Mou Pan


1 - Alberto dos Reis, Processos Especiais, 2º, 141; Proc. nº 104/2002 do TSI, de 7/Nov/2002
2 - Ac. STJ de 21/12/65, BMJ 152, 155
3 - AC. TSJ de Macau, de 29/1/97, proc. 536 e 19/11/97, proc. 632; TSI, de 11/7/02, proc. 76/2002, CJTSI, 2002, II, 1285; Acs. do TSI, proc. 121/09, de 4/6/09; proc.79/09, de 14/5/09
4 - Acs da RL, de 15/1/82, proc. 14857, BMJ 322, 369; RP, de 12/7/83, CJ 83, 4º, 221
5 - cfr. artigo 1101º do CPC pré-vigente
6 - Alberto dos Reis, ob. cit., 163 e Acs do STJ de 11/2/66, BMJ, 154-278 e de 24/10/69, BMJ, 190-275
7 - cfr. Ac. TSJ de 25/2/98, CJ, 1998, I, 118 e jurisprudência aí citada, Ac. TSI de 27/7/2000, CJ 2000, II, 82, 15/2/2000, CJ 2001, I, 170, de 24/5/2001, CJ 2001, I, 263 de 11/4/2002, proc. 134/2002 de 24/4/2002, entre outros
8 -João Baptista Machado, Lições de DIP, 1992, 254
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762/2012 24/24