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Processo n.º 4/2013
Recurso Civil
Recorrente: A
Recorrida: B
Data da conferência: 9 de Abril de 2014
Juízes: Song Man Lei (Relatora), Sam Hou Fai e Viriato Manuel Pinheiro de Lima

Assuntos: - Embargos de terceiro
- Direito de propriedade
- Direito de retenção
 - Posse

SUMÁRIO

1. Nos termos do art.º 292.º n.º 1 do Código de Processo Civil, os embargos podem fundar-se na invocação da posse sobre o bem por parte do embargante, ou em qualquer direito incompatível com a realização ou o âmbito da diligência.
2. E ao abrigo do n.º 2 do art.º 298.º do Código de Processo Civil, quando os embargos apenas se fundem na invocação da posse, pode qualquer das partes primitivas, na contestação, pedir o reconhecimento, quer do seu direito de propriedade sobre os bens, quer de que tal direito pertence à pessoa contra quem a diligência foi promovida.
3. Daí decorre que, no presente caso, só por ser a posse do direito de propriedade o único fundamento dos embargos, e não qualquer outro direito incompatível com a penhora referido no art.º 292.º n.º 1 do Código de Processo Civil, é que foi possível o reconhecimento da propriedade do executado, nos termos do art.º 298.º n.º 2 do Código de Processo Civil.
4. Se o direito de retenção tivesse sido invocado e provado nos autos, seria irrelevante a questão da propriedade, sendo que o direito de propriedade nunca se poderia sobrepor ao direito de retenção.
5. Quando os embargos apenas se fundem na invocação da posse do direito de propriedade, o reconhecimento do direito de propriedade conduz a que os embargos sejam julgados improcedentes, a menos que a posse invocada pelo embargante fosse causal, que é apenas a do proprietário ou do titular de direito real menor.
  
A Relatora,
Song Man Lei
  ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU:
  
  
1. Relatório
B, melhor identificada nos autos, deduziu no Tribunal Judicial de Base embargos de terceiro contra A, pedindo que fosse reconhecida a sua posse sobre o imóvel penhorado à ordem dos presentes autos como legítima, pacífica, pública, a título oneroso, de boa fé e titulada, que lhe fosse restituída a posse do imóvel e que fosse ordenado o levantamento da penhora bem como o cancelamento do respectivo registo.
Ordenada a restituição provisória à embargante da posse do imóvel em causa, veio a embargada A apresentar a contestação/reconvenção, entendendo que se deve:
a) serem julgados improcedentes os embargos por intempestivos, ou, se assim não se entender;
b) ser, em sede de reconvenção, o contrato promessa junto aos autos como doc. 1 declarado nulo por simulação e, consequentemente, os presentes embargos serem julgados improcedentes; ou, se assim não se entender;
c) serem julgados improcedentes os embargos por não provados; ou, se assim não se entender,
d) ser, em sede de reconvenção, o direito de propriedade do executado sobre o imóvel penhorado reconhecido, e, consequentemente, os presentes embargos serem julgados improcedentes.

Por sentença proferida em 26 de Outubro de 2011, o Tribunal julgou improcedentes os embargos e parcialmente procedentes os pedidos reconvencionais e, em consequência, decidiu:
1. Absolver a embargada da instância relativa ao pedido de declaração da posse com as características indicadas pela embargante;
2. Absolver a embargante da instância relativa ao pedido de declaração de nulidade do contrato promessa formulado pela embargada;
3. Absolver a embargada dos restantes pedidos formulados pela embargante;
4. Reconhecer o executado Ieng Kuong Fai como proprietário da fracção autónoma em causa.

Inconformada com a decisão, recorreu a embargante B para o Tribunal de Segunda Instância, que decidiu “conceder provimento ao recurso e, revogando a decisão recorrida, julga-se apenas parcialmente a reconvenção, na medida em que se reconhece o executado como proprietário da fracção, mas improcedente na parte em que se pede a improcedência dos embargos, antes julgando-se estes procedentes, restituindo-se a fracção à embargante, levantando-se a respectiva penhora e concelando-se o respectivo registo”.

Deste Acórdão vem agora a embargada A recorrer para o Tribunal de Última Instância, apresentando as alegações com a formulação das seguintes conclusões:
1. Em traços largos, o presente recurso versa sobre duas vexatas quaestios: a primeira, traduz-se em saber se o contrato-promessa com tradição da coisa para o Promitente-comprador, a Embargante e ora Recorrida será, por si só, suficiente para transferir a “posse efectiva”; a segunda, em saber até que ponto uma penhora poderá afectar o direito de retenção (não invocado) da promitente-compradora, Embargante e Recorrida sobre uma fracção cuja propriedade pertence ao Promitente-vendedor, no caso, ao Executado;
2. Entendeu o Tribunal de Segunda Instância, louvando-se, nomeadamente, nos ensinamentos do Prof. Vaz Serra, que o promitente-comprador que pratica actos correspondentes ao exercício do direito de propriedade goza dos meios possessórios que a lei reconhece ao possuidor para defesa da sua posse, com os embargos de terceiro;
3. Acontece, porém, que da matéria de facto dada como provada – descontado o facto de a Recorrida e promitente-compradora ter dado de “arrendamento” ao Executado e promitente-vendedor a fracção em causa – o que não deixou de suscitar fortes dúvidas e reservas por parte do próprio TSI, dada a estranheza da situação (isto é, “que alguém que tenha vendido (prometido vender) a coisa, recebido o preço, ali continue na situação de arrendatário”) – nada resultou no sentido de ter ficado demonstrado a prática de qualquer outro acto correspondente ao exercício do direito de propriedade por parte da Recorrida sobre o imóvel;
4. Não resultou demonstrado que a Recorrida tenha exercido actos correspondentes ao exercício do direito de propriedade sobre o imóvel, actos esses que tenha exercido de forma pública, notória e pacífica, v.g., que tenha procedido à limpeza, à conservação, à instalação de linhas de telefone, à alteração dos contadores de água, luz ou electricidade para seu nome, ou que tenha efectuado uma qualquer obra de beneficiação, de manutenção ou de reparação sobre a referida fracção, em termos que se pudesse entender que se tivesse comportado, aos olhos de todos, como sendo a verdadeira proprietária da fracção em causa.
5. De onde, na falta de outros elementos reveladores da “posse” da Recorrida, ter-se-ia de concluir que o contrato promessa, mesmo que acompanhado da traditio da coisa, não é, por si só, susceptível de transmitir a posse à Recorrida, in casu promitente compradora, visto que a sua celebração não conduz à aquisição da posse causal, nem formal;
6. E como tal, diferentemente do que entendeu o Tribunal de Segunda Instância, a Recorrida não tem a posse, correspondente ao direito de propriedade sobre a fracção em causa, porquanto, como resultou confirmado pela mesma decisão, a propriedade da fracção pertence ao ora Recorrente e, como tal, não será admissível à Recorrida gozar dos meios possessórios que a lei reconhece ao verdadeiro possuidor e, em concreto, os embargos de terceiro.
7. Tratando-se de um contrato promessa sem eficácia real, com base no referido contrato promessa, a Recorrida apenas detém o direito de exigir a celebração do contrato prometido e apenas com a celebração deste outro contrato é que a mesma poderá vir a adquirir a propriedade do imóvel, que ainda e para todos os efeitos pertence ao promitente vendedor, o Executado, tal como concluiu e confirmou o Tribunal de Segunda Instância;
8. De onde se conclui que, reconhecido que o direito de propriedade do imóvel penhorado pertence e continua a pertencer ao Executado, nunca o seu direito de propriedade poderá ceder perante a celebração de um simples contrato promessa ao qual nem sequer foi atribuída eficácia real pelas partes;
9. Sempre que os embargos de terceiro sejam fundados na posse, a legitimidade activa baseia-se numa presunção de propriedade (ou de outro direito real de gozo) que, como tal, pode ser ilidida, proporcionando-se ao executado e ao Exequente, o aqui Recorrente, a alegação e a prova de que o direito de fundo (in casu, o direito de propriedade) pertence a este e, neste sentido, provada a alegação, os embargos serão julgados improcedentes.
10. Contrariamente ao que terá sido pressuposto pelo Tribunal de Segunda Instância, compulsados os autos, não resulta que o promitente-comprador, embargante e aqui Recorrida, tenha, em momento algum reclamado ser titular de um qualquer direito de retenção sobre a fracção em causa;
11. De onde se afigura no mínimo estranho que o Tribunal de Segunda Instância tenha feito assentar a sua decisão num determinado direito que configura uma forma de tutela privada que não foi sequer invocado pelo respectivo interessado;
12. Seja como for, sabido que o direito de retenção é um direito real de garantia do crédito resultante do não cumprimento imputável à outra parte, o facto de alguém ter sobre uma coisa um direito real de garantia não torna essa coisa impenhorável numa execução instaurada por quem quer que seja;
13. É que o poder de realizar à custa da coisa determinado valor não é afectado pela penhora. A execução não causa ao promitente-comprador qualquer prejuízo – apenas o força ou incita a reclamar o seu crédito nesse mesmo processo;
14. De onde se retira que, contrariamente ao entendimento do Tribunal de Segunda Instância, no caso dos autos, não resulta uma incompatibilidade entre o direito de retenção e a penhora e, como tal, reconhecida que foi a propriedade do imóvel por parte do Executado, tal será quanto baste para obstar ao efeito útil dos embargos tal qual pretendido pela Recorrida.
15. Com efeito, estando em causa um contrato-promessa, sem garantia real, em caso algum o direito de retenção poderá ser susceptível de impedir a penhora do bem, porquanto apenas garante ao promitente-comprador, in casu à Recorrida, o direito de ser paga no valor do sinal em dobro com preferência sobre os demais credores do promitente vendedor, para o que deveria reclamar o seu crédito em sede de concurso de credores;
16. Donde a Recorrida, enquanto promitente-compradora, mesmo que tenha existido traditio da coisa e que a mesma seja titular de um direito de retenção (o que tão-só uma vez mais por cautela e exposição de raciocínio se invoca), não pode opor-se à penhora da fracção realizada em acção executiva desencadeada por credor do promitente-vendedor, contra este;
17. Mas mesmo que se aceitasse que a Recorrida, enquanto promitente-compradora, fosse titular de um direito de retenção sobre a fracção em causa, ainda assim, tal direito nunca se destinava a consagrar à mesma a fruição de qualquer direito de gozo, mas antes em garantir o pagamento do seu crédito – dobro do sinal prestado – no pressuposto de que existe incumprimento definitivo imputável ao promitente-vendedor;
18. Contrariamente ao entendimento do Tribunal de Segunda Instância, não existe uma qualquer incompatibilidade entre o (suposto) direito de retenção da Recorrida e da penhora operada, porquanto esta deixa intocado, não só o crédito como a garantia da embargante/Recorrida, que deverá ser chamada à reclamação e à graduação preferencial do que lhe é devido, em resultado da quantia que prestou, aquando da celebração do contrato promessa de compra e venda;
19. E, neste sentido, o direito de retenção não é incompatível com a penhora ou apreensão judicial, porque o seu titular encontra amparo para o seu direito de crédito no esquema da acção executiva;
20. Certo é que, também por aqui, a Recorrida e embargante não poderá vir basear a sua “posse” em qualquer direito de retenção, assente na existência de um direito de crédito sobre o promitente-vendedor, por incumprimento do contrato-promessa por este, pois para isso necessitavam de invocar e provar o incumprimento definitivo do contrato-promessa, que não invocou, nem a quem tal incumprimento pudesse ser imputado;
21. Com efeito, dos autos nada resulta no sentido da embargante e ora Recorrida ter interpelado o executado para a realização da escritura pública de compra e venda, com indicação do dia e hora exactos para o efeito;
22. Mas mesmo que o tivesse provado, o que não fez, que o incumprimento definitivo do contrato-promessa seria imputável ao promitente vendedor, ainda assim a embargante/Recorrida apenas gozaria do direito de reclamar créditos na acção executiva, não sendo a sua alegada posse ofendida com a penhora, ficando afastados todos os requisitos legais dos embargos de terceiros, uma vez que o direito de retenção não visa manter o promitente-comprador na fruição de qualquer direito de gozo, mas antes garantir o pagamento do seu crédito, reclamando-o em sede de acção executiva;
23. De onde resulta que, contrariamente ao decidido pelo Tribunal de Segunda Instância, não tendo a Recorrida “posse” em termos de propriedade, ou de outro direito real de gozo, haveria de se ter concluído que os embargos de terceiro não são o meio idóneo para defesa de eventuais direitos da mesma;
24. Contrariamente ao decidido pelo Tribunal de Segunda Instância, ainda que existisse direito de retenção – e o ora Recorrente não pode aceitar que tal direito exista – tal suposto direito de retenção não é incompatível com a penhora ou apreensão judicial.
25. Por último, ainda que existisse direito de retenção – e o Recorrente reitera que não existe – a verdade é que, contrariamente ao que se afirma no Acórdão recorrido, tal direito de retenção (uma vez invocado) sempre seria posterior à penhora, donde não poderia prevalecer sobre tal direito – de penhora – primeiramente constituído.
26. Com efeito, o art. 749.º, n.º 2 do Código Civil excepciona de forma muito clara as situações em que o direito de retenção nasce da celebração de um contrato promessa, consignando que: “ ... na hipótese figurada na alínea f) do n.º 1 do artigo 745.º o prevalece o direito que mais cedo se houver constituído.”
27. Ora, o direito de retenção não nasce da mera celebração de um contrato promessa com traditio da coisa, mas sim da situação de incumprimento do contrato imputável ao promitente vendedor.
28. No caso, para além de não ter sido invocado qualquer direito retenção, ainda que o mesmo existisse – o que implicaria a alegação e prova do incumprimento do contrato promessa – tal direito sempre teria nascido em momento posterior à penhora, razão pela qual, ao abrigo do art. 749.º, n.º 2 do Código Civil, a penhora sempre terá de prevalecer sobre tal suposto direito de retenção.
29. Pelo exposto, violou a decisão recorrida o disposto nos arts. 292.º, n.º 1, 298.º, n.º 2 do Código de Processo Civil, em conjugação com o disposto nos arts. 814.º, n.º 2, 744.º, 745.º, n.º 1, al. f) e 749.º, n.º 2 do Código Civil, pelos motivos que se desenvolveram nas presentes alegações.

Contra-alegou a embargante B, formulando as seguintes conclusões:
A) É insusceptível de qualquer crítica, ou reparo, o douto Aresto proferido pelo Tribunal a quo.
B) Tal como já reconhecido pelas doutas Instâncias, a Recorrida têm, efectivamente a posse do imóvel em questão.
C) Decidiu bem o douto Tribunal a quo, quando apreciou a questão do Direito de Retenção, considerando-o incompatível com a penhora sendo, de igual modo, tal decisão insuscetível de qualquer crítica ou reparo.
D) Mesmo que abstractamente considerado, a Recorrida, através do exercício do direito de retenção sobre o imóvel, viria a obter, a final, não o pagamento do sinal em dobro, como pertende a Recorrente fazer crer, mas a execução específica do contrato-prometido, logo o direito de propriedade sobre o imóvel que, por sua vez, seria sempre incompatível com a penhora efectuada pela Recorrente.

Foram corridos os vistos.
Cumpre decidir.

2. Factos Provados
Foram dados como provados os seguintes factos:

“Da Matéria de Facto Assente:
- Em 4 de Fevereiro de 2009 foi penhorada à ordem dos autos de execução de que estes são apenso a fracção autónoma destinada a habitação, designada por “XX” do [Endereço], inscrito na matriz predial sob o artigo XXXXXX e descrito Conservatória do Registo Predial de Macau sob o nº XXXXX a fls 139v do livro B-XX, com o título constitutivo da propriedade horizontal, registado sob o nº XXX do livro FX e inscrição do proprietário nº XXXXXG (alínea A) dos factos assentes).
- A penhora referida em A) foi inscrita na competente Conservatória do Registo Predial em 4 de Fevereiro de 2009 (alínea B) dos factos assentes).
- Em 25 de Junho de 2008 relativamente à fracção autónoma identificada em A) foi inscrita provisoriamente na Conservatória do Registo Predial a aquisição a favor da embargante com base em contrato de promessa de compra e venda de 21 de Maio de 2008 (alínea C) dos factos assentes).
- Damos aqui por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais o documento de folhas 37 a 39 (alínea D) dos factos assentes).
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Da Base Instrutória:
- Em 25 de Fevereiro de 2009, a embargante obteve a certidão do registo predial da fracção autónoma em A) dos factos assentes (resposta ao quesito da 1º da base instrutória).
- Em 21 de Maio de 2008 o executado quis prometer vender à ora embargante e esta quis prometer comprar a fracção referida em A) (resposta ao quesito da 2º da base instrutória).
- Na data referida no item anterior a embargante recebeu as chaves da fracção autónoma referida em A) (resposta ao quesito da 3º da base instrutória).
- A embargante pagou nessa data ao executado a quantia de HKD$1.200.000,00 e o pagamento diferido por um mês de HKD$250.000,00, que a embargante já efectuou (resposta ao quesito da 4º da base instrutória).
- A embargante e a parte tencionavam transmitir todas as faculdades de gozo daquela fracção autónoma do executado para a embargante (resposta ao quesito da 5º da base instrutória).
- O executado por não estarem ainda concluídas as negociações atinentes à alteração da sua residência, tomou de arrendamento à ora embargante a fracção referida em A) (resposta ao quesito da 6º da base instrutória).
- Pelo referido no item anterior o executado paga à embargante a quantia mensal de MOP$1.500,00 (resposta ao quesito da 7º da base instrutória).”

3. Direito
A embargada recorrente restringe o seu recurso a duas questões:
- Se o contrato promessa com tradição da coisa para o promitente- comprador será, por si só, suficiente para transferir a posse efectiva?
- Até que ponto uma penhora poderá afectar o direito de retenção (embora não invocado) do promitente-comprador sobre uma fracção cuja propriedade pertence ao promitente-vendedor?

3.1. Sobre a posse
Na óptica da recorrente, da matéria de facto provada nada resultou no sentido de ter ficado demonstrado a prática de quaisquer actos correspondentes ao exercício do direito de propriedade sobre o imóvel por parte da recorrida, com excepção do facto de a recorrida e promitente-compradora ter dado de arrendamento ao executado e promitente-vendedor a fracção em causa e, na falta de outros elementos reveladores da posse da recorrida, deve concluir-se que o contrato promessa, mesmo que acompanhado da traditio da coisa, não é, por si só, susceptível de transmitir a posse à recorrida, visto que a sua celebração não conduz à aquisição da posse causal, nem formal, pelo que a recorrida não tem a posse, correspondente ao direito de propriedade sobre a fracção em causa.
Ora, independentemente da discussão sobre se assiste razão à recorrente, é de salientar, desde logo, que a questão já estava decidida com trânsito em julgado.
Na realidade, constata-se nos autos que a ora recorrida, promitente-compradora da fracção autónoma, deduziu embargos de terceiro, pedindo o levantamento de penhora, com fundamento de que tinha a posse, em nome próprio, do direito de propriedade da fracção, por ter pago a totalidade do preço da prometida venda, de lhe terem sido entregues as chaves da fracção e de ter sido outorgada procuração conferindo-lhe todos os poderes para administrar a fracção, bem como de ter arrendado a fracção ao proprietário registado.
Em reconvenção, a embargada ora recorrente pediu o reconhecimento do direito de propriedade do executado sobre a fracção, nos termos do n.º 2 do artigo 298.º do Código de Processo Civil.
E na sentença de primeira instância, decidiu-se que a embargante ora recorrida tinha a posse do direito de propriedade do imóvel e que a mesma foi ofendida pela penhora mas julgou procedente o mencionado pedido reconvencional, reconhecendo o embargado como proprietário da fracção, pelo que os embargos foram julgados improcedentes.
Desta decisão recorreu a embargante, pedindo a restituição da posse da fracção, o levantamento da penhora sobre o imóvel bem como o cancelamento do respectivo registo.
Na sua contra-alegação a embargada ora recorrente veio alegar que o direito de propriedade pertencente ao executado prevalece sobre a posse da embargante e pediu a improcedência do recurso.
Ora, nota-se que, na sua contra-alegação, a embargada não pôs em causa a sentença na parte em que decidiu que a embargante tinha a posse da fracção, não tendo impugnado a sentença nos termos do artigo 590.º, n.º 1, do Código de Processo Civil.
Não obstante a abordagem feita pelo Acórdão do Tribunal de Segunda Instância sobre a questão da posse, certo é que tal questão não foi suscitada no recurso interposto para Tribunal de Segunda Instância, já que a decisão de primeira instância na parte que decidiu ter a embargante a posse do direito de propriedade da fracção não foi impugnada.
Não é de conhecer da questão suscitada no presente recurso.

3.2. Sobre o direito de detenção
Desde logo, vale a pena repetir que os embargos de terceiro foram deduzidos pela recorrida, promitente-compradora de fracção autónoma, que pediu o levantamento de penhora, apenas com um fundamento, o de que tinha a posse, em nome próprio, do direito de propriedade da fracção.
Dos autos decorre que a embargante nem sequer invocou o direito de retenção.
Nos termos do art.º 744.º do Código Civil de Macau, “o devedor que disponha de um crédito contra o seu credor goza do direito de retenção se, estando obrigado a entregar certa coisa, o seu crédito resultar de despesas feitas por causa dela ou de danos por ela causados”.
E ao abrigo da al. f) do n.º 1 do art.º 745.º do mesmo Código, goza ainda do direito de detenção “o beneficiário da promessa de transmissão ou constituição de direito real que obteve a tradição da coisa a que se refere o contrato prometido, sobre essa coisa, pelo crédito resultante do não cumprimento imputável à outra parte, nos termos do artigo 436.º”.
Daí que o direito de retenção pressupõe o incumprimento do promitente-vendedor1.
No presente caso, o incumprimento legalmente exigido como pressuposto do direito de detenção nunca foi alegado no requerimento de embargos, nem posteriormente.
E não se constata nos autos nenhum facto que revele minimamente o incumprimento do contrato-promessa por parte do promitente vendedor.
O Acórdão ora recorrido decidiu sobre a questão de saber se a embargante tinha ou não direito de retenção sobre a fracção, quando não o podia fazer, já que o único fundamento dos embargos, isto é, a sua causa de pedir, foi a posse do imóvel e não o direito de retenção da embargante a título de promitente-compradora com tradição da coisa. Como se disse atrás, o direito de retenção pressupõe o incumprimento do promitente-vendedor e este incumprimento não foi alegado no requerimento de embargos, nem posteriormente.
Ora, os embargos podem fundar-se na invocação da posse sobre o bem por parte do embargante, ou em qualquer direito incompatível com a realização ou o âmbito da diligência (art.º 292.º n.º 1 do Código de Processo Civil).
E nos termos do art.º 298.º n.º 2 do Código de Processo Civil, “quando os embargos apenas se fundem na invocação da posse, pode qualquer das partes primitivas, na contestação, pedir o reconhecimento, quer do seu direito de propriedade sobre os bens, quer de que tal direito pertence à pessoa contra quem a diligência foi promovida”.
Daí decorre que só por ser a posse do direito de propriedade o único fundamento dos embargos, e não qualquer outro direito incompatível com a penhora referido no art.º 292.º n.º 1 do Código de Processo Civil, é que foi possível o reconhecimento da propriedade do executado, nos termos do art.º 298.º n.º 2 do Código de Processo Civil.
Se o direito de retenção tivesse sido invocado e provado nos autos, seria irrelevante a questão da propriedade, como é bem de ver2. O direito de propriedade nunca poderia sobrepor-se ao direito de retenção.
Na realidade, posse e direito de retenção são realidades completamente diversas, sendo a posse uma situação de facto, e não um direito3, enquanto o direito de retenção é um direito real de garantia.

Resta saber se o Acórdão ora recorrido violou o disposto no art.º 298.º n.º 2 do Código de Processo Civil, que admite o pedido de reconhecimento, formulado por qualquer das partes primitivas na contestação, do seu direito de propriedade sobre os bens ou de que tal direito pertence à pessoa contra quem a diligência foi promovida, quando os embargos apenas se fundem na invocação da posse.
Afigura-se-nos que o Acórdão recorrido fez má aplicação de tal norma, já que se baseou na circunstância de o direito de retenção não ser afectado pela venda executiva.
Por um lado, nos autos não foi alegado o direito de retenção.
Por outro, para efeitos do disposto na mesma norma, só a titularidade da posse releva, mas não a titularidade de um direito, como é o caso do direito de retenção.
Ora, quando os embargos apenas se fundem na invocação da posse do direito de propriedade – como foi caso – o reconhecimento do direito de propriedade conduz a que os embargos sejam julgados improcedentes, a menos que a posse invocada pelo embargante fosse causal.
Ora, a posse causal é apenas a do proprietário ou do titular de direito real menor.4
Nas palavras de LEBRE DE FREITAS, “o possuidor, ou possuidor em nome próprio, pode agir por força do direito real de que é titular, caso em que a sua posse é uma projecção ou expressão de um jus in re existente. Tal posse não é então uma posse autónoma, pois constitui uma faculdade jurídica secundária do direito subjectivo. Chama-se a essa posse posse causal, porque tem causa no direito. Mas o possuidor pode também agir sem direito real nenhum (ou porque nunca intentou adquiri-lo, ou o intentou adquirir por acto inválido ou inexistente), posto aja, mesmo assim, como se o tivesse. Tem então uma posse sem fundamento, sem causa, num direito dado, uma posse autónoma a que se chama posse formal”.
E “a posse em sentido técnico, isto é, posse formal ou autónoma, não é evidentemente um direito, embora seja fonte de consequências jurídicas e até de direito, se quisermos. É, sim, uma situação de facto juridicamente relevante, …”.5
Escreve ainda o mesmo autor que “quando os embargos de terceiros são fundados penas na posse (do embargante ou do terceiro em nome do qual ele possui), a legitimidade activa baseia-se numa presunção de propriedade (ou de outro direito real de gozo) que, como tal, pode ser ilidida, vindo o art. 357-26 proporcionar, quer ao exequente, quer ao executado, a alegação e a aprova de que o direito de fundo (seja o direito de propriedade, seja outro direito real de gozo) pertence a este, provada a alegação, os embargos serão julgados improcedentes.
Uma vez que a questão da propriedade, após a sua invocação pelo embargado, prevalece sobre a da posse, só o possuidor causal, ou o possuidor formal de coisa não pertencente ao executado, pode ter a segurança, uma vez provada a causa de pedir, de que os embargos não serão julgados improcedentes”.7
E “a invocação do direito de fundo visa destruir a presunção de propriedade (ou outro direito real de gozo) de que goza o possuidor. Deslocando o objecto do processo para o plano do direito de fundo, a questão da posse só se tornará de novo relevante após decisão que negue o reconhecimento desse direito, visto que este prevalece sobre a posse (sem prejuízo de esta poder ter levado à usucapião, que o embargante tem o ónus de invocar na réplica, se existir, ou em novo articulado, por … se tratar de desenvolvimento do pedido primitivo)”. 8
Ora, no caso sub júdice, a embargante recorrida não tem a posse causal sobre o imóvel, nem foi invocado o direito de detenção, e ficou provado que o direito de propriedade do imóvel pertence ao executado, pelo que se deve concluir pela improcedência dos embargos.
E é certo que não foi invocada a aquisição da propriedade por usucapião, designadamente, na réplica, daí que é seguro que a sua mera posse não causal soçobra perante a prova da propriedade.

Impõe-se, pois, revogar o Acórdão recorrido, julgando os embargos improcedentes.

4. Decisão
Face ao exposto, acordam em conceder provimento ao presente recurso, revogando o Acórdão recorrido e julgando os embargos improcedentes.
Custas pela recorrida.
  
Macau, 9 de Abril de 2014
  
   Juízes: Song Man Lei (Relatora) – Sam Hou Fai –
Viriato Manuel Pinheiro de Lima
  
1 Doutrina pacífica, aplicável a todos os direitos reais de garantia.
2 CÂNDIDA PIRES e VIRIATO LIMA, Código de Processo Civil de Macau Anotado e Comentado, vol. II, p. 230.
3 ORLANDO DE CARVALHO, Introdução à Posse, em Direito das Coisas, Coimbra Editora, 2012, p. 268 e 269.
4 ORLANDO DE CARVALHO, Introdução à Posse, em Direito das Coisas, Coimbra Editora, 2012, p. 267 e LEBRE DE FREITAS, Acção Executiva depois da Reforma, 4.ª edição, p. 292.
5 ORLANDO DE CARVALHO, Introdução à Posse, em Direito das Coisas, Coimbra Editora, 2012, p. 269.
6 Corresponde ao art.º 298.º n.º 2 do Código de Processo Civil de Macau, com a redacção idêntica.
7 LEBRE DE FREITAS, Acção Executiva depois da Reforma, 4.ª edição, p. 292.
8 LEBRE DE FREITAS, JOÃO REDINHA E RUI PINTO, Código de Processo Civil Anotado, vol 1.º, 2.ª ed., p.677.
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