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Recurso Jurisdicional nº 341/2013
Relator: Cândido de Pinho
Data do acórdão: 25 de Julho de 2013
Descritores:
-Marcas
-Elementos gráficos

SUMÁRIO:

I- A marca exerce uma função de garantia de qualidade não enganosa, visando associar um produto ou serviço a determinado produtor ou prestador e evitar no consumidor o erro e a confundibilidade de origem e proveniência.

II- Nesse sentido, uma marca que exclusivamente inclua termos genéricos ou descritivos, que apenas sirvam para designar a proveniência geográfica do produto ou do serviço, ou que não identifiquem nenhum produto ou serviço com origem numa determinada zona de Macau, como sucede com “The Heart of Cotai”, não pode ser objecto de registo.




Proc. nº 341/2013

Acordam no Tribunal de Segunda Instância da R.A.E.M.

I - Relatório
“A”, sociedade comercial constituída nas Ilhas Vigens VBritânicas, com sede em P.O. Box XXX, XXX Centre, Road Town, XXX, Ilhas Virgens Britânicas, recorreu judicialmente junto do TJB da decisão da Direcção dos Serviços de Economia publicada no B.O., II, de 4 de Janeiro de 2012, que concedeu o registo da marca “The Heart of Cotai” para a classe 25, a que coube o número N/55924, a “Las Vegas Sands Corp.”.
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Após a resposta da Direcção dos Serviços de Economia e da “Las Vegas Sands Corp” foi proferida sentença que concedeu provimento ao recurso e revogou a decisão recorrida e substituiu por outra que recusou o registo da referida marca.
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É contra tal sentença que ora vem interposto o presente recurso, apresentado por “Las Vegas Sands Corp. (doravante apenas “Sands”), em cujas alegações formulou as seguintes conclusões:
«a) A marca N/55924 THE HEART OF COTAI é uma marca nominativa complexa, em cuja composição surge apenas uma palavra que pode ser considerada descritiva, já que constitui um topónimo: COTAI.
b) THE HEART OF, traduzido por O CORAÇÃO DE, constitui uma alusão, uma referência indirecta, ao núcleo ou centro do COTAI, corno pode também ser entendido corno uma alusão ao coração como alma, à representação mais original, mais verdadeira ou mais genuína do que é o COTAI.
c) Para que urna marca possa ser admitida a registo, basta que possua um mínimo de capacidade distintiva.
d) Uma marca só é descritiva se for exclusiva e directamente descritiva.
e) A marca THE HEART OF COTAI não é exclusivamente constituído por uma indicação que serve para estabelecer a proveniência geográfica dos produtos ou serviços marcados e, corno tal, cumpre o requisito do mínimo de capacidade distintiva.
f) A Recorrente não pretende obter qualquer exclusivo sobre a designação COTAI mas, tão-só, sobre o conjunto formado por essa indicação geográfica e pelas demais expressões que constituem a marca e que lhe conferem uma distintividade própria.
g) Trata-se, pois, de uma marca que permite distinguir os serviços prestados pela Recorrente daqueles que sejam prestados por outros empresários e que é capaz de preencher igualmente as funções complementares da marca, quais sejam, a garantia de qualidade dos serviços que assinala e publicitária.
h) Ao considerar que a marca THE HEART OF COTAI é destituída de capacidade distintiva, a decisão recorrida incorre num erro de julgamento e faz uma errada aplicação da norma contida na alínea b) do n.º 1 do artigo 199.º e do artigo 197.º, ambos do RJPI».
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Não houve contra-alegações.
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II - Os Factos
A sentença recorrida deu por assente a seguinte factualidade:
«Em 19 de Abril de 2011, a recorrida Las Vegas Sands Corp. requereu o registo da marca N/55924 para a classe de produtos nº 25 a qual consiste em
“THE HEART OF COTAI”
A marca destina-se ao vestuário.
Foi publicado no B.O., nº 22 da II Série de 1 de Junho de 2011, o pedido de registo de marca.
O registo foi concedido por despacho pela Srª Chefe de Departamento das Propriedades Intelectuais de 13 de Dezembro de 2011 e publicado no B.O. nº 1, II Série, de 4 de Janeiro de 2012.
A recorrente é titular dos registos de marca com os nºs N/26014, para a classe nº 14; N/26015, para a classe nº 16; N/26016, para a classe nº 18; N/26017, para a classe nº 20; N/26018, para a classe nº 24; N/26019, para a classe nº 25; N/26020, para a classe nº 28; N/26021, para a classe nº 35; N/26022, para a classe nº 36; N/26023, para a classe nº 38; N/26024, para a classe nº 39; N/26025, para a classe nº 41, e N/26026, para a classe nº 43.
Todas essas marcas da recorrente foram concedidas em 02 de Fevereiro de 2009 e consistem em “WHERE COTAI BEGINS”.»
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III - O Direito
Porque estamos perante um caso praticamente igual ao tratado no âmbito do processo de recurso nº 304/2013, disputado entre as mesmas partes e relativamente ao registo da marca muito semelhante (“The Heart Of Cotai”), diferenciada somente na classe para que foi concedida, reproduziremos, com o devido respeito o que no aresto além proferido foi asseverado em 20/06/2013.
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“1 - Na petição inicial do recurso judicial, a “A” invocava vários argumentos para pedir o cancelamento do registo feito a favor das “Las Vegas Sands” da marca “The Heart Of Cotai”, a saber:
- Tal marca constitui uma imitação de várias outras pertencentes à recorrente, que constam essencialmente da composição “Where Cotai Begins”;
- Existe um risco de afinidade entre os produtos da recorrente e da recorrida particular, já que versam sobre as mesmas actividades económicas, nomeadamente, de entretenimento, hospitalidade e jogo;
- Há semelhança gráfica, figurativa e fonética entre as marcas da recorrente e da recorrida que facilmente induzem o consumidor em erro e confusão;
- A marca da “Las Vegas Sands” não apresenta capacidade distintiva;
- ”The Heart Of Cotai” é marca composta apenas de designações geográficas;
- É uma marca que não respeita o princípio da verdade, não só porque o empreendimento da “Las Vegas Sands” não se situa no meio, mas numa das pontas, numa das entradas, do Cotai;
- O estabelecimento de tal marca representa uma concorrência desleal em relação às da recorrente.
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2 - A sentença disse, em termos gerais, o seguinte:
- O termo “Cotai” sugere uma localização geográfica;
- “The heart” significa o “centro”, vocábulo que, portanto, acentua a proveniência geográfica dos produtos ou serviços a assinalar;
- Não só dissecados um a um, como reunidos ou em conjunto, aqueles elementos da marca não fornecem a esta capacidade distintiva.
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3 - Discorda a “Las Vegas Sands” de tal entendimento.
Em sua opinião, a marca em apreço preenche todos os requisitos estabelecidos no art. 197º do RJPI e não cai em nenhuma das excepções do art. 199º do mesmo diploma, designadamente a alínea b), do nº1.
Diz a propósito, e em síntese;
- A referida marca tem capacidade distintiva, uma vez que não é exclusivamente descritiva com o sinal de uma indicação geográfica do produto ou do serviço;
- É uma marca complexa que, na reunião de quatro vocábulos, que associa o termo topónimo “Cotai” a um outro “Heart” que pode representar, não apenas o “núcleo” ou “centro”, como também pode ser interpretado como alusão ao “coração” ou “alma”, à “representação mais verdadeira ou mais genuína do que é o Cotai”.
Vejamos, pois.
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4 – Sentimo-nos levados a dizer, antes de tudo, que a circunstância de alguma vez a Direcção dos Serviços de Economia ter aceitado o registo de marcas como “Where Cotai Begins” a favor da recorrente judicial (aqui recorrida jurisdicional), “Cotai South”, “Cotai World” ou “World of Cotai” - como é informado no art. 22º das alegações e pode ser comprovado em http://.economia.gov.mo/. – não nos pode servir de guia. Efectivamente, não é possível que nos orientemos juridicamente pelo histórico registral administrativo das marcas da RAEM, uma vez que sobre nenhuma delas não pudemos fazer qualquer apreciação analítica. O que foi concedido, concedido está! Aliás, pode até dar-se o caso de o tribunal nem ter sido chamado a pronunciar-se em devido tempo sobre a sua legalidade. Não o sabemos. E mesmo que um ajuizamento jurisdicional sobre elas alguma vez tivesse sido feito, isso apenas significaria que a marca entrou em descanso perpétuo pela força do caso julgado, o qual, como bem se sabe, nunca seria extensível a marcas com conteúdo diferente, como esta, por muita ou pouca semelhança que entre si apresentem.
Dito isto, avancemos.
O que está em causa é saber se a marca em apreço pode ser ou não registada.
O assunto sobre que versa o recurso surge numa linha que é nossa conhecida de algum tempo a esta parte, sempre com origem em tentativas várias de registo de marca requerido pela “Sands”.
E por ser assim, por comodidade e economia de tempo, sirvamo-nos de um aresto deste tribunal, por coincidência da autoria do mesmo colectivo que ora julga o presente recurso (Ac. de 17/03/2011, Proc. nº 172/2008).
Nele foi dito o seguinte:
   “Decorre do art. 197º do RJPI, aprovado pelo DL n. 97/99/M, de 13 de Dezembro, que só pode ser objecto de protecção, mediante um título de marca, …”o sinal ou conjunto de sinais de representação gráfica, nomeadamente palavras, incluindo nomes de pessoas, desenhos, letras, números, sons, a forma do produto ou da respectiva embalagem, que sejam adequados a distinguir os produtos ou serviços de uma empresa dos de outras empresas”.
A forma ampla com que a noção é vertida na norma tem sido objecto de estudo diverso, mas para o caso que aqui nos interessa, importa apenas que nos fixemos nos seus aspectos jurídicos mais essenciais.
Assim, genericamente, a marca visa, entre outras funções aqui menos prestáveis, distinguir um produto ou serviço de outro, de modo a que ele se impute a uma empresa e não a outra e, portanto, evitando-se um uso enganoso perante o público. A marca indica uma origem de base pessoal e desempenha uma função de garantia de qualidade não enganosa1.
O consumidor, em defesa de quem a marca em última instância é registada, através dela associa, rápida, fácil e comodamente o produto e as suas qualidades a uma determinada origem ou proveniência. Isto é, sabe que está perante um produto que procede de uma empresa determinada. Embora a marca não tenha por missão garantir a qualidade do produto (embora o empresário procure mantê-la de forma a defender, conservar ou ampliar a sua clientela), ao menos permite que o produto ou serviço seja imediatamente associado ao produtor ou ao prestador2. A última palavra na escolha pertence ao consumidor, é certo, mas para tanto ele deve ter a certeza de que está a fazer a opção consciente e livre. Ou seja, ele tem que saber o que compra e a quem3 compra.
O que acaba de dizer-se entronca numa questão nem sempre presente na discussão em torno da marca. Tem que ver com evicção do erro, com a confundibilidade no espírito do destinatário da marca, o homem médio, o cidadão comum eventualmente interessado no bem ou no serviço. Claro está que há cidadãos que são minuciosos, que por natureza perscrutam em detalhe, mais do que é regra geral, o sentido e a função das coisas e que, por isso, dificilmente se deixam enganar. Não é bem para esse tipo de pessoas que a marca exerce o seu papel primordial, mas sim para o conjunto de pessoas que se inscrevem no universo da regra4.
É para este somatório alargado de consumidores que o princípio da singularidade ganha relevância quando a norma fala em sinais adequados a distinguir os produtos5.
   Mas, o próprio diploma desce mais fundo de forma a reduzir o leque de eventuais dificuldades resultantes da amplitude da norma do art. 197º. E assim é que, na alínea b), do número 1, do art. 199º dispõe, que “Não são susceptíveis de protecção os sinais constituídos exclusivamente por indicações que possam servir no comércio para designar a espécie, a qualidade, a quantidade, o destino, o valor, a proveniência geográfica ou a época de produção do produto ou da prestação do serviço, ou outras características dos mesmos” (negrito nosso).
   Assim é que, em princípio, não se pode considerar uma marca constituída apenas por indicações geográficas, nem genéricas, nem ambas as coisas associadas. (…)
   Ora, a verdade é que “Cotai”é vocábulo que exprime um local específico de Macau (concretamente entre as ilhas da Taipa e de Coloane), uma zona e uma área geográfica do território. Por conseguinte, este sinal parece estar incluído da norma limitativa da protecção (art. 199º, n.2, RJPI)”.
Portanto, Cotai” é um elemento descritivo que transmite uma noção de toponímia e remete para uma parcela de território situada entre Taipa e Coloane, numa abreviatura que entrou no léxico popular e comum. Por conseguinte, ninguém duvida que se trata de uma zona, de uma área geográfica bem determinada da RAEM território. Por conseguinte, este sinal parece estar incluído da norma limitativa da protecção (art. 199º, n.2, RJPI)6.
Isoladamente, portanto, não pode ser utilizado este vocábulo como “marca”, embora todos saibamos que é no Cotai, nessa zona geográfica de Macau, que se desenvolve a indústria do jogo, do entretenimento, da hotelaria. “Cotai”, por si mesmo não tem qualquer capacidade distintiva.
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4.1 - Mas, mudarão as coisas se a esse termo for associado algum outros?
Depende. “Las Vegas Sands” quis compor uma marca complexa, aditando-lhe “The heart of…”. “The heart of Cotai” terá alguma capacidade distintiva? Continuamos a pensar que não.
Se com tais palavras quis a interessada pôr em relevo a ideia do espírito do Cotai, a noção que subjaz ao “coração” ou à “alma” do lugar, não terá sido particularmente feliz, nem eficaz, porque se não sabe a que bens e serviços pretende ela dar destaque dentre aqueles que no Cotai se praticam. Ou seja, em vez de identificarem um produto ou serviço, apenas distraem ou aturdem a mente do consumidor, que não tem meio de saber qual o sentido e propósito da marca. Efectivamente. o que cabe dentro do “coração do Cotai” que esta marca consiga promova junto do consumidor? Nada, porque ela nada revela a esse respeito. Se o “coração” é o pulsar que gera e move o dinamismo do Cotai, e se este se desenvolve em redor do jogo e da hotelaria, também do entretenimento, que significado pode em concreto esta marca transmitir, senão aquilo que em abstracto toda a gente já sabe que ela mesma representa enquanto conceito de linguagem?!
Mas, se, em vez disso, a vontade da interessada é destacar algo que, sem o público consumidor saber o que é, fica situado na zona vital, bem no centro, enfim no “coração” do Cotai, então, do mesmo modo, estamos perante um conjunto de elementos nominativos que acentuam o cariz geográfico da marca. “The Heart of Cotai”, no fundo, equivaleria a dizer, por outras palavras, “O Centro do Cotai”, o que, igualmente, também não escaparia à ideia de reforço de uma lógica inculcadora de localização. E preencheria, sem esforço, a previsão do art. 199º, nº1, al. b), do RJPI.
Eis, pois, como de marca se trata que não pode ser registada. Repare-se: Se a composição da marca tanto pode ser uma ou outra coisa, isso ainda mais fortifica o quadro do seu carácter genérico, impreciso, inidentificador, que perturba o consumidor, em vez de o atrair desde logo para uma associação a um produto, bem ou serviço.
E se o caso não traduz, como é evidente, uma situação de aquisição prévia de eficácia distintiva, então, também à luz do art. o registo devia ser recusado, face ao art. 214º, nº 1. al. a), nº2, al. a) e nº3, do RJPI.
Somos, por isso, e sem mais considerandos, a sufragar a posição da douta sentença recorrida”.
Como dizíamos, sendo iguais as situações de facto, não pode divergir a solução de direito. E assim sendo, para servir de fundamento ao presente aresto, fazemos nossa a fundamentação acabada de transcrever, aliás semelhante à utilizada no acórdão proferido em 4/07/2013, no Proc. nº 303/2013, deste TSI, entre as mesmas partes e com referência a idêntica marca (“At The Heart Of Cotai”).
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IV- Decidindo
Nos termos expostos, acordam em negar provimento ao recurso, confirmando a sentença recorrida.
Custas apenas por “Las Vegas Sands”.
TSI, 25 / 07 / 2013
José Cândido de Pinho
Lai Kin Hong
Choi Mou Pan

1 Luis M. Couto Gonçalves, in “Função da Marca”, na obra colectiva Direito Industrial, Vol. II, Almedina, pag. 99 e sgs.
2 Neste sentido, Alberto Francisco Ribeiro de Almeida, in “Denominações Geográficas e marca”, na citada obra, a pag.371 e sgs.
3 Não nos referimos, obviamente, à relação directa entre comprador e imediato revendedor, mas sim, à indirecta estabelecida entre o adquirente final e o produtor ou fabricante.
4 Sobre o assunto, Adelaide Menezes Leitão, in “Imitação servil, concorrência parasitária e concorrência desleal”, na obra colectiva citada, Vol. I, pag. 122/128.
5 José Mota Maia, Propriedade Industrial, Vol. II, Código da Propriedade Industrial Anotado, Almedina, 2005, pag.393
6 Neste sentido, Ac. TSI, de 30/05/2013, Proc. nº 103/2013; tb. Ac. de 30/05/2013, Proc. nº 251/2013.
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