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Processo n.º 439/2013 Data do acórdão: 2013-7-25 (Autos em recurso penal)
Assuntos:
– extinção do poder jurisdicional
– proferimento da sentença
– art.o 569.o, n.o 1, do Código de Processo Civil
– art.o 361.o, n.o 1, alínea a), do Código de Processo Penal
– correcção da sentença
– art.o 360.o, alínea b), do Código de Processo Penal
– destino de objectos relacionados com o crime
– art.o 355.o, n.o 3, alínea c), do Código de Processo Penal
– declaração de perda do apreendido
– art.o 101.o do Código Penal
S U M Á R I O
1. A extinção, logo com o proferimento da sentença, do poder jurisdicional do tribunal a quo quanto à matéria da causa (por força do princípio geral vertido no art.o 569.o, n.o 1, do Código de Processo Civil) não afasta a possibilidade consagrada no art.o 361.o, n.o 1, alínea a), do Código de Processo Penal (CPP), de esse tribunal, autor da sentença então proferida, vir proceder, mesmo oficiosamente, à correcção da sentença quando, fora dos casos previstos no art.o 360.o do CPP, não tiver sido observado integralmente na sentença o disposto no art.o 355.o do CPP.
2. Estando a questão de “indicação do destino a dar a coisas ou objectos relacionados com o crime” referida na alínea c) do n.o 3 do art.o 355.o do CPP, e não no n.o 2 ou na alínea b) do n.o 3 deste artigo, pode o tribunal a quo decidir pela supressão da falta de indicação na sentença, do destino a dar aos objectos apreendidos.
3. O problema de que se fala no art.o 360.o, alínea b), do CPP só diz respeito à condenação penal por factos não imputados ao arguido no libelo acusatório.
4. A declaração, feita pelo tribunal a quo depois de já transitada em julgado a sentença, de perda dos objectos apreendidos nos autos, embora afecte o interesse do arguido ora recorrente, não é uma decisão condenatória penal, mas sim uma decisão proferida em sede do art.o 101.o do Código Penal, que, nos termos do n.o 2 deste preceito, até pode ser proferida ainda que nenhuma pessoa possa ser punida pelos factos imputados no libelo acusatório.
O relator,
Chan Kuong Seng

Processo n.º 439/2013
(Autos de recurso penal)
Recorrente (arguido): B (B)









ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU
I – RELATÓRIO
Inconformado com o despacho de 9 de Abril de 2013 do M.mo Juiz titular do Processo Comum Singular n.o CR2-12-0212-PCS do 2.o Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base, que tinha decidido, com os fundamentos constantes da prévia promoção do Ministério Público, em declarar, à luz do art.o 101.o do Código Penal (CP), perdidas a favor da Região Administrativa Especial de Macau (RAEM) as fichas de jogo apreendidas nos autos (porque usadas na prática dos crimes em causa, ou destinadas a servir essa prática), com simultâneo indeferimento, inclusivamente, do pedido, formulado em 7 de Março de 2013, depois de proferida a sentença condenatória, de devolução das fichas de jogo a si apreendidas no valor de quatrocentos e vinte mil e cem dólares de Hong Kong, veio o 2.o arguido B recorrer para este Tribunal de Segunda Instância (TSI), para pedir a revogação do dito despacho com almejada determinação da devolução das suas fichas de jogo, através dos seguintes fundamentos nuclearmente postos na sua motivação do recurso (apresentada a fls. 343 a 361 dos presentes autos correspondentes):
– com o já trânsito em julgado da sentença condenatória, na qual não se ordenou o destino das fichas de jogo apreendidas, não podia vir depois o M.mo Juiz autor da mesma declará-las perdidas a favor da RAEM, porque aquando dessa declaração, ele já não tinha poder jurisdicional sobre a causa;
– por outro lado, existindo fichas apreendidas e no pressuposto de que a decisão seria no sentido de as declarar perdidas a favor da RAEM, por imposição legal dos requisitos da sentença constantes da alínea c) do n.o 3 do art.o 355.o do Código de Processo Penal (CPP), deveria o seu destino ter sido indicado na própria sentença; e não o tendo feito o Tribunal, ficou implícita a ideia de que as fichas seriam objecto de devolução, pelo que, após o trânsito em julgado da sentença, as fichas teriam de ser devolvidas ao próprio recorrente;
– da análise da acusação constante dos autos, conclui-se que esta não dedica uma linha que seja à questão das fichas, quer à sua propriedade, quer à sua utilização, ou ao seu destino, ou à consideração de serem ou não um produto do crime, ou mesmo um meio à sua consumação, pelo que com base em quê factualidade é que o Tribunal recorrido motiva, ou mesmo fundamenta, a decisão de declarar as fichas perdidas a favor da RAEM? E como nem ficou provado no sentido de se considerar a eventual perigosidade das fichas, nem se são susceptíveis de colocar em perigo a segurança das pessoas, a moral ou a ordem públicas, ou se oferecem sério risco de serem utilizadas para o cometimento de novos factos ilícitos típicos, o despacho recorrido fica a enfermar assim da nulidade prevista na alínea b) do art.o 360.o do CPP, por ter condenado por factos não descritos na acusação;
– e subsidiariamente falando, também não se verificam os pressupostos da declaração de perda exigidos no art.o 101.o do CP.
Ao recurso respondeu o Ministério Público (a fls. 363 a 368) no sentido de improcedência da argumentação do recorrente.
Subidos os autos, emitiu o Digno Procurador-Adjunto parecer (a fls. 379 a 380), preconizando o não provimento do recurso.
Feito o exame preliminar e corridos os vistos, cumpre decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICA
Do exame dos autos, sabe-se o seguinte, com pertinência à solução do recurso:
Por sentença proferida em Outubro de 2012 a fls. 282 a 290 dos subjacentes autos penais n.o CR2-12-0212-PCS, o 2.o arguido ora recorrente B e o 3.o arguido, do mesmo processo, ficaram condenados pela autoria material, na forma consumada, de um crime de prática ilícita de jogo em local autorizado, p. e p. pelo art.o 8.o da Lei n.o 8/96/M, de 22 de Julho, enquanto o 1.o arguido do processo ficou condenado pela autoria material, na forma consumada, de um crime de exploração ilícita de jogo em local autorizado, p. e p. pelo art.o 7.o da mesma Lei.
Dessa sentença, não consta nenhuma referência quanto ao destino a dar aos objectos apreendidos nos autos.
Segundo a factualidade descrita como provada na mesma sentença, e na sua essência: no dia 5 de Março de 2012, à noite, o ora recorrente e os 1.o e 3.o arguidos do mesmo processo foram jogar numa sala de jogos em Macau, sentados numa mesa de bacará; durante o jogo de bacará, os três arguidos praticavam o jogo paralelo entre si, com base nas jogadas realizadas na mesa de jogo; o 1.o arguido, com “banker”, recebia do recorrente e do 3.o arguido as apostas no “par” e “empate”, com base nas jogadas realizadas na mesa de jogo; o 1.o arguido, de forma livre, voluntária e consciente, explorou, em local legalmente autorizado, jogo de fortuna ou azar e aceitou apostas que não obedecessem aos termos dos regulamentos dos jogos; o recorrente e o 3.o arguido, de forma livre, voluntária e consciente, colocaram, em local legalmente autorizado, apostas que não obedecessem aos termos dos regulamentos dos jogos, junto de agente ilícito; os três arguidos bem sabiam que as suas condutas eram ilegais e punidas por lei.
Em 7 de Março de 2013, o recorrente e o 3.o arguido pediram (a fl. 337 e 336 dos autos, respectivamente) ao Tribunal a quo a devolução das fichas de jogo que lhes tinham sido apreendidas, no valor de quatrocentos e vinte mil e cem dólares de Hong Kong e no valor de quatro mil dólares de Hong Kong, correspondentemente.
Ante esses dois pedidos, promoveu o Ministério Público (a fl. 340 dos autos) que nos termos do art.o 101.o do CP, fossem declarados perdidos a favor da RAEM os objectos apreendidos, designadamente as fichas de jogo, porque usadas ou destinadas a servir a prática dos crimes por que os arguidos foram condenados, com sugerido indeferimento dos mesmos pedidos.
E o M.mo Juiz titular do processo subjacente acabou por decidir, em 9 de Abril de 2013, em declarar, com os fundamentos do Ministério Público, perdidas as fichas de jogo, com indeferimento do requerido pelo recorrente e pelo 3.o arguido.
III – FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
De antemão, é de notar que mesmo em processo penal, e com excepção da matéria de conhecimento oficioso, ao tribunal de recurso cumpre resolver só as questões material e concretamente alegadas na motivação do recurso e ao mesmo tempo devidamente delimitadas nas conclusões da mesma, e já não responder a toda e qualquer razão aduzida pela parte recorrente para sustentar a procedência das suas questões colocadas (nesse sentido, cfr., de entre muitos outros, os acórdãos do TSI, de 7 de Dezembro de 2000 no Processo n.o 130/2000, de 3 de Maio de 2001 no Processo n.o 18/2001, e de 17 de Maio de 2001 no Processo n.o 63/2001).
Nesses parâmetros, conhecendo:
Desde já, é de repudiar a tese de impossibilidade, com o já trânsito em julgado da sentença, de se vir a decidir sobre o destino a dar aos objectos apreendidos nos autos.
É que a extinção, logo com o proferimento da sentença, do poder jurisdicional do Tribunal a quo quanto à matéria da causa (por força do princípio processual geral vertido no art.o 569.o, n.o 1, do Código de Processo Civil) não afasta a possibilidade expressamente consagrada no art.o 361.o, n.o 1, alínea a), do CPP, de o mesmo Tribunal, autor da sentença então proferida, vir proceder, mesmo oficiosamente, à correcção da sentença quando, fora dos casos previstos no art.o 360.o do CPP, não tiver sido observado integralmente na sentença o disposto no art.o 355.o do CPP.
De facto, estando a questão de “indicação do destino a dar a coisas ou objectos relacionados com o crime” referida na alínea c) do n.o 3 do art.o 355.o do CPP, e não no n.o 2 ou na alínea b) do n.o 3 deste artigo, pode o Tribunal a quo decidir pela supressão da falta de indicação na sentença, do destino a dar aos objectos apreendidos.
Do acima concluído, resulta naturalmente prejudicada a tese do recorrente segundo a qual como não se decidiu na sentença pelo destino a dar às suas fichas de jogo, haveria que proceder à devolução das mesmas a seu favor.
E agora no tangente à questão de alegada “condenação por factos não descritos na acusação”, há que chamar a atenção do recorrente para o facto de este problema, de que se fala no art.o 360.o, alínea b), do CPP, só dizer respeito à condenação penal por factos não imputados ao arguido no libelo acusatório. In casu, a declaração de perda dos objectos apreendidos nos autos, embora afecte inclusivamente o interesse do recorrente, não é uma decisão condenatória penal, mas sim uma decisão proferida em sede do art.o 101.o do CP, que, nos termos do n.o 2 deste preceito, até pode ser proferida ainda que nenhuma pessoa possa ser punida pelos factos imputados no libelo acusatório. Daí que não deixa de naufragar o recurso do 2.o arguido nesta parte da sua argumentação.
Por fim, no tocante ao mérito da decisão tomada no despacho recorrido, é nítido ao presente Tribunal ad quem que a partir da factualidade descrita como provada na sentença condenatória penal proferida pelo Tribunal a quo, é de presumir judicialmente, sob aval do art.o 342.o do Código Civil, e com recurso às regras da experiência da vida humana, que as fichas de jogo então apreendidas ao recorrente foram também destinadas por ele à prática do crime por que aí vinha condenado (pois, para poder ele ter praticado jogos paralelos com o 1.o arguido na mesa de bacará dos autos, ele tem que ter feito primeiro apostas nessa mesa de bacará com fichas de jogo, para depois poder fazer jogadas parelelas ilícitas com o 1.o arguido em função das jogadas normais legais ocorridas nessa mesa). E a partir daí (e tendo em conta que à luz da mesma factualidade assente na sentença, não bastavam ao recorrente as jogadas lícitas na mesa de bacará, já que ele também praticou, em paralelo a essas jogadas normais, jogadas paralelas ilícitas com o 1.o arguido), é legítimo considerar que há, de facto, sério risco de as fichas de jogo então apreendidas ao recorrente, se devolvidas a este, serem utilizadas de novo para cometimento de outro crime do mesmo tipo. Estão, pois, verificados os pressupostos exigidos no n.o 1 do art.o 101.o do CP para se poder declarar perdidos a favor da RAEM as fichas de jogo em causa.
Improcede, pois, o recurso, sem mais indagação, por estar prejudicada pela análise acima feita.
IV – DECISÃO
Dest’arte, acordam em negar provimento ao recurso.
Custas do recurso pelo recorrente, com oito UC de taxa de justiça.
Macau, 25 de Julho de 2013.
_______________________
Chan Kuong Seng
(Relator)
_______________________
Tam Hio Wa
(Primeira Juíza-Adjunta)
_______________________ (Segue declaração).
José Maria Dias Azedo
(Segundo Juiz-Adjunto)

Processo nº 439/2013
(Autos de recurso penal)



Declaração de voto


Vencido, pois que não subscrevo a decisão de confirmação da declaração de perda das fichas de jogo apreendidos nos autos.

Como me parece de entender, (e nesta mesma datas consignei na declaração de voto que anexei ao veredicto prolatado no Proc. n.° 996/2012), o processo penal tem de ser um “processo equitativo e leal”, (“fair trial”), o que obriga a que o ius puniendi seja exercido com respeito pela pessoa do arguido, assegurando-se-lhe todas as garantias de defesa.

Porém, no caso, assim parece não ter sucedido.

Com efeito, a “decisão” recorrida em questão é-nos uma clara “decisão surpresa”, pois que foi tão só perante o pedido pelos arguidos deduzido de devolução das fichas que, pela primeira vez, promoveu o Ministério Público a declaração do seu perdimento, acabando por se decidir em conformidade, sem que tivessem aqueles qualquer oportunidade de “discutir” a adequação de tal decisão, o que, em nossa opinião, colide, frontalmente, com o princípio do contraditório, tido como fundamental do processo penal.

Por sua vez, ocorrem-nos também sérias dúvidas que, no caso, através de “presunções judiciais”, se possa, com a razoável e necessária segurança, chegar à solução adoptada, no sentido de se concluir que verificados estão os pressupostos legais para a “declaração de perda” das fichas, (cfr., art. 101° do C.P.M.), nomeadamente, no que diz respeito ao “sério risco de serem utilizadas para o cometimento de novos factos ilícitos”.

Macau, aos 25 de Julho de 2013

José Maria Dias Azedo



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