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Processo n.º 203/2013 Data do acórdão: 2013-7-25 (Autos em recurso penal)
Assuntos:
– livre apreciação da prova
– art.o 114.o do Código de Processo Penal
– crime de ameaça
– prevenção geral do crime
– pena de prisão
– art.o 64.o do Código Penal
S U M Á R I O
1. Como depois de vistos todos os elementos probatórios dos autos, referidos na fundamentação da livre convicção sobre os factos tecida pelo tribunal a quo na sua sentença, não se vislumbra como evidente que esse tribunal, ao ter julgado a matéria de facto como o fez concretamente na sentença, tenha violado alguma regra da experiência da vida humana em normalidade de situações, ou violado alguma norma jurídica cogente sobre o valor da prova, ou violado quaisquer legis artis a observar na tarefa jurisdicional de julgamento de factos, não pode o arguido recorrente vir sindicar gratuitamente a livre convicção a que chegou esse tribunal sob aval do art.o 114.o do Código de Processo Penal com o alegado facto de ter o mesmo tribunal acreditado apenas nas declarações da assistente prestadas na audiência de julgamento, para com base nisso acabar por dar por provado que ele tinha dito palavars de ameaça ao telefone contra a assistente.
2. Tendo em conta que ficou provado em primeira instância que por causa das palavras de ameaça ditas pelo arguido ao telefone, a assistente, para além de sentir medo e inquietação, não tinha até coragem de voltar à sua pátria, é de passar a condenar o arguido em pena de prisão, por não se afigurar que a pena de multa já dê para prosseguir de modo suficiente e adequado as finalidades de punição, mormente a nível da prevenção geral do crime de ameaça (cfr. o critério material do art.o 64.o do Código Penal).
O relator,
Chan Kuong Seng

Processo n.º 203/2013
(Autos de recurso penal)
Recorrentes:
O arguido A
A assistente B





ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU
I – RELATÓRIO
Por sentença proferida a fls. 202 a 204 dos autos de Processo Comum Singular n.° CR3-12-0394-PCS do 3.o Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base, ficou o arguido A condenado, pela autoria material de um crime de ameaça, p. e p. pelo art.o 147.o, n.o 1, do Código Penal (CP), em setenta e cinco dias de multa, à taxa diária de duzentas patacas, no total de quinze mil patacas, convertível, se não paga nem substituída por trabalho, em cinquenta dias de prisão.
Inconformados com essa sentença, vieram recorrer para este Tribunal de Segunda Instância (TSI), não só o arguido como também a assistente B.
Na sua motivação de recurso (apresentada a fls. 212 a 222 dos presentes autos correspondentes), o arguido preconizou, nuclearmente, a tese de que “não existe qualquer prova nos autos, para além do depoimento da assistente, a indicar que foi o arguido que telefonou à assistente e que lhe proferiu tais palavras constantes na acusação” e de que “a apreciação da prova levada a cabo pelo Tribunal a quo” violou as regras da experiência, para a partir disso, apontar à sentença recorrida o vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, referido no art.o 400.o, n.o 2, alínea a), do Código de Processo Penal (CPP), a violação do princípio da livre apreciação da prova plasmado no art.o 114.o do CPP e a violação do princípio de in dubio pro reo, a fim de pretender a sua absolvição.
Enquanto a assistente, na sua motivação (de fls. 242 a 258 dos autos), começou por sustentar, principalmente, que “os dados apurados e demonstrados em audiência respeitantes tanto à pessoa do arguido bem como ao modo e móbil de comissão do crime de que foi vítima a aqui recorrente imporiam uma pena diversa, mais severa e, necessariamente, de tipo detentivo”, até referindo que “sendo o arguido mero detentor de um Salvo-conduto da República Popular da China a sua permanência em Macau como proprietário de uma empresa fê-lo incorrer numa situação de imigração ilegal, tal como resulta da conjugação da al. 1) do art. 11.o com o art. 2.o da Lei 6/2004 de 2 AGO (Lei da Imigração Ilegal e da Expulsão)”, e que “de acordo com o art. 22.o desse mesmo diploma, a situação de imigração ilegal em que o arguido incorreu constitui uma forçosa circunstância agravante para efeitos de determinação da pena aplicável ao arguido, desde logo ao nível da escolha do tipo de pena”, razões essenciais por que deveria ter sido aplicada pena de prisão nunca inferior a dez meses de prisão, suspensa na sua execução por dois anos, subordinada à condição de o arguido não se aproximar nem da residência nem dos locais de trabalho quer da assistente quer das testemunhas; para além disso, e a título subsidiário falando, pediu a assistente que o arguido passasse a ser condenado pelo menos em cento e dez dias de multa, à taxa diária de quatrocentas patacas, pelo menos, num total de quarenta e quatro mil patacas.
Ao recurso do arguido, respondeu o Ministério Público (a fls. 261 a 263 dos autos) no sentido de improcedência do mesmo, ao passo que ao recurso da assistente, já respondeu (a fls. 264 a 265v) a preconizar o aumento da taxa diária da multa.
O arguido e a assistente não apresentaram resposta ao recurso da parte adversária.
Subidos os autos, emitiu a Digna Procuradora-Adjunta parecer (a fls. 276 a 277v dos autos), pugnando pela negação de provimento ao recurso do arguido, e pela procedência parcial do recurso da assistente, com consequente aumento da taxa diária da multa.
Feito o exame preliminar, corridos os vistos e realizada a audiência neste TSI, cumpre decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICA
Do exame dos autos, sabe-se o seguinte:
A. Na sentença ora recorrida, a M.ma Juíza afirmou fundamentar a sua decisão sobre a matéria de facto materialmente na análise das declarações do arguido, dos depoimentos das testemunhas, das declarações da assistente e dos elementos documentais constantes dos autos, bem como na atitude e maneira de falar do arguido na audiência de julgamento, que reflectiam a personalidade do arguido na vida corrente (cfr. o conteúdo das 6.a a 8.a linhas da página 3 da sentença, a fl. 203 dos autos).
B. De acordo com a matéria de facto imputada pelo Ministério Público ao arguido e descrita como totalmente provada na sentença:
– em Setembro de 2011, o arguido considerou que um pedido a si feito pela assistente sobre a mudança de habitação lhe ia acarretar aumento no seu encargo com a renda, pelo que teve conflitos acumulados com a assistente;
– em 27 de Setembro de 2011, a assistente, dentro de um veículo automóvel, recebeu telefonema feito pelo arguido, no qual disse a ela umas palavras em chinês, com seguinte significado traduzível em português: “não provoques tu as coisas, se continuas a ser assim, e a não ser que não voltes tu a Jiangmen (江門), eu vou fazer um bom espectáculo para tu veres!”;
– o conteúdo dessas palavras fez com que a assistente tenha receado que o arguido viesse a praticar actos ofensivos à segurança da pessoa dela, e, por isso, não se atreveu a sair sozinha do veículo automóvel, e só conseguiu pedir auxílio ao seu patrono de apelido Chan, e sob companhia desse patrão, foi participar o caso policialmente e voltar para a casa;
– por causa das referidas palavras, a assistente não tinha coragem de voltar a Jiangmen;
– o arguido agiu livre, voluntária e conscientemente, com o intuito de ameaçar a segurança da pessoa e a liberdade de decisão da assistente, e a conduta e as palavras dele eram suficientes para fazer com que a assistente tenha tido medo e inquietação;
– o arguido sabia bem que a sua conduta era proibida e punível por lei;
– o arguido é delinquente primário;
– o arguido tem o curso secundário elementar como habilitações literárias, é dono de uma empresa de engenharia, com sessenta a setenta mil patacas de rendimento mensal, e sem pessoa a seu cargo.
C. No art.o 3.o da sua motivação de recurso (a fl. 212 dos autos), o arguido referiu que ele não confessou os factos da acusação.
III – FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
De antemão, é de notar que mesmo em processo penal, e com excepção da matéria de conhecimento oficioso, ao tribunal de recurso cumpre resolver só as questões material e concretamente alegadas na motivação do recurso e ao mesmo tempo devidamente delimitadas nas conclusões da mesma, e já não responder a toda e qualquer razão aduzida pela parte recorrente para sustentar a procedência das suas questões colocadas (nesse sentido, cfr., de entre muitos outros, os acórdãos do TSI, de 7 de Dezembro de 2000 no Processo n.o 130/2000, de 3 de Maio de 2001 no Processo n.o 18/2001, e de 17 de Maio de 2001 no Processo n.o 63/2001).
Cabe decidir primeiro do recurso do arguido.
A este propósito, verifica-se que embora tenha invocado o vício do art.o 400.o, n.o 2, alínea a), do CPP, o que pretendeu ele foi apontar a falta de prova para se poder dar como provado que ele tenha dito tais palavras de ameaça à assistente por via telefónica, problema de falta de prova esse que já pertence ao foro nuclear da questão, também por ele levantada no recurso, de alegada violação, pelo Tribunal recorrido, do princípio de in dubio pro reo e do princípio da livre apreciação da prova do art.o 114.o do CPP, dois princípios esses que, por sua vez, já têm a ver com o vício de erro notório na apreciação da prova.
Entretanto, como depois de vistos todos os elementos probatórios dos autos, e como tal referidos na fundamentação da livre convicção sobre os factos tecida pelo Tribunal recorrido na sua sentença ora sob impugnação, não se vislumbra como evidente que esse Tribunal, ao ter julgado a matéria de facto como o fez concretamente nessa sentença, tenha violado alguma regra da experiência da vida humana em normalidade de situações, ou violado alguma norma jurídica cogente sobre o valor da prova, ou violado quaisquer legis artis a observar na tarefa jurisdicional de julgamento de factos, não pode o arguido recorrente vir sindicar gratuitamente a livre convicção a que chegou esse Tribunal sob aval do art.o 114.o do CPP com o alegado facto de ter o Tribunal recorrido acreditado apenas nas declarações da assistente prestadas na audiência de julgamento, para com base nisso acabar por dar por provado que ele tinha dito tais palavars de ameaça ao telefone contra a assistente.
Improcede, pois, o recurso do arguido, já que o resultado da decisão de factos feita pelo Tribunal a quo não se mostra desrazoável, ou violadora do princípio de in dubio pro reo.
É tempo de tratar agora do recurso da assistente.
Tendo em conta que ficou provado em primeira instância que por causa das palavras de ameaça ditas pelo arguido ao telefone contra a assistente no dia 27 de Setembro de 2011, a assistente, para além de sentir medo e inquietação, não tinha até coragem de voltar a Jiangmen, é de passar a condená-lo em pena de prisão, já que não se afigura que a pena de multa já dê para prosseguir de modo suficiente e adequado as finalidades de punição, mormente a nível da prevenção geral do crime (cfr. o critério material do art.o 64.o do CP).
Sendo o crime de ameaça punível com pena de prisão de um mês a dois anos (cfr. os art.os 147.o, n.o 1, e 41.o, n.o 1, do CP), e atendendo a todas as circunstâncias já apuradas em primeira instância, é de impor-lhe três meses de prisão, aos critérios da medida da pena ditados nos art.os 40.o, n.os 1 e 2, e 65.o, n.os 1 e 2, do CP, suspensa na sua execução por um ano e seis meses nos termos permitidos pelo art.o 48.o, n.o 1, do CP (visto que nem a assistente recorrente pediu a execução imediata da prisão), sem sujeição, porém, a qualquer das condições ou regras de conduta propostas pela assistente, porque crê o presente Tribunal de recurso que com a ameaça da execução da prisão, não terá o arguido mais coragem para perturbar a assistente e as testemunhas da acusação ouvidas na audiência de julgamento da Primeira Instância.
Procede, pois, parcialmente o recurso da assistente na sua pretensão principal de aplicação da pena de prisão ao arguido, sendo de notar que ao apreciar o recurso da assistente nos termos acima feitos, não se levou em conta a alegada situação ilegal de trabalho do arguido em Macau, por esta situação não ter constado nem da factualidade imputada ao arguido no libelo acusatório nem da matéria de facto assente na sentença recorrida.
IV – DECISÃO
Dest’arte, acordam em julgar improcedente o recurso do arguido e parcialmente provido o recurso da assistente, passando, por conseguinte, a condenar o arguido, pela autoria material de um crime de ameaça do art.o 147.o, n.o 1, do Código Penal, na pena de três meses de prisão, suspensa na sua execução por um ano e seis meses.
Custas do recurso do arguido a cargo dele próprio, com doze UC de taxa de justiça, e com seis mil patacas de honorários a favor da sua Ex.ma Defensora Oficiosa.
Custas do recurso da assistente por ela e pelo arguido, na proporção de 1/3 para ela e de 2/3 para ele, pagando ela duas UC de taxa de justiça e ele quatro UC de taxa de justiça, correspondentemente.
Macau, 25 de Julho de 2013.
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Chan Kuong Seng
(Relator)
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Tam Hio Wa
(Primeira Juíza-Adjunta)
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José Maria Dias Azedo
(Segundo Juiz-Adjunto)



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