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Processo nº 32/2013 Data: 26.07.2013
(Autos de recurso penal)

Assuntos : Crime de “consumo ilícito de estupefacientes”, (em ZHUHAI, R.P.C.).
Aplicação da lei penal no espaço.



SUMÁRIO

1. Não comete o crime de “consumo ilícito de estupefacientes”, p. e p. pelo art. 14° da Lei n.° 17/2009, o agente que adquire, detém e acaba por consumir Ketamina em ZHUHAI (R.P.C.).

2. Com efeito, o(s) facto(s) não foram “praticados em Macau”, nem a bordo de navio ou aeronave, matriculado em Macau, (art. 4° do C.P.M.), verificados não estando também os pressupostos do art. 5° (e 6°) para que o direito penal de Macau – o art. 14° da Lei n.° 17/2009 – possa ser aplicado a “factos ocorridos fora de Macau”.

O relator,

______________________
José Maria Dias Azedo

Processo nº 32/2013
(Autos de recurso penal)






ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:





Relatório

1. A (XXX) e B (XXX), (1° e 2°) arguidos, com os sinais dos autos, responderam no T.J.B., e, findo o julgamento, decidiu o Mmo Juiz:
- condenar o (1°) arguido A como autor de 1 crime de “condução sob a influência de estupefacientes ou substâncias psicotrópicas”, p. e p. pelo art. 90°, n.° 2 da L.T.R., na pena de 4 meses de prisão, suspensa na sua execução por um período de 1 ano e 6 meses, com condição de pagar à R.A.E.M. MOP$8.000,00, no prazo de 2 meses após o transito em julgado da sentença, e de se sujeitar a acompanhamento para a cura de toxicodependência; e
- condenar o (2°) arguido B, pela prática de um crime de “consumo ilícito de estupefacientes e de substâncias psicotrópicas”, p. e p. pelo art. 14° da Lei n.° 17/2009, na pena de 45 dias de multa, à taxa diária de MOP$150, perfazendo a quantia total de MOP$6.750,00 ou, 30 dias de prisão subsidiária; (cfr., fls. 69 a 73-v que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).

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Do assim decidido, vem o Exmo. Magistrado do Ministério Público recorrer.
Em sede de motivação, produz as seguintes conclusões:

“1. Na sentença feita pelo tribunal a quo, com base nos factos provados de o 2° arguido B (XXX) ter consumido drogas no Interior da China, ser residente de Macau e ter sido encontrado em Macau, e de acordo com o princípio da nacionalidade previsto pelo art.° 5.°, n.° 1, al. d) do CPM e a teoria de aplicação da lei no espaço, entende-se que o direito penal de Macau é ainda aplicável ao 2° arguido, pelo que o tribunal a quo reconheceu que o 2° arguido tinha praticado os factos acusados, e tinha cometido, em autoria material e na forma consumada, um crime de consumo ilícito de estupefacientes e de substâncias psicotrópicas, p. p. pelo art.° 14.° da Lei n.° 17/2009.
2. Nos termos do art.° 6.° da Lei n.° 17/2009, "aos crimes previstos na presente lei são subsidiariamente aplicáveis as normas do Código Penal".
3. O disposto no referido art.° 5.°, n.° 1, al. d) reflecte ao mesmo tempo o princípio da nacionalidade activa e o princípio da nacionalidade passiva, ou seja quando as condutas do agente (residente de Macau) não forem punidas no lugar da sua prática, o direito penal de Macau é lhe estendido sempre que o ofendido também seja residente de Macau. Este artigo visa à prevenção da situação de fraude à lei.
4. Por isso, os crimes previstos pelo artigo acima referido têm de incluir ofendidos específicos, tais como os ofendidos nos crimes de ofensas à integridade física, de aborto, de bigamia e de ajuda ao suicídio.
5. In casu, nos termos do art.° 14.° da Lei n.° 17/2009, o respectivo crime é questão de salubridade pública, e os toxicodependentes devem ser considerados doentes e ajudados na reabilitação. Por isso, o referido crime de consumo ilícito é crime público e não tem ofendido específico.
6. Pelos expostos, por as condutas criminosas do 2° arguido não fazerem parte da situação prevista pelo art.° 5.°, n.° 1, al. d) do CPM, nem das outras situações previstas no referido art.° 5.°, não é aplicável o direito penal de Macau, e os tribunais da RAEM são incompetentes para julgar das respectivas condutas criminosas.
***
Pelos expostos, o Ministério Público entende que a sentença recorrida padece do vício de erro na aplicação da lei previsto pelo art.° 400.°, n.° 1 do Código de Processo Penal, e pede ao TSI para julgar procedente o recurso, revogar a respectiva parte na sentença recorrida e absolver o 2° arguido B (XXX) do crime”; (cfr., fls. 82 a 83-v).

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Admitido o recurso, vieram os autos a este T.S.I., onde, em sede de vista, juntou a Ilustre Procuradora Adjunta douto Parecer acompanhando a posição assumida na motivação de recurso; (cfr., fls. 106).

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Cumpre decidir.

Fundamentação

Dos factos

2. Está provada a factualidade como tal elencada na sentença recorrida, a fls. 70 a 71, e que aqui dá-se como integralmente reproduzida.

Do direito

3. Vem o Exmo. Magistrado do Ministério Público recorrer da sentença proferida pelo Mmo Juiz do T.J.B. na parte em que se decidiu condenar o (2°) arguido B, pela prática de um crime de “consumo ilícito de estupefacientes e de substâncias psicotrópicas”, p. e p. pelo art. 14° da Lei n.° 17/2009, na pena de 45 dias de multa, à taxa diária de MOP$150, perfazendo a quantia total de MOP$6.750,00 ou, 30 dias de prisão subsidiária.

E, em síntese, importa saber se a matéria de facto provada em relação a este mesmo (2°) arguido B constitui o crime pelo qual foi condenado.

Vejamos.

Punindo o crime de “consumo ilícito de estupefacientes e de substâncias psicotrópicas” prescreve o art. 14° da Lei n.° 17/2009:

“Quem consumir ilicitamente ou, para seu exclusivo consumo pessoal, cultivar, produzir, fabricar, extrair, preparar, adquirir ou detiver ilicitamente plantas, substâncias ou preparados compreendidos nas tabelas I a IV, é punido com pena de prisão até 3 meses ou com pena de multa até 60 dias”.

No caso, provado está que tanto a “aquisição”, a “detenção”, como o (posterior) “consumo” de estupefacientes por parte do arguido em questão, B ocorreu em ZHUHAI, (R.P.C.), vindo a ser posteriormente surpreendido “sob influência” do mesmo quando circulava, como passageiro, no veículo automóvel conduzido pelo (1°) arguido A conduzido em Macau.

E será tal conduta punível pela “lei penal local”?

Cremos pois que de sentido negativo deve ser a resposta.

Vejamos.

Prescreve o art. 6° da referida Lei n.° 17/2009 que:

“Aos crimes previstos na presente lei são subsidiariamente aplicáveis as normas do Código Penal”.

Assim, importa pois atentar nas disposições do C.P.M..

Nos termos do art. 3° do C.P.M. (“Momento da prática do facto”):

“O facto considera-se praticado no momento em que o agente actuou ou, no caso de omissão, devia ter actuado, independentemente do momento em que o resultado típico se tenha produzido”.

Por sua vez, nos termos do art. 19° da Lei Básica da R.A.E.M.:

“A Região Administrativa Especial de Macau goza de poder judicial independente, incluindo o de julgamento em última instância.

Os tribunais da Região Administrativa Especial de Macau têm jurisdição sobre todas as causas judiciais na Região, salvo as restrições à sua jurisdição que se devam manter, impostas pelo ordenamento jurídico e pelos princípios anteriormente vigentes em Macau.

Os tribunais da Região Administrativa Especial de Macau não têm jurisdição sobre actos do Estado, tais como os relativos à defesa nacional e às relações externas (…)”.

Em sintonia com o assim consagrado, estatui também o art. 1°, n.° 2 da Lei n.° 9/1999 (L.B.O.J.), que “os tribunais da Região Administrativa Especial de Macau têm jurisdição sobre todas as causas judiciais na Região, com excepção dos casos previstos na Lei Básica da Região Administrativa Especial de Macau”, e, consagrando o “Princípio geral da aplicação no espaço”, prescreve o art. 4° do referido C.P.M., (também conhecido como “princípio da territorialidade”), que:

“Salvo disposição em contrário constante de convenção internacional aplicável em Macau ou de acordo no domínio da cooperação judiciária, a lei penal de Macau é aplicável a factos praticados:
a) Em Macau, seja qual for a nacionalidade do agente; ou
b) A bordo de navio ou aeronave, matriculado em Macau”.

Ora, no caso dos autos, e como se deixou consignado, tanto a “detenção”, “aquisição”, como o próprio “consumo” de estupefaciente ocorreu em ZHUHAI, pelo que, não existindo “disposição legal em contrário”, ou “acordo de cooperação judiciária”, cremos pois que, (pelo menos, por aí), de manter não é a decisão recorrida.

Mostra-se de interesse analisar ainda a questão à luz de outras disposições legais do C.P.M..

Com efeito, e com a epígrafe “Factos praticados fora de Macau”, preceitua o art. 5° do dito Código que:

“1. Salvo disposição em contrário constante de convenção internacional aplicável em Macau ou de acordo no domínio da cooperação judiciária, a lei penal de Macau é ainda aplicável a factos praticados fora de Macau:
a) Quando constituírem os crimes previstos nos artigos 252.º a 261.º e 297.º a 305.º;
b) Quando constituírem os crimes previstos no n.º 2 do artigo 152.º e nos artigos 153.º, 153.º-A, 154.º, 155.º, 229.º, 230.º e 236.º, desde que o agente seja encontrado em Macau e não possa ser entregue a outro Território ou Estado;
c) Por residente de Macau contra não-residente, ou por não-residente contra residente, sempre que:
(1) O agente for encontrado em Macau;
(2) Os factos forem também puníveis pela legislação do lugar em que tiverem sido praticados, salvo quando nesse lugar não se exercer poder punitivo; e
(3) Constituírem crime que admita entrega do agente e esta não possa ser concedida; ou
d) Contra residente de Macau, por residente, sempre que o agente for encontrado em Macau.
2. A lei penal de Macau é ainda aplicável a factos praticados fora de Macau sempre que a obrigação de os julgar resulte de convenção internacional aplicável em Macau ou de acordo no domínio da cooperação judiciária”.

Porém, não constituindo o crime de “consumo ilícito de estupefacientes” nenhum dos referidos nas alíneas a) e b) do n.° 1 do transcrito artigo, não nos parecendo que a situação em questão se integre nas alíneas c) e d) do mesmo n.° 1, e inexistindo convenção internacional que determine a aplicação da lei penal de Macau à conduta do arguido (cfr., n.° 2), motivos não se divisam para se alterar a solução atrás avançada.

Todavia, atento o disposto no art. 6° do C.P.M., adequado parece também uma (breve) nota.

De facto, estatui o dito art. 6° - com a epígrafe “Restrição à aplicação da lei penal de Macau” – que:

“A aplicação da lei penal de Macau a factos praticados fora de Macau só tem lugar quando o agente não tiver sido julgado no local da prática do facto ou se houver subtraído ao cumprimento total ou parcial da condenação”.

Ora, constituindo o assim preceituado um afloramento do princípio “ne bis in idem”, e do mesmo resultando que a aplicação da lei penal de Macau a factos praticados fora de Macau seja uma “aplicação subsidiária”, logo se vê que o comando em questão também não altera a solução que se deixou adiantada.

É que necessário era que se verificassem os pressupostos do art. 5° do mesmo C.P.M., o que, como se viu, não sucedeu; (neste sentido, cfr., L. Henriques e S. Santos, in “C.P.M., Anot.”, pág. 23, onde, em comentário ao dito art. 6° se afirma o que segue: “no art.° 4.° define-se, como se viu, a regra geral de aplicação da lei penal de Macau no espaço, consagrando-se o princípio da territorialidade (e do pavilhão).
E no art.° 5.° integrou-se (ou complementou-se) tal princípio com o da defesa dos interesses de Macau, o da aplicação universal da lei penal e o da residência, alargando-se o âmbito de aplicação espacial da lei penal de Macau a factos praticados fora do Território.
É agora a vez de, neste artigo, se estabelecerem restrições à aplicação da lei penal de Macau a factos cometidos fora do Território”).

Por fim, aplicável também não sendo o art. 7° do C.P.M., onde se prescreve que “o facto considera-se praticado tanto no lugar em que, total ou parcialmente, e sob qualquer forma de comparticipação, o agente actuou, ou, no caso de omissão, devia ter actuado, como naquele em que o resultado típico se tiver produzido”, pois que o “estado de intoxicação” não constitui elemento típico do crime em questão, (que é um “crime formal”), impõe-se extrair adequada conclusão.

Aqui chegados – e em causa não estando uma conduta como a prevista no art. 279° do C.P.M., (“condução perigosa de veículo rodoviário”), ou a do art. 90°, n.° 2 da Lei n.° 3/2007 (“condução sob influência de estupefacientes ou substâncias psicotrópicas”), onde, independentemente do “local de consumo do estupefaciente”, incorreria o seu autor nos respectivos ilícitos criminais desde que verificados os seus elementos típicos – à vista está a solução.

Com efeito, conclui-se que a lei penal local, mais concretamente, o art. 14° da Lei n.° 17/2009, não é aplicável à conduta provada do arguido, e, como tal, não constituindo a mesma um “ilícito criminal”, (ou melhor, o crime pelo qual foi condenado), impõe-se julgar procedente o recurso interposto, revogando-se a decisão na parte recorrida.

Decisão

4. Nos termos que se deixam expostos, acordam julgar procedente o recurso, ficando o arguido B absolvido do crime pelo qual foi condenado nestes autos.

Não são devidas custas.

Honorários ao Exmo. Defensor no montante de MOP$2.500,00.

Macau, aos 26 de Julho de 2013
José Maria Dias Azedo
Chan Kuong Seng
Tam Hio Wa

Proc. 32/2013 Pág. 16

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