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Processo nº 485/2013 Data: 30.07.2013
(Autos de recurso penal)

Assuntos : Crime de “sequestro”.
Erro notório na apreciação da prova.
Atenuação especial.



SUMÁRIO

1. No que toca ao erro notório na apreciação da prova, este apenas “existe quando se dão como provados factos incompatíveis entre si, isto é, que o que se teve como provado ou não provado está em desconformidade com o que realmente se provou, ou que se retirou de um facto tido como provado uma conclusão logicamente inaceitável.
O erro existe também quando se violam as regras sobre o valor da prova vinculada, as regras de experiência ou as legis artis.
Tem de ser um erro ostensivo, de tal modo evidente que não passa despercebido ao comum dos observadores.

É na audiência de julgamento que se produzem e avaliam todas as provas (cfr. artº 336º do C.P.P.M.), e é do seu conjunto, no uso dos seus poderes de livre apreciação da prova conjugados com as regras da experiência (cfr. artº 114º do mesmo código), que os julgadores adquirem a convicção sobre os factos objecto do processo.
Assim, sendo que o erro notório na apreciação da prova nada tem a ver com a eventual desconformidade entre a decisão de facto do Tribunal e aquela que entende adequada o Recorrente, irrelevante é, em sede de recurso, alegar-se como fundamento do dito vício, que devia o Tribunal ter dado relevância a determinado meio probatório para formar a sua convicção e assim dar como assente determinados factos, visto que, desta forma, mais não se faz do que pôr em causa a regra da livre convicção do Tribunal.

Importa ter presente que o princípio da livre apreciação da prova, significa, basicamente, uma ausência de critérios legais que pré-determinam ou hierarquizam o valor dos diversos meios de apreciação da prova, pressupondo o apelo às “regras de experiência” que funcionam como argumentos que ajudam a explicar o caso particular com base no que é “normal” acontecer.

2. A atenuação especial só pode ter lugar em casos “extraordinários” ou “excepcionais”, ou seja, quando a conduta em causa “se apresente com uma gravidade tão diminuída que possa razoavelmente supor-se que o legislador não pensou em hipóteses tais quando estatuiu os limites normais da moldura cabida ao tipo de facto respectivo.

O relator,

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José Maria Dias Azedo

Processo nº 485/2013
(Autos de recurso penal)






ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:





Relatório

1. Sob acusação pública responderam A (XXX) e B (XXX), (1° e 2°) arguidos, ambos com os sinais dos autos, vindo a ser condenados como co-autores de 1 crime de “sequestro”, p. e p. pelo art, 152°, n.° 2, al. a), do C.P.M., na pena individual de 3 anos e 3 meses de prisão, sendo o (1°) arguido A condenado também pela prática em concurso real de 1 crime de “usura para jogo”, p. e p. pelo art. 13° da Lei n.° 8/96/M e art. 219°, n.° 1, do C.P.M., na pena de 6 meses de prisão, e, em cúmulo jurídico, na pena única de 3 anos e 6 meses de prisão; (cfr., fls. 464 a 469).

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Inconformados, vieram os arguidos recorrer, imputando ao acórdão recorrido o vício de “erro notório na apreciação da prova” e “excesso de pena” que consideram devia ser especialmente atenuada, pedindo o arguido A a renovação da prova; (cfr., fls. 500 a 506-v e 614 a 646-v).

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Respondendo, entende o Exmo. Magistrado do Ministério Público que os recursos não merecem provimento; (cfr., fls. 670 a 675).

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Remetidos os autos a esta Instância, com eles subiu um outro recurso pelo arguido B interposto da decisão que lhe decretou a medida de coacção de prisão preventiva; (cfr., fls. 470 a 471 e 649 a 654-v).

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Em douto Parecer, é também a Ilustre Procuradora de opinião que os recursos não merecem provimento; (cfr., fls. 694).

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Cumpre decidir.

Fundamentação

Dos factos

2. Estão provados os factos como tal elencados no Acórdão recorrido, a fls. 465 a 467, e que aqui dão-se como integralmente reproduzidos.

Do direito

3.1. Dos recursos do Acórdão do T.J.B..

Vem os (1° e 2°) arguidos recorrer do Acórdão que os condenou nos termos atrás já relatados.

Entendem que o mesmo padece dos vícios de “erro notório na apreciação da prova” e “excesso de pena” que consideram devia ser especialmente atenuada.

Sem prejuízo de muito respeito por opinião em sentido distinto, não nos parece que tenham razão, afigurando-se-nos de rejeitar o recurso dada a sua “manifesta improcedência”; (cfr., fls. 410°, n.° 1 do C.P.P.M.).

Vejamos.

–– Quanto ao “erro”.

Em essência, dizem os recorrentes que da prova existente nos autos e produzida em audiência de julgamento, impossível era dar como provada a factualidade que levou a sua condenação.

Ora, outro é o nosso ponto de vista.

Com efeito, e como repetidamente temos vindo a afirmar:

“No que toca ao erro notório na apreciação da prova, este apenas “existe quando se dão como provados factos incompatíveis entre si, isto é, que o que se teve como provado ou não provado está em desconformidade com o que realmente se provou, ou que se retirou de um facto tido como provado uma conclusão logicamente inaceitável.
O erro existe também quando se violam as regras sobre o valor da prova vinculada, as regras de experiência ou as legis artis.
Tem de ser um erro ostensivo, de tal modo evidente que não passa despercebido ao comum dos observadores”.

De facto, “É na audiência de julgamento que se produzem e avaliam todas as provas (cfr. artº 336º do C.P.P.M.), e é do seu conjunto, no uso dos seus poderes de livre apreciação da prova conjugados com as regras da experiência (cfr. artº 114º do mesmo código), que os julgadores adquirem a convicção sobre os factos objecto do processo.
Assim, sendo que o erro notório na apreciação da prova nada tem a ver com a eventual desconformidade entre a decisão de facto do Tribunal e aquela que entende adequada o Recorrente, irrelevante é, em sede de recurso, alegar-se como fundamento do dito vício, que devia o Tribunal ter dado relevância a determinado meio probatório para formar a sua convicção e assim dar como assente determinados factos, visto que, desta forma, mais não se faz do que pôr em causa a regra da livre convicção do Tribunal”; (cfr., v.g., Ac. de 12.05.2011, Proc. n° 165/2011, e mais recentemente de 21.03.2013, Proc. n.° 113/2013 do ora relator).

E, nesta conformidade, cremos que evidente é que não padece o Acórdão recorrido do vício em questão, necessária não sendo uma grande exposição para assim demonstrar.

Importa ter presente que o princípio da livre apreciação da prova, significa, basicamente, uma ausência de critérios legais que pré-determinam ou hierarquizam o valor dos diversos meios de apreciação da prova, pressupondo o apelo às “regras de experiência” que funcionam como argumentos que ajudam a explicar o caso particular com base no que é “normal” acontecer.

Na verdade, é comummente aceite que o julgamento da causa é o que se realiza em Primeira Instância, e que o recurso visa apenas corrigir erros de procedimento ou de julgamento que nele possam ter resultado, incluindo erros de julgamento da matéria de facto.

Daí que em caso algum pode o recurso servir para obter um “novo julgamento”, (em segunda instância; cfr., v.g., G.M. da Silva, in “Forum Justitiae”, Maio de 1999).

Com efeito, o objecto do recurso é a “decisão recorrida” e não o “julgamento da causa”, propriamente dita.

E óbvias razões existem para que assim seja.

De facto, a produção da prova decorre perante o Tribunal de Primeira Instância e no respeito de dois princípios fundamentais e interconectados: o da oralidade e o da imediação. E com isso, visa-se assegurar o princípio basilar do julgamento da matéria de facto em processo penal: o da livre apreciação da prova por parte do julgador; (cfr., art. 114° do mesmo C.P.P.M.).
O princípio da imediação pressupõe um contacto directo e pessoal entre o Tribunal (julgador) e as pessoas que perante ele depõem, (e também com todas as outras provas produzidas), sendo esses os depoimentos (elementos probatórios) que irá valorar e que servirão para fundamentar a decisão da matéria de facto sendo precisamente essa relação de proximidade entre o Tribunal do julgamento em Primeira Instância e as provas que lhe confere os meios próprios e adequados para valorar a credibilidade dos depoentes e que (de todo em todo) o Tribunal do recurso não dispõe. Há na verdade que atender e valorar factores tão diversos como as razões de ciência que os depoentes invocam, a linguagem que utilizam, (verbal e / ou não verbal), a espontaneidade com que depõem, as hesitações que manifestam, o tom de voz com que o fazem, as emoções que deixam transparecer, quer de inquietude quer de serenidade, através de expressões faciais, o movimento (de mãos ou de pés), repetido e/ou descontrolado, o encolher de ombros, que umas vezes pode significar ignorância e outras reprovação, a forma e a intensidade do olhar, que muito pode revelar, (v.g., desejo de vingança, ódio, compaixão, dúvida ou certeza), as contradições que evidenciam e o contexto em que tal acontece, que as pode justificar ou tornar inaceitável.

Daí que quando a decisão do Tribunal se estriba na credibilidade de uma fonte probatória assente na imediação e na oralidade, o Tribunal de recurso só a pode censurar se ficar demonstrado que o iter da convicção por ele trilhado ofende as regras sobre o valor da prova tarifada, as regras de experiência comum e legis artis.

Vê-se bem assim que o duplo grau de jurisdição na apreciação da decisão da matéria de facto, não tem, (nem podia ter), a virtualidade de abalar o princípio da livre apreciação da prova que está conferido ao julgador de primeira instância, só podendo o Tribunal de recurso modificar aquela decisão quando não encontrar qualquer suporte nos meios de prova produzidos no processo, (ou como se disse, se se vier a verificar que a convicção formada pelo julgador contrarie as regras sobre o valor da priva tarifada, as regras da experiência comum, da lógica e dos conhecimentos científicos).

Em suma, e também como já se deixou relatado, sempre que a convicção do Tribunal se mostre ser uma convicção razoavelmente possível e explicável pelas regras da experiência comum, deve a mesma ser acolhida e respeitada pelo Tribunal de recurso.

Dito isto, e baixando ao caso dos presentes autos, constata-se que as provas existentes nos autos permitem a decisão proferida pelo Colectivo a quo, afigurando-se-nos ser a mesma, lógica, não se vislumbrando violação de qualquer regra sobre o valor da prova tarifada, regra de experiência e legis artis.

Dizem, em síntese os arguidos, que das suas declarações, (certo sendo que um até manteve-se silente), e do depoimento do ofendido como da sua mãe, (os únicos que na opinião dos mesmos recorrentes poderiam declarar “matéria útil e relevante”), não é possível concluir que aquele esteve privado da sua liberdade (contra a sua vontade).

Porém, não se pode olvidar que na audiência foram (ao todo) inquiridas 6 testemunhas de acusação, (não se mostrando de subscrever o entendimento quanto à relevância dos depoimentos prestados), que dos autos constam as declarações de C (a fls. 55), assim como certidão do Acórdão do T.J.B. da sua condenação no âmbito do Processo n.° CRC-16-0207-PCC, (a fls. 235 a 238-v), onde os ora recorrentes são “referenciados”, sendo ainda de ter, especialmente, em conta, o depoimento do ofendido, (em parte transcrito pelos arguidos), onde o mesmo declara ter sentido (muito) “medo” e “vontade de ir para casa”, ao que lhe disseram que “não era bom”, tudo a conjugar, logicamente, com a “queixa” apresentada e “origem do presente processo”.

Com efeito, quem é que depois de perder o dinheiro que lhe foi emprestado para jogar num casino de Macau, vai, com os seus credores, de sua livre vontade, e como se nada mais tivesse para fazer, para um hotel, (que não escolhe), ficando aí hospedado, por vários dias, quase cinco, sempre “acompanhado”, e sem outro objectivo, até que o empréstimo seja pago?

Assim, inexistindo o imputado “vício”, evidente é, em conformidade com o que vem este T.S.I. entendendo em sede de apreciação de pedidos de “renovação de prova”, (cfr., v.g., o Ac. de 12.06.2003, Proc. n.° 107/2003, e, mais recentemente, de 07.02.2013, Proc. n.° 54/2013), que o mesmo só pode ser indeferido, por inverificação dos seus pressupostos legais, sendo, pois, de se passar para a questão seguinte.

–– Quanto à “pena”.

Dizem também os recorrentes que deviam beneficiar de uma “atenuação especial da pena”, alegando que os factos são datados de 2006, e que entretanto decorreram vários anos.

Pois bem, em relação a esta matéria tem este T.S.I. entendido que:

“A atenuação especial só pode ter lugar em casos “extraordinários” ou “excepcionais”, ou seja, quando a conduta em causa “se apresente com uma gravidade tão diminuída que possa razoavelmente supor-se que o legislador não pensou em hipóteses tais quando estatuiu os limites normais da moldura cabida ao tipo de facto respectivo”, (cfr., v.g., o recente Ac. deste T.S.I. de 14.04.2011, Proc. n°130/2011 e de 18.04.2013, Proc. n° 185/2013).

E, nesta conformidade, também aqui, patente é a improcedência do recurso.

Com efeito, no caso, não se vislumbra nenhuma outra atenuante de relevo, sendo de notar que o ofendido esteve “privado da sua liberdade de 09 a 14.02.2006, fortes sendo as necessidades de prevenção criminal”.

Por sua vez, em causa estando um crime (de “sequestro”) punível com pena de 3 a 12 anos de prisão, à vista está que excessiva não é a pena de 3 anos e 3 meses de prisão, apenas em 3 meses acima do seu limite mínimo.

Dest’arte, e em face do que se deixou expendido, imperativa é a rejeição dos recursos.

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3.2. Do “recurso da medida de coacção”.

Como se deixou relatado, o arguido B recorreu também da decisão que lhe decretou a medida de coacção de prisão preventiva.

Ora, se com o que se deixou decidido, clara não fica a solução para este recurso, cabe dizer que o crime de “sequestro” em questão não deixa de ser um “crime incaucionável”, em relação ao qual, atento o art. 193° do C.P.P.M., “deve o juiz aplicar a medida de coacção de prisão preventiva”; (cfr., v.g., o citado Acórdão de 07.02.2013, Proc. n.° 54/2013, onde se faz referência a outras decisões e doutrina sobre a questão).

Assim, e estando o arguido já “condenado”, (embora sem trânsito em julgado), evidente é também que nenhuma censura merece a decisão aqui recorrida.

Tudo visto, resta decidir.

Decisão

4. Em face de tudo quanto se deixou exposto, e em conferência, acordam rejeitar os recursos (cfr., art. 409°, n.° 2, al. a) e 410°, n.° 1 do C.P.P.M.), confirmando-se também a decisão que aplicou a medida de coacção de prisão preventiva ao arguido B.

Custas pelos arguidos, com 6 UCs para o arguido A e 8 UCS para o arguido B, devendo os mesmos pagar ainda o equivalente a 5 UCs como sanção (individual) pela rejeição; (cfr., art. 410°, n.° 4 do C.P.P.M.).

Macau, aos 30 de Julho de 2013
José Maria Dias Azedo
Chan Kuong Seng
Tam Hio Wa
Proc. 485/2013 Pág. 4

Proc. 485/2013 Pág. 3