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Processo n.º 273/2013 Data do acórdão: 2013-7-25 (Autos em recurso penal)
Assuntos:
– condutor de autocarro
– caída da passageira por desequilíbrio
– dever de condução prudente
– questão de direito
– matéria conclusiva
– matéria de facto considerada não escrita
– culpa
– bom pai de família
– art.o 480.o, n.o 2, do Código Civil
– ampliação oficiosa da matéria de facto
– art.o 629.o, n.o 4, do Código de Processo Civil
S U M Á R I O
1. Sendo a violação, ou não, do dever de condução prudente uma questão exclusivamente de direito, não deve ter o tribunal a quo tratado desta questão na fundamentação fáctica do seu acórdão, pelo que há que considerar como não escrito o aí descrito facto não provado respeitante ao dever de condução prudente.
2. Por outro lado, como a aí também descrita não comprovação de que “o arguido, ao fazer arrancar de novo o autocarro para sair da paragem de autocarro, não adoptou medidas necessárias para prevenir a ocorrência do acidente, e causou directa e necessariamente lesão à integridade física da ofendida” é matéria conclusiva em conexão com o entendimento assumido pelo tribunal a quo no referente à opinada não violação do dever de condução prudente, essa matéria conclusiva tem que ser considerada como não escrita.
3. Por fim, não pode relevar para a decisão da causa civil enxertada nos subjacentes autos penais, o facto de o tribunal a quo ter descrito como não provado que “o arguido sabia claramente que a sua conduta não era permitida por lei e era punível por lei”, visto que se trata de um facto imputado no libelo acusatório com relevância apenas para sustentar a procedência da acusação penal a nível do crime negligente de ofensa grave à integridade física, do qual já veio finalmente absolvido o arguido no acórdão ora recorrido pela ofendida e demandante civil.
4. Conforme a factualidade provada em primeira instância: o arguido estava a conduzir o autocarro dos autos, e chegou a parar esse autocarro numa paragem de autocarro para tomada de passageiros; quando a ofendida, depois de subir a esse autocarro e pagar a tarifa de transporte, se preparou a procurar lugar para se sentar, o arguido fez arrancar o autocarro, sem ter esperado pela ofendida a sentar-se; a ofendida perdeu o equilíbrio e caiu no chão, e foi depois levada ao hospital para tratamento; e essa caída causou à ofendida a fractura da 2.a vértebra lombar.
5. Embora não seja de exigir ao demandado condutor que só possa fazer arrancar de novo o autocarro para sair da paragem depois ter assegurado que todos os passageiros já se encontrem sentados ou estavelmente de pé, os referidos factos dados por provados na decisão recorrida não são suficientes para se ajuizar, aos olhos de um bom pai de família por força do estatuído no art.o 480.o, n.o 2, do Código Civil, da alegada culpa do condutor pela caída da ofendida no chão do autocarro.
6. Daí que o tribunal ad quem pode, nos termos permitidos pelo art.o 629.o, n.o 4, do Código de Processo Civil, e para a boa decisão da causa, ampliar oficiosamente a matéria de facto com quesitação do seguinte: em quê modo (se de repente, se apressado, se suave ou se devagar) fez o condutor arrancar de novo o autocarro? e em quê ponto concreto do chão do autocarro ocorreu a caída da ofendida?
7. Cabe, pois, ao mesmo tribunal colectivo a quo investigar, em audiência contraditória, essas duas circunstâncias ora quesitadas, e decidir juridicamente, de novo, sobre a causa cível, de acordo com o resultado de investigação a fazer dessas duas circunstâncias e com a matéria de facto já descrita como provada no acórdão ora recorrido, mas depurada nos termos acima observados.
O relator,
Chan Kuong Seng

Processo n.º 273/2013
(Autos de recurso penal)
Recorrente (demandante civil): A




ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU
I – RELATÓRIO
Inconformada com o acórdão proferido a fls. 271 a 277 dos autos de Processo Comum Colectivo n.° CR3-11-0188-PCC do 3.o Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base, na parte referente à decisão do seu pedido cível de indemnização então enxertado nesses autos penais emergentes de acidente de viação, veio a lesada do acidente de viação e demandante chamada A recorrer para este Tribunal de Segunda Instância (TSI), para rogar que se passasse a julgar como provado o pedido cível, com fixação da quantia indemnizatória dos seus danos patrimoniais sofridos em MOP37.273,00 (trinta e sete mil, duzentas e setenta e três patacas) e da quantia compensatória dos seus danos não patrimoniais em MOP400.000,00 (quatrocentas mil patacas), ambas com juros legais desde a data da decisão até integral e efectivo pagamento, ou, se assim não se entendesse, com fixação de quantias indemnizatórias tidas por justas e razoáveis à luz do juízo de equidade, tendo, para este efeito, alegado essencialmente na sua motivação (com versão rectificada de lapsos a fls. 292 a 297v dos presentes autos correspondentes) que:
– mesmo que o condutor do autocarro dos autos, ou seja, o 1.o demandado civil, não tivesse o direito de exigir a todos os passageiros do autocarro que tivessem que ficar sentados ou de pé para só assim é que poderia avançar o autocarro, isto não dispensaria o dever de condução prudente do condutor, o qual não poderia fazer mover o autocarro quando algum passageiro ainda estivesse a mover-se dentro do autocarro;
– no caso dos autos, o demandado condutor fez avançar de novo o autocarro sem que a própria demandante passageira tenha ficado sentada ou estavelmente de pé, o que fez com que ela tenha caído por perda de equilíbrio, pelo que as lesões corporais por ela sofridas na sequência disso resultaram directa e adequadamente do acto desse condutor de incumprimento do dever de condução prudente;
– teve, pois, o condutor culpa pela produção desse resultado lesivo, a relevar em sede de responsabilidade civil por facto ilícito a que aludem os art.os 477.o e 557.o do vigente Código Civil (CC);
– e ainda que assim não se entendesse, sempre haveria que aplicar ao caso dos autos o regime de responsabilidade civil pelo risco, a que se refere sobretudo no art.o 496.o do CC, daí que deveria ser proferida decisão de condenação no pagamento da indemnização reclamada mesmo ao abrigo do art.o 358.o, n.o 1, do actual Código de Processo Penal (CPP).
Ao recurso respondeu (a fls. 304 a 309 dos autos) a 3.a demandada Companhia de Seguros B, S.A.R.L. (B保險有限公司), a sustentar a improcedência da argumentação da recorrente.
Subidos os autos, afirmou, em sede de vista, a Digna Procuradora-Adjunta (a fl. 328) que não tinha legitimidade para emitir parecer, por o recurso estar circunscrito à matéria meramente civil.
Feito o exame preliminar, corridos os vistos e realizada a audiência neste TSI, cumpre decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICA
Do exame dos autos, sabe-se o seguinte, com pertinência à solução do recurso:
A. Segundo a fundamentação fáctica do acórdão recorrido (tecida originalmente em chinês a fls. 272v a 274v dos autos, e com tradução para português aqui feita pelo ora relator):
O Tribunal a quo deu como provado material e essencialmente o seguinte:
– em 20 de Julho de 2010, cerca das 10:40 horas da noite, o arguido C parou um autocarro da TRANSMAC – Transportes Urbanos de Macau, S.A.R.L. (澳門新福利公共汽車有限公司), com chapa de matrícula n.o MK-XX-XX, por si conduzido, numa paragem de autocarro para efeitos de tomada de passageiros. Quando a passageira A (ofendida), depois de subir ao autocarro e pagar a tarifa de transporte, se preparou a procurar lugar para se sentar, o arguido fez arrancar o autocarro, sem ter esperado pela ofendida a sentar-se. A ofendida perdeu o equilíbrio e caiu no chão, e foi depois levada ao Hospital Kiang Wu para tratamento;
– a caída acima referida causou à ofendida a fractura da 2.a vértebra lombar, a qual lhe demandou 120 dias para convalescença, e a implicar, após a convalescença, dores na cintura;
– as despesas da ofendida no tratamento no Hospital Kiang Wu no dia 20 de Julho de 2010 e em consultas médicas posteriores foram, ao total, de MOP1.888,00;
– como a ofendida não tinha familiares em Macau, e, depois de lesada, não conseguia cuidar de si própria, precisou de voltar à sua pátria em Xinhui (新會) no Interior da China para ser cuidada pelo filho e ser tratada em hospital de lá;
– depois de voltar à pátria, a ofendida continuou a receber tratamento, e submeteu-se à operação cirúrgica em Junho de 2011, com despesas totalizadas em RMB18.203,30, equivalentes a MOP22.928,90 (à taxa de conversão cambiária de 1 renminbi para 1,2596 patacas);
– a ofendida também comprou medicamentos para tratamento das lesões, com despesas de MOP1.397,00 e de RMB3.064,00 (equivalentes a MOP3.859,40), no total de MOP5.256,40;
– como a ofendida recebeu tratamento em Xinhui, e posteriormente precisou de se deslocar, por várias vezes, a Macau para tratar de assuntos e para ir ao Hospital Kiang Wu para consultas médicas de acompanhamento, teve, assim, RMB881,00 de despesas de transporte (equivalentes a MOP1.109,70);
– a ofendida trabalhava como empregada de distribuição de comidas no Restaurante “XX” (XX軒), com remuneração mensal média de MOP6.090,00 no período de Abril a Julho de 2010;
– no período de 20 de Julho de 2010 a 31 de Agosto de 2010, a ofendida não conseguiu ir ao trabalho, com percas salariais no valor total de MOP6.090,00;
– depois do acidente, a ofendida sentia, às vezes, dores na cintura;
– depois do acidente, a ofendida sofreu insónia, sendo-lhe difícil adormecer, o que faz preocupar a ofendida;
– o acidente causou à ofendida dores, lesões e pressão, a nível psicológico e físico.
Por outro lado, o Tribunal recorrido descreveu como inclusivamente não provado que:
– o arguido, ao fazer arrancar de novo o autocarro para sair da paragem de autocarro, não adoptou medidas necessárias para prevenir a ocorrência do acidente, e causou directa e necessariamente lesão à integridade física da ofendida;
– a conduta do arguido violou o dever de condução prudente;
– o arguido sabia claramente que a sua conduta não era permitida por lei e era punível por lei (com nota deste TSI: isto corresponde ao último facto acusado pelo Ministério Público para sustentar também a procedência do crime negligente de ofensa grave à integridade física, imputado ao arguido).
B. O Tribunal recorrido acabou por decidir absolver o arguido do acusado crime negligente de ofensa grave à integridade física, absolver da instância do pedido cível o 1.o demandado (i.e., o arguido) e a 2.a demandada TRANSMAC, e absolver a 3.a demandada Companhia de Seguros B, S.A.R.L., do pedido cível.
C. Conforme a apólice do seguro automóvel do autocarro dos autos (a que se reporta a fl. 149 dos autos), o montante segurado por cada acidente era de MOP20.000.000,00.
III – FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
De antemão, é de notar que mesmo em processo penal, e com excepção da matéria de conhecimento oficioso, ao tribunal de recurso cumpre resolver só as questões material e concretamente alegadas na motivação do recurso e ao mesmo tempo devidamente delimitadas nas conclusões da mesma, e já não responder a toda e qualquer razão aduzida pela parte recorrente para sustentar a procedência das suas questões colocadas (nesse sentido, cfr., de entre muitos outros, os acórdãos do TSI, de 7 de Dezembro de 2000 no Processo n.o 130/2000, de 3 de Maio de 2001 no Processo n.o 18/2001, e de 17 de Maio de 2001 no Processo n.o 63/2001).
Da argumentação da recorrente, flui com nitidez que ela discorda do entendimento do Tribunal recorrido segundo o qual o arguido não violou o dever de condução prudente.
A este propósito, é desde logo evidente ao presente Tribunal ad quem que sendo a violação, ou não, do dever de condução prudente uma questão exclusivamente de direito, não deve ter o Tribunal Colectivo recorrido tratado desta questão na fundamentação fáctica do seu acórdão, pelo que há que considerar como não escrito o aí descrito facto não provado respeitante ao dever de condução prudente.
Por outro lado, como a aí também descrita não comprovação de que “o arguido, ao fazer arrancar de novo o autocarro para sair da paragem de autocarro, não adoptou medidas necessárias para prevenir a ocorrência do acidente, e causou directa e necessariamente lesão à integridade física da ofendida” é matéria conclusiva em conexão com o entendimento assumido pelo Tribunal recorrido no referente à opinada não violação, pelo arguido, do dever de condução prudente, essa matéria conclusiva tem que ser considerada como não escrita.
Por fim, não pode relevar para a decisão da causa civil enxertada nos subjacentes autos penais, o facto de o Tribunal recorrido ter descrito como não provado que “o arguido sabia claramente que a sua conduta não era permitida por lei e era punível por lei”, visto que se trata de um facto imputado no libelo acusatório com relevância apenas para sustentar a procedência da acusação penal a nível do crime negligente de ofensa grave à integridade física, do qual já veio finalmente absolvido o arguido no acórdão ora recorrido pela demandante civil.
Assim sendo, é de decidir da sorte do presente recurso, com consideração da matéria de facto provada em primeira instância (mormente os já referenciados na parte II do presente acórdão de recurso), depois de depurada nos termos acima vistos.
Conforme essa factualidade provada: o arguido estava a conduzir o autocarro dos autos, e chegou a parar esse autocarro numa paragem de autocarro para tomada de passageiros; quando a ofendida, depois de subir a esse autocarro e pagar a tarifa de transporte, se preparou a procurar lugar para se sentar, o arguido fez arrancar o autocarro, sem ter esperado pela ofendida a sentar-se; a ofendida perdeu o equilíbrio e caiu no chão, e foi depois levada ao hospital para tratamento; e essa caída causou à ofendida a fractura da 2.a vértebra lombar.
Pois bem, embora não seja realmente de exigir ao demandado arguido condutor que só possa fazer arrancar de novo o autocarro para sair da paragem depois ter assegurado que todos os passageiros já se encontrem sentados ou estavelmente de pé, os factos então dados por provados na decisão recorrida não são suficientes para se ajuizar, aos olhos de um bom pai de família por força do estatuído no art.o 480.o, n.o 2, do CC, da alegada culpa do demandado condutor pela caída da ofendida demandante no chão do autocarro.
É que para se decidir da responsabilidade civil por facto ilícito, imputada a título principal pela demandante recorrente ao arguido condutor, importa – por ser indispensável para a boa decisão da causa cível – investigar também as duas circunstâncias fácticas seguintes: em quê modo (se de repente, se apressado, se suave ou se devagar) fez o demandado condutor arrancar de novo o autocarro? e em quê ponto concreto do chão do autocarro ocorreu a caída da ofendida demandante?
Assim sendo, e nos termos permitidos pelo art.o 629.o, n.o 4, do Código de Processo Civil, há que ampliar a matéria de facto com quesitação das duas circunstâncias acima referidas, cabendo ao mesmo Tribunal Colectivo ora recorrido investigar, em audiência contraditória, essas duas circunstâncias, e decidir juridicamente, de novo, sobre a enxertada causa cível, de acordo com o resultado de investigação a fazer dessas duas circunstâncias e com a matéria de facto já descrita como provada no acórdão ora recorrido, mas depurada nos termos supra observados.
Do até agora considerado, decorre prejudicada a necessidade de conhecimento, na presente sede recursória, do mérito do pedido cível de indemnização da ofendida, quer a nível da responsabilidade civil por facto ilícito, quer da responsabilidade pelo risco.
IV – DECISÃO
Dest’arte, acordam em ampliar oficiosamente a matéria de facto julgada no acórdão recorrido, nos termos acima concretamente consignados, cabendo ao mesmo Tribunal Colectivo recorrido decidir de novo da causa cível enxertada nos subjacentes autos penais.
Custas do presente processado recursório pela parte vencida a final na causa cível, sem prejuízo dos efeitos do apoio judiciário concedido (a fl. 316v) à demandante na modalidade de dispensa total de pagmento de custas.
E fixam em três mil e oitocentas patacas os honorários do Ex.mo Patrono Oficioso da recorrente, nomeado antes da vigência da actual Lei n.o 13/2012, de 10 de Setembro.
Comunique a decisão à própria pessoa do arguido e da TRANSMAC .
Macau, 25 de Julho de 2013.
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Chan Kuong Seng
(Relator)
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Tam Hio Wa
(Primeira Juíza-Adjunta)
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José Maria Dias Azedo
(Segundo Juiz-Adjunto)
(Com a declaração de que a se decidir pela anvlação do julgamento o mesmo devia ocorrer com base no vício de “insuficiência da matéria de facto” para a decisão proferida, com o consequente reenvio dos autos em termos do artº 418º do C.P.P.M.)



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