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Recurso nº 237/2008
Data: 25 de Julho de 2013
Assuntos: - Delimitação do objecto de recurso
- Responsabilidade Civil do Administração
- Danos
- Ónus de prova do facto negativo
- Artigo 630º nº 4 do CPC
- Poder discricionário
- Acto anulado por falta de fundamentação



SUMÁRIO
1. Um recurso deve ser delimitado as questões sobre quais a decisão recorrida tinha pronunciado, já não uma repetição da acção proposta, sob pena de tornar o Tribunal de Recurso em Tribunal de primeira instância.
2. As rendas pagas durante o licenciamento da farmácia, consubstanciam danos, susceptíveis de ser indemnizados, causados pela tardia da autorização do licenciamento da farmácia.
3. Para provar o facto negativo de não ter feito o uso do estabelecimento para outro negócio, basta uma alegação, cabendo a outra parte o ónus de prova de ter efectivo uso diverso do mesmo estabelecimento.
4. Não obstante o conteúdo do quesito (Durante o período de licenciamento a A. mantinha a loja fechada e sem poder efectuar o seu negócio?) não ter respeitado a regra de ónus de prova, o facto de não ter dado como provado na resposta desse quesito não podia por isso julgar no prejuízo da autora.
5. Não há necessidade do cumprimento do contraditório nos termos do nº 3 do artigo 630º do CPC, por a recorrente tinha exaustivamente abordado todas as questões e a ré tinha respondido também a todas as questões invocadas no recurso, quando ao Tribunal do recurso cumpre conhecer das questões de que se entendeu por serem prejudicadas.
6. O artigo 30º nº 4 do D.L. 58/90/M confere à Administração o poder discricionário, e não nitidamente vinculado, tendo esta bastante poder na avaliação a condição prevista nesse número.
7. Para haver ilicitude responsabilizante é necessário que a Administração tenha violado uma norma que proteja o direito ou interesse que o particular pretende ver satisfeito.
8. O vício de forma por falta de fundamentação, embora preenchendo a noção ampla de ilicitude, só gerará direito de indemnização se esse motivo anulatório tiver inquestionavelmente determinado o conteúdo resolutório do acto ilegal, de tal modo que se o acto tivesse respeitado os deveres de fundamentação haveria de ter satisfeito o direito ou interesse substantivo.
        O Relator,
        Choi Mou Pan

Recurso nº 237/2008
Recorrente: A
Recorrido: Serviços de Saúde (衛生局)





Acordam no Tribunal de Segunda Instância da R.A.E.M.:
   
   A, casada, residente em Macau, proprietária da Farmácia XXX III, ao abrigo do disposto nos artigos 10º, 116º e 117º do Código de Processo Administrativo Contencioso e artigos 2º e ss do Decreto-Lei n.º 28/91/M de 22 de Abril com as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º110/99/M, intentou acção declarativa de condenação com processo ordinário, contra Serviços de Saúde de Macau, ora representados pelo seu Director, Exmº Sr. Koi Kuok Ieng, pedindo ser a R. condenada a pagar à A. a quantia de MOP$1.966.540,00, acrescida de juros desde a data da citação e até integral pagamento, bem como em custas e tudo o mais legal.
   Foi citada a ré e esta contestou, correndo os autos junto do Tribunal Administrativo sob n° 87/07-AO, o Tribunal Colectivo respondeu aos quesitos e finalmente o MM° Juiz Titular do processo proferiu a sentença julgando improcedente a acção e absolvendo a ré dos pedidos.
   Com esta decisão absolutória não conformou, recorreu a autora para esta instância, alegando que:
1. A sentença de que ora se recorre, enferma de erro na interpretação e na aplicação da lei.
2. Pois, face aos factos que foram considerados provados estão cumpridas as condições de admissibilidade para aplicação do regime de responsabilidade civil da administração previsto pelo Decreto-Lei n.º 28/91/M de 22 de Abril, com as alterações efectuadas pelo Decreto-Lei n.º 110/99/M.
3. São essas condições a existência de:
a. ilicitude por parte da administração;
b. culpa da administração;
c. danos causados ao particular;
d. e o nexo de causalidade entre os danos e a actividade ilicita da administração.
4. Provou-se a culpa da administração pois o pedido de licenciamento demorou 3 anos e 7 meses a ser concedido com um fundamento que não era, nem nunca foi, verdadeiro.
5. Provou-se a culpa da administração pois esta deveria ter analisado com atenção e correcção o pedido efectuado pela recorrente (com a diligência exigível a um bom pai de família) o que obviamente não foi feito.
6. Provou-se que a recorrente sofreu danos no montante total de MOP$1.773.118,00, e,
7. Que estes danos forma causados única e exclusivamente pela actuação ilícita da entidade recorrida, pelo que terão que ser por esta ressarcidos.
Nestes termos deve, pelas apontadas razões, ser julgado procedente o presente recurso, assim se fazendo a esperada e sã Justiça!
    
   A este recurso respondeu a ré que contra-alegou que:
i. Nunca em momento algum os actos practicados pela Ré, impugnados judicialmente pela Autora, padeceram de vício de violação da lei, o que facilmente se comprova pela leitura de todas as decisões judiciais que se pronunciaram sobre os vícios de tais actos.
ii. Todas as decisões tomadas pela Ré foram-no sempre no estrito cumprimento da lei e de acordo com os elementos disponíveis face aos meios técnicos existentes.
iii. É a própria A. quem junta aos autos um documento comprovativo de que a distância entre farmácias apresentava, à data dos factos, dois valores diferentes, um inferior a 300 metros e outro superior a 300 metros;
iv. Além disso, o critério da distância não foi o único que pesou nas decisões tomadas, sendo que para a fundamentação da decisão de indeferimento pesaram, cumulativamente, outros critérios;
v. Em momento algum se pode considerar que a Ré não actuou de forma diligente, em face da situação da requerente, tendo apenas exigido os documentos previstos na lei e nada mais;
vi. No caso concreto, foram investigadas todas as circunstâncias concretas do pedido de licenciamento antes de ser proferido qualquer despacho de indeferimento, sendo certo que é preciso ter em conta os elementos disponíveis em cada momento face aos meios técnicos existentes;
vii. O único dano cuja prova a A. logrou fazer para efeitos de subsunção da matéria de facto dada como provada na solução de direito prevista na lei, deverão ser os valores relativos aos salários alegadamente pagos ao Dr. B;
viii. O pedido da A. respeitante às rendas alegadamente pagas no âmbito do contrato de arrendamento celebrado não pode proceder pela inexistência de um pressuposto essencial para que haja qualquer dever de indemnização, ou seja, pela impossibilidade de classificação de tais despesas como dano;
ix. Para fundamentar o pedido de indemnização apresentado relativamente ao valor das rendas, que quantificou em HK$1,118,000.00, correspondente a MOP$1,151,540.00, a Autora alegou que o espaço arrendado permaneceu sempre fechado, motivo pelo qual se viu impossibilitada de exercer o seu negócio.
x. Contudo, tais factos foram dados como não provados, face à prova documental junta aos autos, designadamente fotografias do local arrendado comprovativas da sua abertura ao público.
xi. A Autora usufruiu, efectivamente, do espaço arrendado, como contrapartida das rendas que alegadamente pagou, pelo que o valor das mesmas foi devidamente compensado pelo gozo do local;
xii. Resulta inequívoco que falta, quanto ao alegado direito de indemnização referente ao valor de MOP$1,151,540.00, o pressuposto desse mesmo direito, que é a existência de dando;
xiii. A Autora não logrou fazer prova de que o contrato de trabalho celebrado com o C alguma vez tenha entrado em vigor e, muito menos, a data do seu início e do seu termo;
xiv. Esta matéria é, de facto e de direito, relevante, uma vez que vai determinar a qualificação jurídico do contrato celebrado e, bem assim, das quantias alegadamente pagas.
xv. Nos termos do artigo 1079º do Código Civil “Contrato de trabalho é aquele pelo qual uma pessoa se obriga, mediante retribuição, a prestar a sua actividade intelectual ou manual a outra pessoa, sob autoridade e direcção desta.”.
xvi. Ou seja, a retribuição paga visa compensar o trabalhar efectivamente prestado.
xvii. Ora, no caso concreto, não ficou feita a prova de que alguma vez o C tivesse prestado a sua actividade profissional “durante o período em que decorreu o licenciamento”.
xviii. Nem podia, uma vez que estava legalmente impedido de o fazer em virtude de a farmácia não se encontrar ainda licenciada (nos termos do n.º 1 do artigo 18º do Decreto-Lei n.º 58/908/M de 19 de Setembro, “A abertura de estabelecimentos de actividade farmacêutica está sujeita a autorização prévia.”).
xix. Além disso, nos termos do n.º 2 do artigo 33º do mesmo diploma, “Só se considera haver exercício efectivo e permanente da direcção técnica se o farmacêutico se encontrar ao serviço da farmácia durante, pelo menos, dois terços ou metade do período de funcionamento diário desta.”.
xx. As quantias que alegadamente lhe foram pagas pela Autora, não o foram, com certeza, a título de contraprestação pelo trabalho prestado a favor daquela na qualidade de Director Técnico (categoria constante do contrato de trabalho), uma vez que a farmácia não se encontrava ainda licenciada;
xxi. Havendo um impedimento legal real ab initio para a prestação de trabalho na qualidade de Director Técnico da Farmácia “XXX III”, o contrato celebrado entre a Autora e o referido farmacêutico não foi com certeza um contrato de trabalho, não obstante aquela vir juntar aos autos um documento assim intitulado (Doc. 21 da PI);
xxii. É inevitável concluir que estamos perante um negócio simulado, nos termos do n.º 1 do arigo 232º do Código Civil, celebrado com o intuito de enganar a ora Ré e o próprio Tribunal, no sentido de tentar fazer crer que, a partir de 1 de Maio de 2002, existiu uma relação laboral entre o identificado Farmacêutico e a Autora.
xxiii. Nos termos do n.º 2 do artigo 232º do Código Civil, o negócio simulado é nulo.
xxiv. Não podem nunca as quantias alegadamente pagas ao referido farmacêutico ser apelidadas de salário, uma vez que, como fica alegado, nunca existiu um contrato de trabalho entre a Autora e o C.
xxv. Resulta claro da matéria de facto provado e da matéria de direito aplicável, a inimputabilidade, à Ré, das despesas alegadamente efectuadas pela Autora a título rendas e salários;
xxvi. Todas as decisões tomadas pela Ré foram-no sempre no sentido cumprimento da lei e de acordo com os elementos disponíveis face aos meios técnicos existentes;
xxvii. Todos os documentos exigidos à Autora para instrução do processo de licenciamento da Farmácia “XXX III” estão de acordo com as exigências legais, designadamente o artigo 32º do Decreto-Lei 58/90/M de 19 de Setembro, que regula o exercício da profissão e da actividade farmacêuticas na RAEM;
xxviii. Só a partir da data da autorização de instalação da farmácia é que a requerente passa a ter uma necessidade real de entrar na posse do espaço onde pretende instalar a farmácia;
xxix. A partir do momento em que a Autora foi notificada da decisão de 18 de Julho de 2001, que lhe indeferiu liminarmente, em virtude do parecer negativo da comissão técnica, o pedido de licenciamento da farmácia, bem sabia que não corria qualquer prazo para a instalação da mesma;
xxx. E bem sabia também que se trava de uma decisão com eficácia imediata, isto é, a Autora sabia que a partir daquele primeiro indeferimento não podia instalar a farmácia no local escolhido e, muito menos, colocar qualquer sinal identificativo da mesma;
xxxi. A Autora não pode alegar que o processo de licenciamento continuou e durou todo o intervalo de tempo em que correram termos os recursos judiciais interpostos pela mesma, uma vez que, nos termos do artigo 22 do Código de Processo Administrativo Contencioso de Macau, “O recurso contencioso não tem efeito suspensivo da eficácia do acto recorrido (...).”;
xxxii. A decisão de celebrar, em 28 de Março de 2001, um contrato de arrendamento relativo ao espaço onde pretendia instalar a Farmácia “XXX”, com início em 1 de Maio de 2001, foi uma decisão voluntária da Autora, a que não estava obrigada, nem por lei, nem por imposição da Ré, nem, por imposição das etapas do processo de licenciamento;
xxxiii. Tal como foi voluntária a sua decisão de manter tal contrato de arrendamento depois de ter sido notificada do indeferimento do pedido de licenciamento, quando bem sabia que o facto de interpor recurso judicial de tal decisão não suspenderia a eficácia da decisão de indeferimento;
xxxiv. Como voluntária foi a sua decisão de contratar os dois farmacêuticos identificados nos autos para as funções de Directores Técnicos da Farmácia.
xxxv. Nunca, em momento algum, foi exigida à Autora a apresentação de qualquer Contrato de Trabalho, nem em relação ao futuro Director Técnico da Farmácia, nem em relação ao futuro pessoal da Farmácia;
xxxvi. Como nunca, em momento algum, foi exigida à Autora a apresentação de qualquer Contrato de Arrendamento relativamente ao espaço onde se previa a instalação da Farmácia;
xxxvii. Face ao exposto, facilmente se conclui que, de todos os pressupostos de aplicação do regime da responsabilidade civil (cfr. art. 477º do CC e arts. 4º, 5º, 7º do DL 28/91/M), apenas um poderá ter existido: o dano, designadamente os valores relativos aos valores alegadamente pagos ao Dr. B.
Nestes termos e nos melhores de direito, com o douto suprimento de V. Exa., deve o presente recurso ser julgado improcedente porque não provado, mantendo-se a decisão recorrida.

   O Digno Magistrado do Ministério Público apresentou o seu douto parecer que se transcreve o seguinte:
“Toda a argumentação expendida pelo recorrente nas suas alegações se encontra expressamente rebatida e contrariada na douta sentença ora em crise, com cujo conteúdo e conclusões nos encontramos plenamente de acordo e, por ocioso, nos dispensaremos de reproduzir, não se nos afigurando, pois, que a mesma se encontre eivada de qualquer vício, designadamente o erro na interpretação e aplicação da lei, conforme por aquela assacado.
De resto, da análise do conteúdo das alegações da recorrente, fàcilmente se pode concluir que as mesmas se apresentam, em grande parte como inócuas, pelo simples facto que se debruçam e esgrimem com matéria que, em boa verdade, não foi analisada no âmbito da sentença em crise, tal seja a ocorrência de ilicitude e culpa na conduta imputada à recorrida.
Efectivamente, atentando naquele douto aresto, constatar-se-à que o Mmo Juiz “a quo”, após elencar a factualidade julgada pertinente, efectua uma breve análise, genérica e abstracta dos requisitos da responsabilidade civil extracontratual da Administração da RAEM e pessoas colectivas públicas por actos de gestão pública consignados no Dec Lei 28/91/M de 22/4, especificando, é certo, tais requisitos e fazendo mesmo questão de acentuar a “definição mais ampla” da ilicitude nestes casos, mas não procedendo ao escrutínio em concreto, da eventual ocorrência, na conduta imputada à recorrida, da ilicitude e da culpa, já que disso não sentiu necessidade, uma vez que, tendo optado por, a montante, proceder à análise dos danos invocados, concluiu ou pela inverificação deles, ou pela falta de prova respectiva, ou pela inexistência de nexo causal, razões por que se encontraria prejudicado o escrutínio daqueles outros requisitos.
Daí que, tendo inexistido pronúncia sobre a matéria, se revelem inócuas as considerações a tal propósito empreendidas nas alegações.
Seja como for, relativamente ao decidido, não nos merecem reparo, nem vemos vàlidamente infirmadas as asserções do julgador no que tange à inexistência, falta de prova e falta de nexo causal relativos aos danos invocados, para além de que fácil é constatar que a partir do momento em que a recorrente foi notificada (18/7/01) da decisão que lhe indeferiu o pedido de licenciamento da farmácia, decisão com eficácia imediata (o recurso contencioso interposto não tem efeito suspensivo dessa eficácia), as decisões que tomou de celebrar o contrato de arrendamento do local onde pretendia instalar a farmácia (ou, pelo menos, a decisão de manter tal contrato depois de notificado do indeferimento do pedido de licenciamento), bem como de contratar os 2 farmacêuticos em questão são da sua própria “lavra”, já que no decurso do processo de licenciamento lhe não era ou foi exigida a apresentação de qualquer contrato de arrendamento, ou de qualquer contrato de trabalho.
Razões por que entendemos não merecer provimento o presente recurso.”
   
   Conhecendo.
   Foram consignados por assentes os seguintes factos:
- Em 14 de Setembro de 2001, a A. impugnou junto do Tribunal Administrativo de Macau o acto administrativo praticado pelo Director da ora R., em 18 de Julho de 2001, que lhe indeferiu o pedido de licenciamento da farmácia, actualmente denominada “XXX III”, com fundamento na falta de observação dos critérios contidos no nº 4 do art.º 30º do Decreto-Lei n.º 58/90/M de 19 de Setembro.
- A este recurso contencioso não foi dado provimento por sentença de 30 de Agosto de 2002.
- Desta sentença foi interposto em 23 de Setembro de 2002 para o Tribunal de Segunda Instância da RAEM, tendo o ora A. obtido ganho na causa no acórdão de 11 de Dezembro de 2003.
- Notificada 'de tal acórdão o Director da R., em sede de execução do mencionado acórdão do Tribunal de Segunda Instância, introduziu nova fundamentação para decidir, mantendo no entanto o indeferimento do licenciamento da Farmácia “XXX III”.
- Invocou, como razões para esse deferimento o facto de que, desde meados de 2001, que os Serviços de Saúde têm vindo a indeferir pedidos de licenciamento de novas farmácias, designadamente nos casos em que as mesmas distam menos de 300 metros das mais próximas, já instaladas;
- E, que subjacente a esta mudança de critério esteve um objecto essencial de protecção da saúde pública na área do medicamento e ainda para evitar a concorrência desleal entre farmácias e garantir um acesso fácil da população a medicamentos e a um atendimento de qualidade, para além de considerar haver um número insuficiente de farmacêuticos para o número de farmácias existentes.
- Em 24 de Maio de 2004, a ora A. interpôs recurso deste despacho, concluindo que o pedido de licenciamento da farmácia esteve sempre pendente desde 2001, aguardando a decisão dos Tribunais e que, a apreciação material dos pressupostos de facto e de direito, levada a cabo pelo despacho, enferma de vício de violação de lei por erro nos pressupostos de facto, sendo anulável.
- Em 5 de Julho de 2004, o Director da R. tendo sido notificada para apresentar contestação no processo em causa, juntou aos autos uma cópia de um despacho seu, datado de 28 de Junho de 2004, através do qual autorizou a instalação da farmácia “XXX III”.
- Por sentença proferida em 20 de Outubro de 2004, o Meritíssimo Juiz “a quo” julgou “extinta a instância do referido recurso por impossibilidade superveniente da lide”, dado que o acto impugnado (despacho de 21/04/2004 pelo qual a DSS indeferiu o pedido de licenciamento da farmácia “XXX III”), foi expressamente revogado por posterior decisão.
Base Instrutória:
- Em 28 de Março de 2001, a A. assinou com B um contrato de arrendamento da loja sita na Rua do Campo, nº 102-116, r/c “D” (referente às fls. 157 dos autos).
- O contrato referido na resposta do quesito 1º teve início em 1 de Maio de 2001, tendo as partes acordado que o imóvel se destinava à exploração de uma farmácia.
- Tendo sido acordado inicialmente o pagamento de uma renda mensal de HKD$26,000.00 (vinte e seis mil dólares de Hong Kong).
- A Autora contratou o Dr. D, em 1 de Abril de 2001, para o exercício de Director técnico da Farmácia “XXX III”, mediante o salário mensal de MOP$15,000.00.
- Este contrato durou um ano, após o qual o referido Farmacêutico se despediu e passou a trabalhar noutra farmácia de Macau.
- Nessa altura a A. contratou o C, para as mesmas funções, tendo ficado acordado o pagamento de um salário mensal no valor de MOP$15,000.00 (quinze mil patacas).
- Durante o período em que durou o licenciamento da farmácia “XXX III”, a Autora pagou os salários aos farmacêuticos contratados.
    Ao indicar as provas com base das quais formam a sua convicção do Colectivo, disse o Colectivo que “a convicção do Tribunal baseou-se nos documentos juntos aos autos, nomeadamente os de fls. 18 a 172, 202 a 232 e 262 a 268, no depoimento das testemunhas ouvidas em audiência, que depuseram com isenção e imparcialidade sobre os quesitos constantes da acta, cujo teor se dá por reproduzido aqui para todos os efeitos legais e que tinham conhecimento pessoal, e também no relatório da peritagem e no processo instrutor, o que permitiu formar uma síntese quanto à veracidade dos apontados factos”.
    Acrescenta-se que o Acórdão, do processo nº 88/2003, referido na al. C) dos factos assentes, anulou o acto contenciosamente recorrido com o fundamento de ter o acto encerrado o vício de forma na sua vertente de falta de fundamentação.
    
    Então vejamos.
    A sentença recorrida, remetendo a responsabilidade civil do estado pela gestão pública regulamentada no D.L. nº 28/91/M de 22 de Abril à responsabilidade civil no Código Civil, considerou que não estavam provados os danos e por isso não procedeu a acção.
    A recorrente impugnou a decisão pelo fundamento essencial de que, face aos factos que foram considerados provados, estão cumpridas as condições de admissibilidade para aplicação do regime de responsabilidade civil da administração previsto pelo Decreto-Lei n.º 28/91/M de 22 de Abril, com as alterações efectuadas pelo Decreto-Lei n.º 110/99/M, chamando assim a aplicação da responsabilidade civil da Administração que tinha culpa pelos danos causado ilicitamente à ora recorrente.
    A priori, concordamos totalmente com o entendimento do douto parecer do Ministério Público, pois, “da análise do conteúdo das alegações da recorrente, facilmente se pode concluir que as mesmas se apresentam, em grande parte como inócuas, pelo simples facto que se debruçam e esgrimem com matéria que, em boa verdade, não foi analisada no âmbito da sentença em crise, tal seja a ocorrência de ilicitude e culpa na conduta imputada à recorrida”.
    Em modo geral, um recurso deve ser delimitado as questões sobre quais a decisão recorrida tinha pronunciado, já não uma repetição da acção proposta, sob pena de tornar o Tribunal de Recurso em Tribunal de primeira instância.
    Efectivamente, a sentença recorrida procedeu à análise dos danos e concluiu, ou pela inverificação deles, ou pela falta de prova respectiva, ou pela inexistência de nexo causal, não se entender haver necessidade de proceder à verificação do restante requisitos, ou seja os de ilicitude, a culpa e o nexo de causalidade.
    A recorrente pediu na presente acção a indemnização pelos danos causados pelo acto praticado pelo ente público, nas seguintes partes:
    Um, a perda da renda, por durante o licenciamento de farmácia não conseguiu fazer a farmácia noutra utilidade;
    Segundo, perda do pagamento dos salários dos trabalhadores, e
    Terceiro, a perda dos honorários.
    A sentença considerou que a terceira parte, não podia proceder por não estar provado o facto. Quanto à perda das rendas, a sentença entendeu que este gasto seria das despesas necessárias para o funcionamento de um estabelecimento comercial, não tinha nada a ver com a emissão tardia do licenciamento. Existiria sempre esta parte da despesa, mesmo que se obtivesse o licenciamento em tempo. Podendo ter prejuízo dos lucros resultantes da exploração da farmácia com a autorização tardia do funcionamento, a recorrente não invocou os factos e provas comprovativos desse prejuízo. Por outro lado, não está provado que o estabelecimento arrendado ficava sempre fechado durante a pendência do licenciamento da farmácia e não foi utilizado para os fins diversos, razão pela qual não ficou provada a perda dessas rendas. Por último, a lei não exige que durante o licenciamento o recrutamento dos farmacêuticos, basta porém uma declaração de responsabilidade e incompatibilidade e o destacamento ou não do mesmo farmacêutico na farmácia não obsta o requerimento do licenciamento, pelo que o pagamento do salário do farmacêutico não se pode ser considerado como danos inerente.
    Compreendemos que o Mm° Juiz a quo se optou na apreciação do pedido da indemnização por via mais fácil, inverificando um dos requisitos, ficaria logo improcedente a pretensão da indemnização pelos danos não verificados.
    O que nos parece, com a lógica do decidido, é que os danos não eram atendíveis por não terem nexo de causalidade com o acto administrativo, e, na parte in fine, admitindo haver prejuízo causado pela emissão tardia do licenciamento, improcedeu o pedido porém por não foram alegados factos e provas. Nesta óptica, por sua vez, parece que se desse uma implicação de que o acto fosse ilícito, cujo eventual dano verificado podia ser atendível como um dos requisitos da indemnização.
    Ao contrário ao decidido, entendemos que as rendas pagas durante o licenciamento da farmácia, podem consubstanciar precisamente danos, susceptíveis de ser indemnizados, causados pela tardia da autorização do licenciamento da farmácia, pois, a recorrente detinha expectativa na realização da farmácia. Tudo depende dos motivos do acto e de conformação deste à lei. Se se entender que o deferimento era actividade vinculada, isto é, se a lei, nas condições concretas dos factos, não permitia outra solução que não o deferimento, então cremos que os gastos produzidos pela ré teriam que ser considerados danos juridicamente atendíveis ou relevantes.
    Por outro lado, quanto ao facto negativo de não ter feito uso do estabelecimento para outro negócio, não fez a parte contrária a prova, como lhe competia, de ter sido efectivo uso diverso do mesmo estabelecimento, tal como veio a ré contestar nos seus termos dos articulados nºs 44 e 45.
    Não obstante o conteúdo do quesito nº 4 (Durante o período de licenciamento a A. mantinha a loja fechada e sem poder efectuar o seu negócio?) não ter sido dado como provado, daí não resulta a prova do contrário que funciona contra a autora.
    Assim sendo, afigura-se ser ousado considerar não estarem provados os danos susceptíveis de ser indemnizados no âmbito da responsabilidade civil do estado, sem, em primeiro lugar, se apurar a verificação da ilicitude do acto anulado, causador dos danos.
    Como a sentença não se tinha pronunciado sobre os outros requisitos da responsabilidade civil, nomeadamente o de ilicitude, da culpa e o nexo de causalidade, por ter entendido, pelo menos implicitamente, que ficava prejudicada a apreciação dos mesmos. Porém, com a consideração supra, devemos conhecer do restante, nos termos do artigo 630º nº 2 do Código de Processo Civil, pois dos autos estão disponíveis todos os elementos.
    Por outro lado, entende-se sem necessidade do cumprimento do contraditório nos termos do nº 3 do mesmo artigo, por a recorrente tinha exaustivamente abordado todas as questões e a ré tinha respondido também todas as questões invocadas no recurso.
    Vejamos.
    O acto inicial que indeferiu o pedido de licenciamento da farmácia tinha com fundamento nos termos do disposto no artigo 30º nº 4 do D.L. nº 58/90/M de 19 de Setembro.
    Prevê este artigo 30º (Critérios para avaliar a necessidade de abertura de novas farmácias) que:
  “1. Deverá existir uma farmácia por cada quarenta mil habitantes.
  2. A localização de cada farmácia deverá ter em conta a distribuição da população.
  3. Tem preferência o licenciamento para zonas onde não exista farmácia.
  4. Como regra, a localização de nova farmácia não deve distar menos de 300 metros de outra já existente.” (sub. nosso)
    Com a expressão aí utilizada “como regra”, pode-se constatar uma disposição do poder discricionário, e não nitidamente vinculado, pois, a Administração foi conferido bastante poder na avaliação a condição prevista nesse número 4 do artigo 30º. Quer isto implicar que, em princípio, não será de autorizar o licenciamento da farmácia que não se fizer distar mais ou igual a 300 metros de outra já existente, tendo em conta o objectivo de, tal como o que tinha fundamentado no acto do 2º indeferimento, salvaguardar a saúde público e de evitar o concurso desleal.
    Porém, pode a Administração autorizar, tendo em conta outros motivos justificados, o licenciamento da farmácia a quem não satisfizer esta regra, tal como a autorização final à ora autora, recorrente daquele processo contencioso.
    Sendo de um poder discricionário, não se pode falar aqui da violação da legalidade sem ter sido provada designadamente a manifesta inadequação ou desproporcionalidade do acto ou que este acto fosse praticado com erro grosseiro.
    O acto administrativo inicialmente recorrido foi alvo da anulação judicial por ter padecido o vício formal de falta de fundamentação da decisão.
    Como se sabe, nem toda a ilicitude é geradora de responsabilidade. Para haver ilicitude responsabilizante é necessário que a Administração tenha violado uma norma que proteja o direito ou interesse que o particular pretende ver satisfeito.1
    Julgou-se o STA de Portugal de 2 de Setembro de 2006 no processo nº 0294/2005, aqui se cita a título do direito comparado, “o vício de forma por falta de fundamentação, embora preenchendo a noção ampla de ilicitude, só gerará direito de indemnização se esse motivo anulatório tiver inquestionavelmente determinado o conteúdo resolutório do acto ilegal, de tal modo que se o acto tivesse respeitado os deveres de fundamentação haveria de ter satisfeito o direito ou interesse substantivo”.2
    Com estas duas vertentes, podemos já afirmar que, mesmo que o acto anulado estivesse fundamentado também não teria o particular ficado satisfeito o seu direito ou interesse. Ou seja, o vício de falta de fundamentação não determina a ilicitude do acto anulado, gerador da responsabilidade civil da Administração.
    Visto isto, só agora é que se pode concluir que os danos não podem ser atendíveis para o efeito da indemnização.
    Logo, não se pode responsabilizar a Administração na indemnização pelos danos causados no licenciamento da farmácia.
    Com estes fundamentos algo diversos da sentença recorrida, julga-se improcedente o recurso interposto pela autora.
    Ponderado resta decidir.
    
    Pelo exposto, acordam neste Tribunal de Segunda Instância em negar provimento ao recurso interposto pela autora A.
    Custas pela recorrente.
RAEM, aos 25 de Julho de 2013

Choi Mou Pan
João A. G. Gil de Oliveira
José Cândido de Pinho


Estive presente
Mai Man Ieng
    
    
1 Neste sentido julgou o acórdão, entre outros, do STA de 24 de Março de 2004 no processo nº 01690/2002.
2 Onde citou também os acórdãos do mesmo Tribunal de 6 de Fevereiro de 2003 no processo nº 01720/2002, de 13 de Fevereiro de 2003 no processo nº 01961/2002 e de 25 de Junho de 2003 do processo nº 04790.
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