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Processo nº 853/2012
Data do Acórdão: 31OUT2013


Assuntos:

Acto administrativo
Recurso hierárquico necessário
Competência própria do subalterno
Impugnabilidade contenciosa


SUMÁRIO

Quando a lei atribuir uma competência a um órgão subalterno da Administração Pública para a prática de um determinado acto administrativo, desse acto não cabe recurso hierárquico necessário salvo quando especialmente previsto na lei.



O relator


Lai Kin Hong


Processo nº 853/2012


Acordam em conferência na Secção Cível e Administrativa no Tribunal de Segunda Instância da RAEM:

A, devidamente identificado nos autos, ao abrigo do disposto no artº 27º do do D. L. nº 77/99/M de 08NOV, pediu ao Senhor Comandante da PSP a concessão da licença de uso e porte de arma de defesa.

Por despacho do Senhor Comandante da PSP, foi indeferido o tal pedido.

Mediante a carta registada a ele dirigida, foi A notificado tanto do teor da decisão negatória do seu pedido como também da forma do meio de reacção, que consiste nos seguintes dizeres: “desta decisão pode interpor recurso contencioso para o Tribunal Administrativo de Macau, no prazo de 30 dias após o recebimento da presente notificação.”.

Em vez de o impugnar contenciosamente para o Tribunal Administrativo, A interpôs recurso hierárquico do mesmo acto para o Senhor Secretário para a Segurança.

Por sua vez, o Senhor Secretário para a Segurança, mediante o despacho proferido em sede desse recurso hierárquico, decidiu negar provimento ao recurso hierárquico, reafirmando a natureza facultativa do recurso hierárquico e confirmando o despacho do Senhor Comandante da PSP.

Inconformado com esse despacho do Senhor Secretário para a Segurança, vem dele recorrer para este TSI.

Devidamente citada, a entidade recorrida suscitou na contestação a excepção da irrecorribilidade do acto recorrido por se tratar de um acto meramente confirmativo do acto definitivo do Senhor Comandante da PSP.

Notificado da excepção, o recorrente veio pugnar pela improcedência.

Em sede da vista inicial, o Ministério Público emitiu o douto parecer no sentido de improcedência da excepção de irrecorribilidade do acto recorrido suscitada pela entidade recorrida.

Por despacho do relator do processo, foi o conhecimento da excepção relegado para o momento da prolação do Acórdão final.

Devidamente tramitado o recurso e notificados tanto o recorrente como a entidade recorrida para as alegações facultativas, veio apenas o recorrente fazê-lo, reiterando grosso modo o já alegado e pedido na petição do recurso.

Por sua vez, o Dignº Representante do Ministério Público emitiu em sede de vista final os seus Doutos pareceres pugnando pela procedência do recurso.

Em primeiro lugar, cumpre agora apreciar a alegada irrecorribilidade do acto recorrido.

O presente recurso tem por objecto o despacho do Senhor Secretário para a Segurança que decidiu negar provimento ao recurso hierárquico interposto do despacho do Senhor Comandante da PSP que indeferiu ao recorrente o pedido da concessão da Licença de uso e porte de arma de defesa, formulado ao abrigo do disposto no artº 27º do D. L. nº 77/99/M de 08NOV.

Para a entidade recorrida, a decisão negatória da concessão da licença do Senhor Comandante da PSP foi tomada no uso da competência exclusiva que o artº 27º/2 do D. L. nº 77/99/M de 08NOV lhe confere directamente, apresenta-se com definitividade (material, horizontal e vertical) e como tal, desde logo recorrível contenciosamente junto do Tribunal Administrativo.

Ao que acresce que tendo sido proferido em sede de recurso hierárquico facultativo, o despacho, ora recorrido, do Senhor Secretário para a Segurança se trata de um acto meramente confirmativo da decisão do Senhor Comandante da PSP e como tal irrecorrível nos termos prescritos no artº 31º/1 do CPAC.

Por isso defende que o presente recurso seja liminarmente rejeitado por força do disposto no artº 46º/2-c) do CPAC.

Vejamos.

Ora, a resposta à questão da (ir) recorribilidade do acto deve ser encontrada no quadro dogmático sobre a competência hierárquica dentro da máquina administrativa e de acordo com a defensável interpretação da norma criadora e atributiva da competência do Senhor Comandante da PSP na matéria da licença de uso e porte de arma de defesa, consagrada no artº 27º/2 do D. L. nº 77/99/M de 08NOV que reza:

1. Pode ser concedida licença de uso e porte de arma de defesa a quem reúna os seguintes requisitos:
a) Ser maior;
b) Demonstrar ter adequada idoneidade moral e civil;
c) Demonstrar essa necessidade para a sua defesa pessoal ou da sua família, em razão das suas especiais condições de vida ou risco inerente ao exercício da sua actividade profissional;
d) Possuir capacidade de manejo de arma de defesa.

2. A concessão da licença de uso e porte de arma de defesa é da competência do comandante do CPSP, mediante requerimento do interessado, que a pode denegar por razões gerais de segurança e ordem públicas.

3. ……

Ora, na óptica do recorrente, a regra no nosso sistema é a de que a competência própria do subalterno é uma competência separada e não uma competência reservada ou exclusiva e só existe competência reservada ou exclusiva quando a lei dispuser expressamente.

Assim, na esteira dessa tese, e como nada ficou dito no referido decreto, entende que o acto do Senhor Comandante da PSP não é ainda contenciosamente impugnável, estando sempre sujeito à impugnação graciosa necessária.

A propósito da questão idêntica, o Exmº Colega do TSI José Cândido Pinho já se pronunciou em sentido contrário numa análise jurídica muito doutamente desenvolvida empreendida na declaração de voto de vencido, junto ao Acórdão do STA, de 11OUT2007 no proc. 0229/07, onde foi tratada a questão da impugnabilidade contenciosa do um acto de um subalterno.

Ai defende o Nosso Ilustre Colega, na parte que nos interessa, que:

……
Por ele perpassa a ideia de que a exclusividade apenas classifica a actuação do subalterno. E tal não é verdade. Embora a exclusividade seja característica essencial de um poder decisor num esquema de graus, já não é sinal de dispositividade apenas concedida ao inferior hierárquico. Pode realmente acontecer que também possa ser reconhecida ao chefe. Depende de caso para caso e da norma atributiva de competência e, embora raros, conhecemos casos desses.
Aí reside a confusão que vem sendo feita sobre o assunto e em que o STA erradamente, quanto a nós, ultimamente vem insistindo a propósito do carácter definitivo ou não do acto do Director Geral relativamente ao Ministro da respectiva área.
Para nós, definitividade e exclusividade são conceitos distintos.
A exclusividade é sinal de um poder dispositivo para decidir primariamente. A definitividade é a marca da reactividade, da impugnabilidade administrativa e contenciosa da decisão tomada em 1º grau decisor: considerada que a decisão administrativa é definitiva, por ser a única que verdadeiramente e em definitivo compromete a Administração, dela não cabe recurso hierárquico necessário e, antes, é susceptível de impugnação contenciosa imediata.
A exclusividade refere-se, pois, a um feixe substantivo de poderes, e só se compreende no quadro de uma competência funcional e orgânica, enquanto a definitividade, ligada ao aspecto da recorribilidade do acto, tem na sua essência uma marca adjectiva.
Neste contexto, como diz Freitas do Amaral, «não é válida como princípio geral a máxima de que a competência do superior abrange a dos subalternos» (in Conceito e Natureza do Recurso Hierárquico, pag. 68 e Curso de Direito Administrativo, pag. 645-647).
Ou, como refere Guy Braibant, «Não é verdadeira a ideia de quem pode o mais pode o menos» (in Le Droit Adminisfratif, pag. 238).
Isto, porque a competência é de ordem pública. Logo, deverá ser nessa ordem (normativa/pública) que deve ser encontrada a fonte de todos os poderes.
Aliás, nesta matéria o predomínio vai para o princípio da legalidade da competência vertido no art. 29°, n.°1, do C.P.A. («A competência é definida por lei ou por regulamento...»), segundo o qual a fonte directa da competência reside apenas na norma, nunca na relação administrativa hierárquica e, por conseguinte, na superioridade do chefe (F. Amaral, Curso cit, pag. 644-647; Paulo Otero, in O Poder de Substituição em Direito Administrativo, II, Lisboa, 1995, pag.238).
Portanto, se “não há competência sem texto”, terá que ser no universo normativo que se deve procurar a fonte dos poderes para a intervenção decisora e dispositiva do órgão sobre dada matéria e será aí que deveremos indagar sobre a natureza exclusiva, simultânea, separada, reservada, etc, dessa competência.
Ora, não se conhecem diplomas que confiram ao chefe competência absoluta (para tudo), a ponto tal que para ele deva caber sempre um recurso hierárquico do acto do subalterno.
Se fosse de conceber uma tal regra geral - de que do acto do inferior coubesse sempre recurso hierárquico necessário para o órgão superior da cadeia (para a qual alguma jurisprudência se inclina no que concerne à relação Director/Ministro)- não seria necessário que a lei viesse estabelecer, como frequentemente o faz, que deste ou daquele acto do subalterno cabe recurso hierárquico necessário. Se o legislador assim se viu na necessidade de definir o tipo de recurso a interpor é porque ele mesmo entendeu que nesse domínio a regra vigente é de sinal contrário: a de que não há recursos hierárquicos necessários, salvo quando especialmente previstos na lei.
Portanto, diríamos: se a lei afirma que do acto do subalterno cabe recurso contencioso, o que está é a dizer-nos que o acto praticado é definitivo (embora tal não signifique que o superior não disponha por lei de competência igual para a mesma matéria. Pode até acontecer que tenha; simplesmente, em tal hipótese, é por lei reservada ao primeiro a competência para decidir o assunto).
Se, ao contrário, estabelece que daquele acto cabe recurso hierárquico necessário, o que agora nos transmite é que a decisão impugnada não é definitiva e que, por isso, não pode ser objecto de recurso contencioso.
Se nada diz, nem num sentido, nem noutro, será preciso apurar qual a extensão e a titularidade da dispositividade de poderes criados pela norma. Impor-se-á indagar até que ponto e a quem a lei deu esses poderes decisores e dispositivos, se ao subalterno, ao chefe, se a ambos.
Se a não deu ao superior e a tiver dado ao inferior hierárquico, deve considerar-se que a conferiu exclusivamente ao segundo. Isso significa que o chefe não poderá decidir a questão, nem em primeiro, nem em segundo grau, isto é, nem primariamente, nem em sede de recurso hierárquico. Por outras palavras, nem sequer no âmbito de um recurso o chefe poderá reexaminar o assunto. (subl.nosso).
……

Bom, o que in casu sucede é justamente a ausência no referido decreto de uma norma que impõe a necessidade de impugnação graciosa ou que estabelece a impugnabilidade contenciosa do acto do subalterno.

Assim, dada a similitude existente entre o sistema legal português e o da RAEM e a evidente pertinência ao caso sub judice dessa doutrina preconizada pelo Nosso Ilustre Colega, não nos parece haver outra melhor solução que não seja a de reproduzir aqui o preconizado para concluirmos que tem natureza facultativa o recurso hierárquico do despacho do Senhor Comandante da PSP que negou o pedido da concessão da licença de uso e porte de arma de defesa, proferido ao abrigo da competência atribuída pelo artº 27º/2 do citado decreto, e que por força atributiva dessa norma, esse acto é imediatamente recorrível contenciosamente.

Ora, tendo em conta o teor do despacho do Senhor Secretário para a Segurança, ora recorrido, verificamos facilmente que se limita a confirmar o despacho do Senhor Comandante da PSP remetendo para os fundamentos ai adoptados.

Carecendo assim o despacho recorrido de lesividade própria e por isso é contenciosamente irrecorrível – artº 31º/1 do CPAC.

Procede assim a excepção da irrecorribilidade do acto, o que implica logo a rejeição do presente recurso e a consequente abstenção do conhecimento da questão de fundo por ter sido prejudicado.

Tudo visto, resta decidir.

Pelos fundamentos expostos e ao abrigo do disposto no artº 46º/2-c) do CPAC, acordam julgar procedente a excepção da irrecorribilidade do acto e rejeitar o recurso.

Custas pelo recorrente.

RAEM, 31OUT2013


_________________________ _________________________
Lai Kin Hong Mai Man Ieng
(Relator) (Estive presente)
(Magistrado do M.oP.o)

_________________________
João Augusto Gonçalves Gil de Oliveira
(Primeiro Juiz-Adjunto)
(voto favoravelmente o acórdão, mas junto a declaração em anexo)

_________________________
Ho Wai Neng
(Segundo Juiz-Adjunto)
(com declaração de voto vencido)










Declaração de voto
    
    
    Trata-se de uma matéria muito sensível e penso que devo averbar uma explicação para a inversão de posição que se vinha tomando neste Tribunal e a que eu aderira até ao acórdão tirado no processo n.º 32/2012, de 9 de Maio.
    Na verdade, a mudança de posição verifica-se naquele acórdão e, não obstante, não se fazer aí referência à mudança de posição, as razões então apresentadas não deixaram de me impressionar, motivo por que o subscrevi, e, tal como ali sou agora a seguir o mesmo entendimento, se bem que não considere o assunto completamente fechado.
    As razões-força que levam a esta tomada de posição encontram-se suficientemente explanadas no texto do acórdão, privilegiando-se uma desconcentração administrativa, mas sem quebra da autoridade da chefia que não deixa de poder intervir, seja por via do recurso facultativo, seja por via do poder de avocação, seja por via do poder de dar instruções, tudo conforme as diferentes situações, a oportunidade e a conveniência o exija, nas diferentes situações. O poder da Administração, com esta opção, não deixa até, a meu ver, de sair reforçado, aliviando-se o trabalho dos superiores máximos que me parece estarem talhados para outras tarefas mais gerais e abrangentes, não se devendo ocupar de cada um dos casos particulares que chegam à Administração.
    Estas podem não ser razões estritamente jurídicas, mas resultam, no fundo, da necessidade de integrar algo que no ordenamento de Macau não deixa de ser controvertido, não sendo difícil ao legislador intervir aí, devendo ser claro quanto à sua opção político-legislativa.
    
    R.A.E.M., aos 31 de Outubro de 2013.


O Juiz 1º Adjunto,

DECLARAÇÃO DE VOTO VENCIDO
(Proc. nº 853/2012)

Salvo o devido respeito, entendia que deveria julgar improcedente a excepção da irrecorribilidade do acto suscitada pela entidade recorrida, já que a competência do superior hierárquico compreende a do inferior, daí que a competência própria do órgão subalterno, em regra, se presume separada e não reservada ou exclusiva, salvo a disposição legal em sentido contrário, posição esta que é defendida na doutrina1 e jurisprudência dominante2.
Assim, na falta da menção expressa da lei, o acto do Sr. Comandante da PSP não é contenciosamente recorrível, estando sujeito à impugnação administrativa necessária.

RAEM, aos 31 de Outubro de 2013.


1 Marcelo Caetano, Tratado Elementar de Direito Administrativo, Coimbra, 1943, pág. 159 e 281, bem como Mario Esteves de Oliveira e outros, Código de Procedimento Administrativo, 2ª edição, pág.172.
2 Ac. do TSI, de 03/04/2003, Proc. nº 141/2000, e Ac. do STA, de 11/10/2007, Proc. nº 0229/07.
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Proc. 853/2012-11