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Processo nº 235/2012-I
(Autos de recurso penal)
Incidente






ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:





Relatório

I – Nos presentes autos proferiu-se o seguinte Acórdão:

“Relatório
1. A, arguida com os sinais nos autos, respondeu, em audiência colectiva no T.J.B., vindo a ser condenada como autora da prática de 1 crime de “falsificação de documento de especial valor”, p. e p. pelos art°s 244°, n.° 1, al. a) e art. 245° do C.P.M., na pena de 1 ano e 6 meses de prisão, suspensa na sua execução por 2 anos; (cfr., fls. 460 a 462-v que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).

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Inconformada com o decidido, a arguida recorreu.
Motivou para concluir nos termos seguintes:

“1° O presente recurso tem por objecto o Acórdão de 07.03.2012 que condenou a Recorrente como autora da prática do crime previsto na alínea c) do n° 1 do art° 244° e 245° do Código Penal, na forma consumada, por uso de documento falsificado com valor especial, na pena de prisão de um ano e seis meses, suspensa por dois anos.
2° O Acórdão Recorrido deu como provados os factos transcritos e identificados no ponto 10. da Fundamentação supra que aqui se dão por integralmente reproduzidos.
3° Neste processo são escassos ou caso inexistentes os meios de prova. O Tribunal Recorrido só podia fundar a sua decisão e convicção nos meios de prova descritos e identificados em 12 da Fundamentação e que aqui se dão por integralmente reproduzidos.
4° Conforme supra alegado nos pontos 13 a 16 da Fundamentação e que aqui se dão por integralmente reproduzidos, os meios de prova produzidos e existentes nos Autos, não são idóneos para dar como provado que:
A referida conduta da Arguida tinha intenção de afectar a fé pública desse tipo de documenta e a segurança e confiança transmitida em relações normais, prejudicando os interesses da RAEM e de terceiros.
A Arguida agiu voluntaria e conscientemente ao praticar com dolo a referida intenção
A arguida tinha consciência que a sua conduta era proibida e punida por lei.
5° Escapa ao normal entendimento em que meios de prova se baseou o Tribunal a quo para dar como provados os factos 10.4, 10.5 e 10.6. acima transcritos e identificados.
6° 0 Tribunal Recorrido errou na apreciação da prova pois não é possível" retirar-se da produção da prova que a Arguida tenha preenchido o tipo objectivo e subjectivo do crime de uso de documento falso. E ainda que se considerasse que a Arguida preenchera o tipo objectivo, sempre teria de se demonstrar e provar que a Arguida preenchera o tipo subjectivo, o que de todo não está nem pode ser demonstrado, face à manifesta insuficiência de provas.
7° A estrutura do dolo do tipo, isto é, do elemento subjectivo do tipo de crime, compõe-se de um elemento cognitivo e outro volitivo, como seja o conhecimento e vontade de realização do tipo objectivo de ilícito.
8° No caso do crime de uso de documento falso, o dolo do tipo implica que o agente tenha conhecimento de que está a utilizar um documento falso e implica que tenha a vontade de realizar o tipo objectivo, do crime, isto é, de utilizar o documento falso.
9° Não existe qualquer facto ou meio de prova directa de onde se possa retirar, inferir ou presumir que a Recorrente tinha conhecimento que o visto de residência da Venezuela inserto no seu passaporte era falso.
10° O crime de uso de documento falso para além do dolo do tipo, exige que o agente actue também e cumulativamente, com um outro dolo, o chamado dolo específico, que é a intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Território,
11° Não existe qualquer facto ou meio de prova directa de onde se possa retirar, inferir ou presumir que a Recorrente tinha a intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Território.
12° O Tribunal Recorrido fez uma errada apreciação da prova pois os factos provados 10.1, 10.2. e 10.3 e bem assim os meios de prova produzidos e existentes nos Autos não autorizam, de modo algum, que se dêem como provados os factos 10.4., 10.5 e 10.6, isto é, não autorizam que se dê como provado que a Recorrente preencheu o tipo subjectivo do crime de uso de documento falsificado.
13° O Direito Penal é um direito de factos. Desde logo porque só pode assentar em acções conscientes realizadas pelo agente. Por isso, e prima facie, os factos dados como provados devem sustentar-se em acções externamente observadas ou observáveis e testemunhadas através de meios de prova. As presunções têm de estar suportadas em factos, não podem ser retiradas de outras presunções ou de meras hipóteses.
14° Atentos os meios de prova produzidos e existentes no Autos, não há como provar que a Arguida preencheu o tipo subjectivo do crime de uso de documento falso em que foi condenada.
15° O Tribunal Recorrido ao decidir como decidiu, errou na apreciação da prova e consequentemente violou os princípios da legalidade e tipicidade ao aplicar erradamente o direito aos factos.
16° O Tribunal ad quem dispõe de todos os meios para proceder à renovação da prova e proceder à aplicação correcta do Direito revogando a Decisão Recorrida e substituindo-a por outra que absolva a Arguida do crime em que foi condenada”; (cfr., fls. 465 a 473).

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Em Resposta e posterior Parecer, é o Ministério Público de opinião que o recurso deve ser rejeitado dada a sua manifesta improcedência; (cfr., fls. 475 a 477-v e 485 a 485-v).

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Nada obstando, cumpre decidir.

Fundamentação

Dos factos

2. Estão provados e não provados os factos como tal elencados no Acórdão recorrido a fls. 460-v a 461, e que aqui se dão como integralmente reproduzidos.

Do direito

3. Tal como resulta do que até aqui se deixou relatado, insurge-se a arguida dos autos contra o Acórdão que a condenou como autora da prática de 1 crime de “falsificação de documento de especial valor”, p. e p. pelos art°s 244°, n.° 1, al. a) e art. 245° do C.P.M., na pena de 1 ano e 6 meses de prisão suspensa na sua execução por 2 anos, considerando, em síntese, que “o Tribunal Recorrido errou na apreciação da prova pois não é possível retirar-se da produção da prova que a Arguida tenha preenchido o tipo objectivo e subjectivo do crime de uso de documento falso. E ainda que se considerasse que a Arguida preenchera o tipo objectivo, sempre teria de se demonstrar e provar que a Arguida preenchera o tipo subjectivo, o que de todo não está nem pode ser demonstrado, face à manifesta insuficiência de provas”; (cfr., concl. 6°).

Pois bem, tendo presente o assim afirmado, e que, no fundo, consiste na imputação ao Tribunal a quo do vício de “erro notório na apreciação da prova”, há que dizer que não se mostra de reconhecer razão à arguida ora recorrente.

Vejamos.

Repetidamente tem este T.S.I. afirmado que:

“O erro notório na apreciação da prova existe quando se dão como provados factos incompatíveis entre si, isto é, que o que se teve como provado ou não provado está em desconformidade com o que realmente se provou, ou que se retirou de um facto tido como provado uma conclusão logicamente inaceitável. O erro existe também quando se violam as regras sobre o valor da prova vinculada, as regras de experiência ou as legis artis. Tem de ser um erro ostensivo, de tal modo evidente que não passa despercebido ao comum dos observadores.”

De facto, “É na audiência de julgamento que se produzem e avaliam todas as provas (cfr. artº 336º do C.P.P.M.), e é do seu conjunto, no uso dos seus poderes de livre apreciação da prova conjugados com as regras da experiência (cfr. artº 114º do mesmo código), que os julgadores adquirem a convicção sobre os factos objecto do processo.
Assim, sendo que o erro notório na apreciação da prova nada tem a ver com a eventual desconformidade entre a decisão de facto do Tribunal e aquela que entende adequada o Recorrente, irrelevante é, em sede de recurso, alegar-se como fundamento do dito vício, que devia o Tribunal ter dado relevância a determinado meio probatório para formar a sua convicção e assim dar como assente determinados factos, visto que, desta forma, mais não se faz do que pôr em causa a regra da livre convicção do Tribunal.”; (cfr., v.g., Ac. de 12.05.2011, Proc. n° 165/2011, e mais recentemente de 30.07.2013, Proc. n.° 485/2013 do ora relator).

Na verdade, e de forma mais sintética, “erro” é toda a ignorância ou falsa representação de uma realidade. Daí que já não seja “erro” aquele que possa traduzir-se numa “leitura possível, aceitável ou razoável, da prova produzida”.

Importa pois atentar no que segue:

É comummente aceite que o julgamento da causa é o que se realiza em Primeira Instância, e que o recurso visa apenas corrigir erros de procedimento ou de julgamento que nele possam ter resultado, incluindo erros de julgamento da matéria de facto.

Daí que em caso algum pode o recurso servir para obter um “novo julgamento”, (em segunda instância; cfr., v.g., G.M. da Silva, in “Forum Justitiae”, Maio de 1999).

Com efeito, o objecto do recurso é a “decisão recorrida” e não o “julgamento da causa”, propriamente dita.

E óbvias razões existem para que assim seja.

De facto, a produção da prova decorre perante o Tribunal de Primeira Instância e no respeito de dois princípios fundamentais e interconectados: o da oralidade e o da imediação. E com isso, visa-se assegurar o princípio basilar do julgamento da matéria de facto em processo penal: o da livre apreciação da prova por parte do julgador; (cfr., art. 114° do mesmo C.P.P.M.).
O princípio da imediação pressupõe um contacto directo e pessoal entre o Tribunal (julgador) e as pessoas que perante ele depõem, (e também com todas as outras provas produzidas), sendo esses os depoimentos (elementos probatórios) que irá valorar e que servirão para fundamentar a decisão da matéria de facto sendo precisamente essa relação de proximidade entre o Tribunal do julgamento em Primeira Instância e as provas que lhe confere os meios próprios e adequados para valorar a credibilidade dos depoentes e que (de todo em todo) o Tribunal do recurso não dispõe. Há na verdade que atender e valorar factores tão diversos como as razões de ciência que os depoentes invocam, a linguagem que utilizam, (verbal e / ou não verbal), a espontaneidade com que depõem, as hesitações que manifestam, o tom de voz com que o fazem, as emoções que deixam transparecer, quer de inquietude quer de serenidade, através de expressões faciais, o movimento (de mãos ou de pés), repetido e/ou descontrolado, o encolher de ombros, que umas vezes pode significar ignorância e outras reprovação, a forma e a intensidade do olhar, que muito pode revelar, (v.g., desejo de vingança, ódio, compaixão, dúvida ou certeza), as contradições que evidenciam e o contexto em que tal acontece, que as pode justificar ou tornar inaceitável.

Daí que quando a decisão do Tribunal se estriba na credibilidade de uma fonte probatória assente na imediação e na oralidade, o Tribunal de recurso só a pode censurar se ficar demonstrado que o iter da convicção por ele trilhado ofende as regras sobre o vaor da prova tarifada, as regras de experiência comum.

Vê-se bem assim que o duplo grau de jurisdição na apreciação da decisão da matéria de facto, não tem, (nem podia ter), a virtualidade de abalar o princípio da livre apreciação da prova que está conferido ao julgador de primeira instância, só podendo o Tribunal de recurso modificar aquela decisão quando não encontrar qualquer suporte nos meios de prova produzidos no processo, (ou como se disse, se se vier a verificar que a convicção formada pelo julgador contrarie as regras sobre o valor da priva tarifada, as regras da experiência comum, da lógica e dos conhecimentos científicos).

Na verdade, e como também já teve este T.S.I. oportunidade em afirmar o “o princípio da livre apreciação da prova, significa, basicamente, uma ausência de critérios legais que pré-determinam ou hierarquizam o valor dos diversos meios de apreciação da prova, pressupondo o apelo às “regras de experiência” que funcionam como argumentos que ajudam a explicar o caso particular com base no que é “normal” acontecer”; (cfr., v.g., o Ac. de 18.07.2013, Proc. n.° 288/2013).

Em suma, e também como já se deixou relatado, sempre que a convicção do Tribunal se mostre ser uma convicção razoavelmente possível e explicável pelas regras da experiência comum, deve a mesma ser acolhida e respeitada pelo Tribunal de recurso.

Aqui chegados, continuemos.

No caso dos autos, provado ficou o teor da acusação pública que, essencialmente, nos dá conta que a arguida:
- é residente da China continental;
- entrou em Macau munida do passaporte da R.P.C. n.° XXX em 15 de Janeiro de 2006;
- durante a sua estadia em Macau, e através de meio não apurado, a arguida produziu e inseriu no seu Passaporte um visto da Venezuela;
- em 26 de Janeiro de 2006, a arguida muniu-se do referido passaporte (com o visto para Venezuela) para ir a Hong Kong através do Terminal Marítimo do Porto Exterior;
- a arguida tinha intenção de afectar a fé pública desse tipo de documento e a segurança e confiança transmitida em relações normais, prejudicando os interesses da R.A.E.M. e de terceiros;
- agiu voluntária e conscientemente, e com conhecimento que a sua conduta era proibida e punida por lei.

Inconformada com o assim decidido e com a sua consequente condenação como autora de 1 crime de “falsificação de documentos de especial valor”, p. e p. pelos art°s 244°, n.° 1, al. a) e 245° do C.P.M., diz (agora) a arguida que “ainda que se considerasse que a Arguida preenchera o tipo objectivo, sempre teria de se demonstrar e provar que a Arguida preenchera o tipo subjectivo, o que de todo não está nem pode ser demonstrado, face à manifesta insuficiência de provas”.

Ora, em sede da sua fundamentação, consignou o Tribunal a quo na decisão ora recorrida que a sua convicção se formou com base nas declarações pela arguida prestadas no Ministério Público, (a fls. 129), no depoimento de um agente da P.S.P., e nos documentos existentes aos autos, indicando, em especial, os de fls. 6 e 104; (cfr., fls. 461).

E, perante isto, cremos que se impõe considerar o pela recorrente alegado “manifestamente improcedente”, sendo pois de se rejeitar o presente recurso; (cfr., art. 410°, n.° 1 do C.P.P.M.).

De facto, quanto à “falsidade do visto”, cremos que dúvidas não parece haver já que assim o demonstra o expediente (de fls. 6) do Consulado da Venezuela em Hong Kong.

E, o mesmo sucede quanto ao alegado “elemento subjectivo”.

Com efeito, e sem prejuízo do muito respeito devido a outro entendimento, não nos parece adequada (razoável e aceitável), a afirmação no sentido de que nos autos não existem elementos probatórios para a sua prova.

Importa atentar que o Tribunal a quo ponderou no teor das declarações pela arguida prestadas, e que, em audiência de julgamento, foi prestado um depoimento por um agente da P.S.P. – o qual pode ter esclarecido as circunstâncias da detenção da arguida, a sua “reacção” e “primeiras justificações” – e que, o normal, (ou natural), é uma pessoa, qualquer que ela seja, desde que minimamente saudável, conseguir explicar, de forma minimamente lógica e clara, a origem dos seus (próprios) documentos, como por exemplo, onde foram obtidos e qual o seu respectivo processo. Não sendo o caso dos autos, há que reconhecer que razoável é assim a convicção do Tribunal a quo de que “agiu com dolo”, “com conhecimento da falsidade do visto existente no seu Passaporte”, e “com conhecimento que a sua conduta era proibida e punida por lei”.

Afigurando-se-nos que mais não é preciso dizer, resta decidir.

Decisão

4. Nos termos e fundamentos expostos, em conferência, acordam rejeitar o recurso; (cfr., art. 409°, n.° 2, al. a) e 410, n.° 1 do C.P.P.M.).

Pagará a recorrente 5 UCs de taxa de justiça, e como sanção pela rejeição do seu recurso, o equivalente a 3 UCs; (cfr., art. 410°, n.° 4 do C.P.P.M.).

Honorários ao Exm° Defensor no montante de MOP$8.500,00 (…); (cfr., fls. 500 a 507).
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Oportunamente, juntou a arguida o seguinte pedido:

“A, arguida nos Autos à margem identificados, notificada na pessoa da sua Defensora Oficiosa do Acórdão deste Tribunal, vem expor e requerer a V. Exa. o seguinte:
1. No Relatório, p. 1, na Fundamentação, p. 6 e p. 14 e na Decisão, p. 16, foram detectados erros ou inexactidões quanto ao crime em que foi condenada a Arguida e bem assim quanto aos factos enunciados na acusação que foram considerados como provados.
2. Tais erros ou inexactidões são susceptíveis de causar algumas dúvidas quanto ao concreto objecto da Decisão tomada pelo Tribunal de Segunda Instância.
Em face do exposto, requer-se a V. Exa. a correcção das apontadas inexactidões e a confirmação do objecto do presente Acórdão”; (cfr., fls. 511).

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Nada obstando, passa-se a decidir.

II – Fundamentação

Diz a arguida que no acórdão deste T.S.I. que atrás se deixou transcrito “foram detectados erros ou inexactidões quanto ao crime em que foi condenada a Arguida e bem assim quanto aos factos enunciados na acusação que foram considerados como provados”, pedindo a sua correcção.

E tem razão.

Com efeito, a arguida dos autos foi condenada como autora da prática de 1 crime de “falsificação de documento de especial valor”, p. e p. pelo art. 245° e 244°, al. b), e não, “al. a)”, como por lapso, se fez constar no mencionado aresto deste T.S.I..

Por sua vez, constata-se também que, por lapso, aquando da transposição da “matéria de facto provada” na decisão recorrida para o referido aresto deste T.S.I., (e sua tradução), incluiu-se, efectivamente, matéria que assim não deve ser considerada.

Nesta conformidade, atento o estatuído no art. 361°, n.° 1, al. b), do C.P.P.M., e por se entender que a eliminação das assinaladas inexactidões não implicam modificação essencial do decidido, importa proceder à sua rectificação, passando-se a ler art. 244°, n.° 1, “al. b”, onde se consignou, art. 244°, n.° 1, “al. a)”, devendo-se, também, considerar como não escrito, o que agora consta no parágrafo que inicia com a expressão “durante a sua…”, (até “visto da Venezuela”), a fl.s 13 do acórdão em questão.

Decisão

III – Nos termos que se deixam expostos, acordam deferir o pedido deduzido, rectificando-se o aludido acórdão deste T.S.I. em conformidade.

Sem tributação.

Macau, aos 31 de Outubro de 2013
José Maria Dias Azedo
Lai Kin Hong
Choi Mou Pan
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Proc. 235/2012 Pág. 19