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Processo nº 53/2012
Data do Acórdão: 24OUT2013


Assuntos:

Junção de documento
Anulabilidade de negócio jurídico
Erro-vício
Essencialidade de erro
Cognoscibilidade de erro


SUMÁRIO

1. As partes podem juntar documentos às alegações de recurso no caso de a junção que se torna necessária em virtude do julgamento proferido na primeira instância – artº 616º/1, in fine, do CPC. Tal sucederá quando por força do princípio inquisitório, consagrado no artº 3º/3 do CPC, o juiz fica habilitado, quanto aos factos de que lhe é lícito conhecer, a realizar ou ordenar oficiosamente diligências probatórias com que as partes podiam, justificadamente, não contar, e a fundar a sua decisão nesses meios. É precisamente este o pressuposto da admissibilidade da junção de documentos a que se reporta a segunda parte do n.º 1 do art. 616º, ou seja, contraditar, mediante prova documental, meios probatórios introduzidos de surpresa no processo, que venham a pesar na decisão.

2. À luz do disposto no artº 240º do CC, para fazer desencadear o efeito anulatório do negócio com fundamento no erro do declarante, é preciso que seja demonstrada a verificação cumulativa dos requisitos da essencialidade do erro para o declarante e da cognoscibilidade do erro pelo declaratário. Assim, a ausência na matéria de facto provada dos factos demonstrativos da cognoscibilidade do erro pelo declaratário implica logo o inêxito da pretensão anulatória do negócio em causa.




O relator


Lai Kin Hong


Processo nº 53/2012


Acordam em conferência na Secção Cível e Administrativa no Tribunal de Segunda Instância da RAEM:

I

No âmbito dos autos da acção ordinária, registada sob o nº CV1-09-0051-CAO, do 1º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Base, foi proferida a seguinte sentença:

I) RELATÓRIO
  A e sua mulher B, devidamente identificados na petição inicial (doravante designados por Autores – A.) intentaram neste Tribunal Judicial de Base a presente acção ordinária contra C International Property Agency Co., D e sua mulher E, devidamente identificados nos autos, alegando, em síntese, que com a mediação da 1ª R., os AA. celebraram com os 2º e 3º RR. um contrato-promessa de compra e venda duma fracção autónoma, posteriormente, vieram os AA. a saber que na referida fracção tinha ocorrido um caso de suicídio, tendo os RR. conluiados no sentido de aproveitar-se da boa fé dos AA. e do facto de não conhecerem muito bem a Região, astuciosa e dolosamente ocultaram do seu conhecimento os tais factos.
  Concluindo, pedem, a final, que seja a presente acção julgada procedente, e declarado anulado o contrato-promessa celebrado entre os AA. e os 2º e 3º RR., e, em consequência, condenados os 2º e 3º RR. a restituir aos AA. a quantia de HKD$258.000,00, que receberam a título de sinal, bem como condenada a 1ª R. a restituir aos AA. a quantia de HKD$12.500,00, que receberam a título de comissão de mediação imobiliária, bem como juros, custas, honorários e demais encargos.
*
  Citados pessoalmente os RR., apenas contestaram os 2º e 3º RR., tendo impugnado os factos articulados pelos AA., pugnando pela improcedência da acção com a consequente absolvição dos RR. do pedido.
*
  Seleccionada a matéria de facto pertinente para a decisão da causa, realizou-se, oportunamente, a audiência de discussão e julgamento com observância das formalidades legais.
***
II) FUNDAMENTOS DE FACTO E DE DIREITO
  Face à prova produzida, resulta provada a seguinte matéria fáctica com interesse para a decisão da causa:
  Em 11 de Abril de 2009, os 2º e 3º RR. com a mediação da 1ª R. celebraram um acordo provisório a favor dos AA., para a compra e venda de uma fracção autónoma, destinado a habitação. (A)
  A fracção autónoma, ora objecto de acordo assinado pelas partes, com a designação “AH20”, sita na Avenida XX, n.º XX, 20º andar “AH”, Freguesia da Nossa Senhora do Carmo, Taipa, em Macau, e está inscrita no regime de propriedade horizontal sob o n.º XXXXX, FXX, livro XX, e na Matriz Predial Urbana, sob o n.º XXXXXX, descrita na Conservatória do Registo Predial, sob o n.º XXXXX, a fls. XX, do livro XX. (B)
  Os 2º e 3º RR. são comproprietários desta fracção autónoma em partes iguais, na proporção de 1/2 cada. (C)
  Foi de HKD$2.580.000,00 (dois milhões quinhentos e oitenta mil dólares de Hong Kong) o preço convencionado. (D)
  Tendo ainda sido fixado em 10% do preço do imóvel, ou seja, HKD$258.000,00 (duzentos e cinquenta e oito mil dólares de Hong Kong), o montante a entregar pelos AA., a título de sinal, até ou no momento da celebração do contrato-promessa. (E)
  Por estar em período de fim de semana, assim, tudo assente, a outorga do contrato-promessa ficou diferida para o próximo dia útil, juntamente com a entrega da quantia relativa à parte do sinal em falta. (F)
  E o agente imobiliário, 1º R., em nome dos AA., entregou aos 2º e 3ª RR. um cheque no valor de HKD$50.000,00. (G)
  Quantia essa que os AA. devolveram ao 1º R., em numerário, na semana imediata. (H)
  Em 14 de Abril de 2009, os AA. procederam ao reforço do sinal, mediante a entrega aos 2º e 3ª RR. de um cheque (avulso) no valor de HKD$208.000,00 (duzentos e oito mil dólares de Hong Kong). (I)
  Perfazendo o total de sinal de HKD$258.000,00 (duzentos e cinquenta e oito mil dólares de Hong Kong), sempre conforme o estipulado no referido contrato. (J)
  Em 15 de Abril de 2009, os 2º e 3ª RR. formalizaram com os AA. a vontade de contratar, celebrando um contrato-promessa de compra e venda do supra mencionado imóvel. (K)
  Ficando aí estipulado que o contrato prometido seria celebrado até ao dia 1 de Julho deste mesmo ano. (L)
  No dia 11 de Abril de 2009, coincidiu com um sábado feriado, razão pela qual porque os AA. não possuíam cheques e nem dispunham de quantia suficiente em numerário, nem forma de disponibilizá-la porque os bancos se encontravam encerrados, pelo que, a própria agente imobiliária a 1ª R., disponibilizou-se a endossar um cheque da sua conta pessoal, no valor de HKD$50.000,00, a favor dos 2º e 3º RR., mas por conta do sinal devido pelos AA. (1º)
  Só deste modo, explicaram os RR., podiam garantir com segurança o direito de “preferência” dos AA. na aquisição do imóvel até à celebração do contrato-promessa. (2º)
  Porque havia outros interessados em comprar a fracção, a 1ª R. temia que alguém se antecipasse na compra da mesma. (3º)
  Após a celebração deste contrato, os ora AA., a fim de indagar se impendia alguma dívida de condomínio sobre a mesma fracção autónoma, dirigiram-se ao porteiro do edifício “XX”. (4º)
  Ali alguém informou os AA. que na mesma fracção autónoma tinham ocorrido tristes e trágicos eventos. (5º)
  Nos inícios de 2004, um indivíduo juntamente com a sua filha se tinham suicidado, por inalação de dióxido de carbono, naquela habitação. (6º)
  Os AA., que são crentes da Religião Católica e foram educados segundo os padrões culturais e usos sociais da Tradição Chinesa, ficaram perplexos e muito chocados com esta notícia, pois ninguém jamais os informara desses acontecimentos. (8º)
  A religião católica proíbe em absoluto qualquer conduta que atente contra a vida, seja a alheia, seja a própria. (9º e 10º)
  Do ponto de vista antropológico-cultural, é crença enraizada e multimilenar na cultura chinesa, que o espaço/ambiente onde esses anti-naturais e sinistros eventos se concretizam, perde a sua harmonia, pois conserva as influências negativas (maléficas) que os determinaram, fica estigmatizado pela inquietude e aflição. (11º a 14º)
  Os AA. não desejavam viver numa casa onde se cometeu um crime (onde alguém matou a própria filha). (15º)
  Os AA. dirigiram-se ao escritório do agente imobiliário, a 1ª R., dando conta dos factos que acabavam de tomar conhecimento e declarando que queriam pôr termo ao contrato-promessa de compra e venda celebrado com os 2º e 3ª RR. (16º)
  Interpelados, estes dois últimos, e devidamente inteirados dos respectivos motivos, firmemente negaram ter conhecimento de semelhantes factos e recusaram-se a aceitar o pedido. (17º)
  Os AA. decidiram investigar melhor a situação, tendo por fim confirmado o sucedido nos arquivos do Jornal Diário de Macau, o “Ou Mun Iat Pou”, de 18 de Janeiro, do ano de 2004. (20º)
  Os AA. sentem que foram ludibriados, pois que nunca teriam acedido em celebrar a promessa de compra se tivessem tido conhecimento prévio dos factos que supra se relatam. (21º)
  O facto ocorrido em Janeiro de 2004 pode depreciar o valor de mercado do imóvel em apreço quando conhecido. (22º)
  É indesejável para os AA., atenta a sua ascendência cultural e educação religiosa e tendo em conta o conhecimento superveniente dos factos supra relatados, concluir o negócio prometido. (29º)
  A celebração do acordo provisório referido em A) corresponde à prática negocial comum. (30º)
  Com a assinatura desse acordo, também designado reserva da fracção negociada, é pago pelo promitente adquirente um pequeno montante para que seja suspensa de imediato actividade de negociação do imóvel por parte de outros agentes imobiliários. (31º)
  Montante que depois vem normalmente, como veio no caso em apreço, a integrar o sinal a prestar aquando da celebração do contrato-promessa. (32º)
*
  O Tribunal é o competente e o processo o próprio.
  As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas, e têm interesse processual.
  Não existe outras nulidades, excepções nem questões prévias que obstem ao conhecimento do mérito da causa.
*
  Em sede do enquadramento jurídico, cumpre analisar os factos e aplicar o direito.
  Pedem os AA. ao Tribunal que se declare anulado o contrato-promessa celebrado pelos AA. e 2º e 3º RR., e se condene os últimos a restituir aos primeiros a quantia de HKD$258.000,00, bem assim a comissão de mediação imobiliária paga à 1ª R., com fundamento em erro-vício.
  Salvo o devido respeito, e segundo a matéria dada como provada na audiência, não julgo estarem reunidos os respectivos requisitos legais.
  Senão vejamos.
  Ao abrigo do artigo 240º do Código Civil dispõe-se:
  “1. A declaração negocial é anulável por erro essencial do declarante, desde que o erro fosse cognoscível pelo declaratário ou tenha sido causado por informações prestadas por este. 2. O erro é essencial quando: a) Tenha recaído sobre os motivos determinantes da vontade do errante, de tal modo que este, caso tivesse tido conhecimento da verdade, não teria celebrado o negócio, ou, a celebrá-lo, só o teria feito em termos substancialmente distintos; e b) Uma pessoa razoável colocada na posição do errante, caso tivesse tido conhecimento da verdade, não teria celebrado o negócio ou, a celebrá-lo, só o teria feito em termos substancialmente distintos. 3. O erro considera-se cognoscível quando, face ao conteúdo e circunstâncias do negócio e à situação das partes, uma pessoa de normal diligência colocada na posição do declaratário se podia ter apercebido dele. 4. Contudo, o negócio não pode ser invalidado se o risco da verificação do erro foi aceite pelo declarante ou, em face das circunstâncias, o deveria ter sido, ou ainda quando o erro tenha sido devido a culpa grosseira do declarante.”.
  Por outras palavras, para que haja lugar a anulação duma declaração negocial ou negócio jurídico, é necessário a verificação cumulativa dos seguintes pressupostos:
  - ser o erro do declarante essencial; e
  - ser o erro cognoscível pelo declaratário ou ter sido causado por informações prestadas por este.
  No que respeita à essencialidade do erro, diz o Professor Carlos Alberto da Mota Pinto, na sua obra “Teoria Geral do Facto Jurídico”, 4ª edição, pág. 507, que “o erro é essencial se, sem ele, se não celebraria qualquer negócio ou se celebraria um negócio com outro objecto ou de outro tipo ou com outra pessoa...”
  Entretanto, no nosso Código, o legislador vai ainda mais longe no respeitante à questão da essencialmente do erro, ou seja, é necessário ainda que para qualquer pessoa, colocada na posição do errante, agisse da mesma maneira, isto é, caso tivesse tido conhecimento da verdade, também não teria celebrado o negócio ou, a celebrá-lo, só o teria feito em termos substancialmente distintos.
  Por outro lado, o negócio só é anulável desde que o erro fosse cognoscível pelo declaratário ou tenha sido causado por informações prestadas por este, isto é, a anulabilidade do acto depende de o destinatário da declaração conhecer ou dever conhecer a essencialidade do erro.
  Ora, no caso vertente, provado está que AA. e 2º e 3º RR. celebraram um contrato-promessa de compra e venda de imóvel.
  Pese embora se encontre provado que os AA. nunca teriam acedido em celebrar o contrato-promessa de compra se tivessem tido conhecimento prévio da ocorrência do suicídio na fracção em causa, mas não lograram os AA. provar os restantes requisitos do erro-vício, designadamente a essencialmente do erro para qualquer pessoa razoável, no sentido de que caso fosse colocada na posição dos AA., teria agido da mesma forma, assim como o conhecimento pelos 2º e 3º RR. da essencialidade do erro dos AA., tudo nos termos do citado artigo 240º do Código Civil de Macau.
  Concluindo, na medida em que não se encontrando provados todos os factos constitutivos daquele vício de vontade, nem do facto de os RR. terem agido em conluio, sem necessidade de delongas considerações, outra solução não resta senão julgar improcedente a acção, devendo os RR. serem absolvidos dos pedidos.
***
III) DECISÃO
  Tudo exposto e nos fundamentos acima descritos, julgo improcedente por não provada a presente acção ordinária intentada pelos AA. A e sua mulher B contra os RR. C International Property Agency Co., D e sua mulher E, absolvendo os RR. dos pedidos.
  Custas da acção pelos AA.
  Registe e notifique.

Não se conformando com o decidido, vieram os Autores recorrer da mesma concluindo e pedindo:

1) Em síntese, a douta decisão recorrida considerou que «não lograram os AA. provar os restantes requisitos do erro-vício, designadamente a essencialidade do erro para qualquer pessoa razoável, no sentido de que caso fosse colocada na posição dos AA., teria agido da mesma forma, assim como o conhecimento pelos 2.º e 3.º RR. da essencialidade do erro dos AA.» (vide pp. 10 e 11 da douta sentença).
2) Afigura-se aos Recorrentes que a importância do facto do suicídio de duas pessoas, progenitor e filha, num qualquer apartamento habitacional, tem enorme relevância seja para quem for, especialmente quando perante a intenção de no mesmo habitar. Mais, ainda, quando a situação pode configurar não só um suicídio como também um assassínio. Pois,
3) Em qualquer cultura, independentemente de quaisquer ambientes religiosos e crenças, e mesmo para os não crentes, agnósticos e ateus, a morte é tema mais ou menos maldito, anátema, tabu, que evoca tétricos sentimentos e emoções, por definição negativos e, portanto, desagradáveis, incómodos, desconfortáveis, pois confrontam todo e cada um, de modo incontornável e invencível, com a precariedade e transitoriedade da vida e da existência, associadas à angústia e à incerteza do que possa ou não suceder-lhe e ao absoluto desconhecido que tal representa.
4) Pode, pois, com total propriedade e razoabilidade afirmar-se que qualquer pessoa (cidadão médio ou bonus pater familias), de qualquer credo, ou sem credo, de qualquer cultura e origem étnica e geográfica, e mesmo de qualquer época, sente repulsa (ainda que, por vezes, reverencial) por qualquer local onde tenham ocorrido mortes, especialmente se foram provocadas por suicídio, crime ou violência.
5) Portanto, o facto da essencialidade do erro para os Recorrentes − como para qualquer cidadão médio colocado nas mesmas circunstâncias, − é público e notório, não necessitando, sequer, de alegação e prova, ao abrigo do disposto no art.º 434.° do Código de Processo Civil.
6) E porque assim é, é também conclusão necessária que a cognoscibilidade da essencialidade do erro (conforme colocado pela decisão a quo) é, igualmente, pública e notória, − não curando de alegação e prova, − na medida em que toda a gente sabe que para toda a gente é determinante o facto de alguém ter assassinado e ou ter-se suicidado numa determinada habitação, − o que determinaria, para o cidadão médio, ou o desinteresse no negócio (especialmente se fosse para habitação própria, por recusa de aí morar) ou a sua celebração em termos substancialmente distintos.
7) Vejamos, em abono, que tal circunstancialismo bem poderia fundar o direito à resolução do negócio por alteração das circunstâncias (artºs. 431.º e ss. do Código Civil). Basta atentar na hipótese em que o assassínio e ou suicídio(s) ocorressem no imóvel em questão após a celebração do contrato-promessa de compra e venda e antes da celebração do contrato prometido.
8) São as mesmas as razões de fundo que nesta situação ou na dos autos justifica a protecção da posição do promitente-comprador! É, na perspectiva dos Recorrentes, o único entendimento defensável em vista de uma (boa e sã) interpretação sistemática do ordenamento vigente.
9) Termos em que se afigura existir insanável contradição entre os fundamentos e a decisão promanada pelo tribunal a quo, vício que é gerador de nulidade da mesma, por força dos disposto no art.º 571.°, n.º 1, al. c) do Código de Processo Civil, decorrente que foi de uma errada interpretação e aplicação in casu do disposto no art.º 240.° do Código Civil.
Pelo exposto, e nos mais de direito que V. Exªs. doutamente suprirão, deve proceder o presente recurso e, consequentemente, ser revogada a decisão recorrida e substituída por outra que julgue e condene nos precisos termos peticionados na petição inicial,
Assim fazendo V. Exªs. a costumada
JUSTIÇA!

Ao recurso responderam os Réus pugnando pela improcedência do recurso – cf. fls. 283 a 286.

II

Foram colhidos os vistos, cumpre conhecer.

Conforme resulta do disposto nos artºs 563º/2, 567º e 589º/3 do CPC, são as conclusões do recurso que delimitam o seu objecto, salvas as questões cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras e as que sejam de conhecimento oficioso.

Em face das conclusões na petição de recurso, a única questão que constitui o objecto do recurso é a invocada nulidade por contradição insanável entre os fundamentos e a decisão.

Apreciemos.

Ora, tendo os recorrentes juntado dois documentos com a motivação do recurso, afigura-se-nos ser de tecer algumas considerações sobre a admissão ou não nesta fase processual desses documentos.

Reza o artº 616º/1 do CPC que “as partes podem juntar documentos às alegações nos casos a que se refere o artigo 451.º ou no caso de a junção apenas se tornar necessária em virtude do julgamento proferido na primeira instância”.

Alegaram os recorrentes que “assim, pelas leis do mercado livre, a diminuição da procura leva ao abaixamento do preço – veja-se, ainda a título de exemplo, os artigos retirados da world wide web, que se juntam como docs. nºs 1 e 2.”.

Todavia, com o assim alegado, nós ficamos sem saber se foi ao abrigo da primeira parte ou da segunda parte do citado artº 616º/1 que os recorrentes juntaram os documentos, isto é, se se trata da junção nos termos permitidos no artº 451º ou da junção que se torna necessária em virtude do julgamento proferido na primeira instância.

De qualquer maneira, é de indeferir a pretendida junção conforme iremos demonstrar infra.

Ora, a apresentação da prova por documentos rege-se pelas regras gerais consagradas no artº 450º do CPC, que reza:
(Momento da apresentação)
1. Os documentos destinados a fazer prova dos fundamentos da acção ou da defesa devem ser apresentados com o articulado em que se aleguem os factos correspondentes.
2. Se não forem apresentados com o articulado respectivo, os documentos podem ser apresentados até ao encerramento da discussão em primeira instância, mas a parte é condenada em multa, excepto se provar que os não pôde oferecer com o articulado.
Em situações excepcionais, as partes são autorizadas a juntar documentos após os articulados ou mesmo após o encerramento da discussão em primeira instância.

São as situações previstas no artº 451º do CPC que preceitua:
(Apresentação em momento posterior)
1. Depois do encerramento da discussão só são admitidos, no caso de recurso, os documentos cuja apresentação não tenha sido possível até àquele momento.
2. Os documentos destinados a provar factos posteriores aos articulados, ou cuja apresentação se tenha tornado necessária por virtude de ocorrência posterior, podem ser oferecidos em qualquer estado do processo.
Paralelamente às situações excepcionais previstas no artº 451º, a lei autoriza especificamente que se juntem às alegações de recurso, os documentos cuja apresentação não tenha sido possível até ao encerramento da discussão, os documentos destinados a provar factos posteriores aos articulados ou os documentos cuja apresentação se tenha tornado necessária em virtude do julgamento proferido na primeira instância – artº 616º do CPC.

In casu, tendo em conta o alegado pelos recorrentes na minuta do recurso e o teor dos documentos que se juntaram com a mesma minuta, os documentos foram apresentados com o objectivo de provar os factos demonstrativos da alegada diminuição da procura do imóvel objecto do contrato-promessa cuja anulação pretendiam, isto é, factos que deveriam ter sido já na petição inicial da acção.

Tratam-se portanto de documentos destinados a fazer prova dos fundamentos da acção e defesa.

Para que seja lícita a junção tardia deste tipo de documentos, quer na primeira instância quer no recurso, a parte tem de convencer o tribunal de superveniência do documento respectivo, ou porque o documento se formou depois do encerramento da discussão, ou porque só depois deste momento ela teve conhecimento da existência do documento, ou porque não pôde obtê-lo até àquela altura – cf. Alberto dos Reis, in Código de Processo Civil Anotado, IV, pág. 15.

O que in casu obviamente não foi feito.

Resta saber se se trata da junção que se torna necessária em virtude do julgamento proferido na primeira instância – artº 616º/1, in fine, do CPC.

Ao interpretar o artº 706º/1 do CPC Português, que corresponde o artº 616º/1 do nosso CPC, com vista a averiguar em que circunstância pode a sentença da primeira instância determinar a necessidade da junção de um documento ao processo, João Espírito Santo citou o Acórdão do STJ de 24ABR1936 defendendo que “tal, sucederá quando nela se rejeita o critério seguido pelas partes e se adoptam factos novos. A ideia da introdução pelo julgador, quando profere a decisão, de factos não alegados pelas partes é dificilmente conciliável com a trave-mestra do processo civil: o princípio dispositivo. Essa conciliação parece só poder fazer-se a partir do princípio inquisitório em matéria instrutória, que, apesar de ter perdido a formulação genérica antes contida no n.º 3 do art.º 264.º, continua a habilitar o juiz, quanto aos factos de que lhe é lícito conhecer, a realizar ou ordenar oficiosamente diligências probatórias. Com efeito, esse poder de que goza o julgador, habilita-o a introduzir no processo meios probatórios com que as partes podiam, justificadamente, não contar, e a fundar a sua decisão nesses meios, sem que tal signifique o conhecimento de factos de que lhe não é lícito conhecer. É precisamente este o pressuposto da admissibilidade da junção de documentos a que se reporta a segunda parte do n.º 1 do art. 706.º, ou seja, contraditar, mediante prova documental, meios probatórios introduzidos de surpresa no processo, que venham a pesar na decisão” – in O Documento Superveniente para Efeito de Recurso Ordinário e Extraordinário, Almedina.

Compulsados os autos, não verificamos, quer ao longo de toda a tramitação no TJB, quer na fundamentação da sentença recorrida, que o Exmº Juiz chegou a introduzir no processo meios probatórios com que a recorrente podia não contar e a fundar a sentença recorrida nesses meios.

Assim, não se verificando qualquer das situações previstas no artº 616º/1 do CPC que permitem excepcionalmente a junção dos documentos às alegações do recurso, é de indeferir a pretendida junção dos documentos, ora constantes das fls. 266 a 270 dos p. autos, e consequentemente ordenar o seu desentranhamento.

Decidido o incidente da junção dos documentos, passemos então à apreciação do objecto do recurso.

Bom, a apreciação e a decisão do presente recurso, cujo objecto já delimitado pelas conclusões do recurso, reproduzidas supra, passam pela análise e resolução da única questão de saber se é anulável o contrato-promessa por erro-vício, com fundamento na ignorância da ocorrência de um caso de suicídio de uma pessoa após o homicídio da sua filha no imóvel objecto do contrato-promessa.

Como se vê na matéria de facto provada, ora integralmente transcrita supra, foi após a celebração do contrato-promessa levado ao conhecimento dos promitentes compradores, ora Autores/recorrentes, de que ocorreu o tal caso de suicídio de uma pessoa após o homicídio da sua filha no interior do imóvel.

Para o Tribunal a quo, “pese embora se encontre provado que os AA. nunca teriam acedido em celebrar o contrato-promessa de compra se tivessem tido conhecimento prévio da ocorrência do suicídio na fracção em causa, mas não lograram os AA. provar os restantes requisitos do erro-vício, designadamente a essencialmente do erro para qualquer pessoa razoável, no sentido de que caso fosse colocada na posição dos AA., teria agido da mesma forma, assim como o conhecimento pelos 2º e 3º RR. da essencialidade do erro dos AA., tudo nos termos do citado artigo 240º do Código Civil de Macau”.

E concluiu, “na medida em que não se encontrando provados todos os factos constitutivos daquele vício de vontade, nem do facto de os RR. terem agido em conluio, sem necessidade de delongas considerações, outra solução não resta senão julgar improcedente a acção, devendo os RR. serem absolvidos dos pedidos”.

Para os recorrentes, ao decidir como decidiu, o Tribunal a quo fez a sua sentença padecer da nulidade por contradição insanável entre os fundamentos e a decisão.

Então vejamos se exista a tal contradição insanável.

A propósito dessa matéria, o Código Civil estabelece no seu artº 240º que:

1. A declaração negocial é anulável por erro essencial do declarante, desde que o erro fosse cognoscível pelo declaratário ou tenha sido causado por informações prestadas por este.
2. O erro é essencial quando:
a) Tenha recaído sobre os motivos determinantes da vontade do errante, de tal modo que este, caso tivesse tido conhecimento da verdade, não teria celebrado o negócio ou, a celebrá-lo, só o teria feito em termos substancialmente distintos; e
b) Uma pessoa razoável colocada na posição do errante, caso tivesse tido conhecimento da verdade, não teria celebrado o negócio ou, a celebrá-lo, só o teria feito em termos substancialmente distintos.
3. O erro considera-se cognoscível quando, face ao conteúdo e circunstâncias do negócio e à situação das partes, uma pessoa de normal diligência colocada na posição do declaratário se podia ter apercebido dele.
4. Contudo, o negócio não pode ser invalidado se o risco da verificação do erro foi aceite pelo declarante ou, em face das circunstâncias, o deveria ter sido, ou ainda quando o erro tenha sido devido a culpa grosseira do declarante.

Está em causa um contrato-promessa de compra e venda de um imóvel, que se trata inquestionável de um negócio jurídico.

A propósito do negócio jurídico, diz Mota Pinto que “os negócios jurídicos são actos jurídicos constituídos por uma ou mais declarações de vontade, dirigidas à realização de certos efeitos práticos, com intenção de os alcançar sob tutela do direito, determinando o ordenamento jurídico a produção dos efeitos jurídicos conformes à intenção manifestada pelo declarante ou declarantes”.

Ora, para que o negócio jurídico possa desempenhar devidamente as suas funções, ou seja, a realização de tais efeitos práticos e jurídicos pretendidos pelos contraentes, é preciso que eles, contraentes, formem a sua vontade de uma maneira livre e esclarecida.

Evidentemente, in casu está fora da questão a liberdade e é o discernimento que está em causa.

À luz do disposto no acima citado e transcrito artº 240º do CC, para fazer desencadear o efeito anulatório do negócio, é preciso que o erro atinja os motivos determinantes da vontade, isto é, a chamada essencialidade do erro.

Ora, globalmente interpretada a matéria de facto quer sob o prisma da cultura chinesa quer sob o da cultura ocidental, não temos dúvida de que os promitentes compradores, ora Autores/recorrentes, não teriam celebrado o contrato-promessa de compra e venda do imóvel, se tivesse tido conhecimento de que ocorreram um homicídio e um suicídio no interiormente do imóvel.

Pois tirando os raríssimos casos por razões muitíssimo estranhas, entendemos que ninguém gostar de morar numa moradia onde ocorreu a morte violenta de uma pessoa, seguida do suicídio do próprio autor do homicídio, mesmo para aqueles que não têm qualquer crença religiosa.

No entanto, ao decidir pela inverificação da essencialidade do erro, o Tribunal a quo não está a decidir em oposição com os factos provados, mas sim está a proceder incorrectamente a qualificação jurídica dos factos provados, o que constitui erro de julgamento e nunca um vício gerador da nulidade de sentença.

Todavia, conforme iremos demonstrar infra, nem por isso a sorte da presente acção pode deixar de ser a improcedência.

Para além do requisito da essencialidade do erro, a lei exige que o erro seja cognoscível pelo declaratário.

Compreende-se essa exigência legal, pois é a necessidade de assegurar a segurança e estabilidade do tráfico jurídico que impõe, para além da exigência da essencialidade do erro, que concorra também um outro requisito, que é justamente a cognoscibilidade do erro por parte do declaratário.

De outro modo, o mecanismo da anulação deixaria, pouco protegido, senão desamparado, o declaratário que agiu sempre de boa-fé e a lei ficaria demasiado inclinado para a protecção do declarante cuja vontade fica viciada.

Já em relação à cognoscibilidade do erro por parte dos declaratários, entendemos que não foi efectivamente demonstrado nos autos que os declaratários, ora Réus/recorridos, no momento da celebração do negócio, conheciam ou não deviam ignorar a essencialidade, para o declarante, do aspecto sobre que incidiu o erro.

Ora, para que se conclua pela cognoscibilidade do erro pelos promitentes vendedores, é preciso que seja demonstrado, pelo menos, que eles sabiam, no momento da feitura do negócio, a ocorrência da tal tragédia no interior do imóvel.

De acordo com a regra geral sobre o ónus de prova, prevista no artº 335º do CC, a parte que errou e pretende fazer desencadear o efeito anulatório tem o ónus de demonstrar que a outra parte, a declaratária, sabia ou não devia desconhecer que se não tivesse ocorrido o erro, a parte que errou não teria celebrado o negócio.

É verdade que ficou provado que o facto trágico ocorreu em JAN2004 e que o contrato-promessa que os Autores pretendem ver anulado foi celebrado em ABR2009, o certo é que não ficou demonstrado que os Réus, ora recorridos, tinham conhecimento do caso de suicídio e homicídio no momento de celebração do contrato-promessa.

Assim, não podemos concluir pela verificação do requisito da cognoscibilidade do erro pelos Réus/Recorridos.

Dada a exigência para a relevância anulatória da verificação cumulativa dos requisitos da essencialidade e da cognoscibilidade do erro, a ausência na matéria de facto provada dos factos demonstrativos da cognoscibilidade implica logo o inêxito da pretensão anulatória do contrato-promessa em causa.

Portanto, o erro de julgamento na parte que diz respeito ao requisito de essencialidade do erro, de per si não tem a virtualidade de tornar procedente o pedido da anulação do contrato-promessa com fundamento no erro-vício, justamente por inverificação do requisito de cognoscibilidade do erro pelos promitentes vendedores, ora recorridos.

Tudo visto, resta decidir.
III

Nos termos e fundamentos acima expostos, acordam:

* não admitir os documentos juntos com a petição do recurso e determinar o seu desentranhamento;

* negar provimento ao recurso, mantendo a decisão recorrida com fundamentos supra expostos e julgando improcedente a acção da anulação absolvendo os Réus do pedido.

Custas do incidente e do recurso pelos recorrentes.

Registe e notifique.

RAEM, 24OUT2013

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Lai Kin Hong
(Relator)

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João Augusto Gonçalves Gil de Oliveira
(Primeiro Juiz-Adjunto)

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Ho Wai Neng
(Segundo Juiz-Adjunto)