打印全文
Processo nº 88/2009
(Autos de recurso contencioso)

Data: 21/Novembro/2013

Assunto: Desocupação de terreno sem titularidade registada



SUMÁRIO
   - Demonstrada não está qualquer aquisição válida do terreno pelo administrado, nem qualquer pressuposto que legitime a sua posse, por força do disposto no artigo 7º da Lei Básica da RAEM, o acto que ordenou a desocupação de terreno não está viciado.
       
       
O Relator,

________________
Tong Hio Fong

Processo nº 88/2009
(Autos de recurso contencioso)

Data: 21/Novembro/2013

Recorrentes:
- A e B

Entidade recorrida:
- Chefe do Executivo da RAEM

Acordam os Juízes do Tribunal de Segunda Instância da RAEM:

I) RELATÓRIO
A e B, titulares do BIRM da RAEM, melhor identificados nos autos, vêm interpor recurso contencioso de anulação do despacho do Senhor Chefe do Executivo de 5 de Dezembro de 2008, notificado aos ora recorrentes em 15 de Janeiro de 2009, em que se notificavam os recorrentes de que deveriam proceder, no prazo de 20 dias a contar da data de notificação, à desocupação das parcelas do terreno assinalado com as letras “A2” e “B1a” na planta cadastral nº 1060/1989 e à remoção dos materiais e equipamentos nele depositados, bem como à entrega desses terrenos ao Governo da RAEM sem direito a qualquer indemnização, em cujas alegações formulou as seguintes conclusões:
- A informação n.º 5308/DURDEP/2008, de 10 de Novembro, ignora no seu conteúdo factos relevantes para a tomada de decisão final de S. EXa o Senhor Chefe do Executivo;
- Essa mesma informação afirma não haver título que justifique a ocupação do terreno em causa, quando na verdade há uma licença que titula a ocupação do terreno, ao longo de várias décadas;
- O erro na apreciação dos factos tem como consequência a prática de um vício por parte da Administração, devendo assim o acto ser anulado por esse tribunal superior, como desde já se requer;
- Deve o processo ser de novo apreciado pela Direcção dos Serviços de Solos, Obras Públicas e Transportes, para que em sede de processo de expropriação do terreno, se assim continuar a entender a Administração, poder ser calculada a correcta indemnização a pagar à família do ora recorrente A, conforme desde já se requer;
- Deve o Venerando Tribunal Superior apreciar os factos articulados na presente petição, quanto à matéria da posse e do domínio útil do terreno, por parte do ora recorrente A e seus antepassados, para que esta seja declarada a favor dos mesmos, com base na prova produzida oportunamente.
*
Regularmente citada, pela entidade recorrida foi apresentada a contestação constante de fls. 32 a 36 cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais, pugnando pelo não provimento do recurso, e manutenção do acto recorrido.
*
Findo o prazo para alegações, o Ministério Público deu o seguinte parecer:
“Vêm A e B impugnar o despacho do Chefe do Executivo de 5/12/08 que lhes ordenou procederem, no prazo de 20 dias a contar da notificação, à desocupação de 2 parcelas de terreno, assinaladas com as letras “A2” e “B1a” da planta cadastral n.º 1060/1989 emitida pela DSCC em 14/4/08, removendo os materiais e equipamentos neles depositados e a entrega das mesmas ao governo da RAEM sem direito a qualquer indemnização, assacando-lhe, ao que apreendemos, vício de erro nos pressupostos de facto, por a “Informação” n.º 5308/DURDEP/2008 de 10/11/08 da DSSSOPT, na qual se fundou o despacho em crise, conter “erros de apreciação”, designadamente no seu ponto 3 ao assumir ter-se verificado não ter sido emitida para as referidas parcelas de terreno qualquer licença de ocupação temporária, nos termos dos art.ºs 69º a 75º da Lei de Terras que “autorize a posse das mesmas para depósito de materiais e equipamentos de construção civil ou qualquer outra finalidade”, omitindo que a posse pacífica e o domínio útil de tais parcelas, desde há muito na esfera dos seus antepassados, foi e é titulada por uma licença emitida pela então “Administração do Concelho das Ilhas”, conforme documento que junta a fls. 16 e 17 dos autos.
A avaliar pelo teor da notificação, que corresponderá, no essencial, ao conteúdo da “Informação” em que se estribou o acto em apreço, o mesmo parte do pressuposto que:
- sobre as parcelas de terreno em causa não se encontra registado direito de propriedade ou qualquer outro direito real de gozo, nomeadamente de concessão por arrendamento ou por aforamento;
- não foi emitida para essas parcelas qualquer licença de ocupação temporária, nos termos dos art.ºs 69º a 75º da Lei de Terras;
- tendo sido os recorrentes notificados editalmente, para os efeitos do art.º 93º do CPA, enquanto ocupantes dessas parcelas, não carrearam os mesmos para o procedimento argumentos que pudessem conduzir à alteração do sentido da decisão;
- não dispõem os recorrentes de título formal de aquisição de qualquer direito de propriedade perfeita ou outra, que confira poderes de gozo e de disposição, nem mesmo de título jurídico precário – licença de ocupação temporária – que legitime a posse dessas parcelas;
- a escritura de papel de seda ou “Sá Chi Kei” que alegaram possuir, não constitui, nos termos da lei, título formal de aquisição da propriedade em causa.
Ora, da análise perfunctória sobre tais pressupostos, não conseguimos descortinar que qualquer deles não corresponda, efectivamente, à realidade.
É certo terem os recorrentes feito questão de juntar comprovativos, quer de autorização do então “Concelho das Ilhas” para procederem a reparações de uma barraca de madeira sito naquele local, quer da conta de electricidade da mesma, quer da demarcação dessas parcelas por parte da Direcção dos Serviços de Cartografia e Cadastro, quer ainda da escritura, em papel de seda, referente à propriedade.
Só que, quanto à demarcação, a mesma dependeu apenas de indicação do próprio advogado dos recorrentes, quanto à escritura “Sá Chi Kei”, a respectiva falta de valor encontra-se (e bem) demonstrada pela externação do acto e, relativamente às contas de electricidade e autorizações de obras na barraca de madeira, embora possam tais dados constituir circunstâncias indiciárias do domínio útil dos terrenos e, quiçá, da posse das mesmas, o certo é que não são tais documentos passíveis de infirmar as ilações e conclusões vertidas nos despacho em crise, no sentido do não registo do direito de propriedade, da concessão por arrendamento ou aforamento, ou mesmo de licença de ocupação temporária, que legitime a posse das referidas parcelas de terreno.
Donde, não se descortinar a eventual existência de qualquer erro nos pressupostos subjacentes à decisão.
Poderá, concerteza, colocar-se a problemática referente a legítimas expectativas dos recorrentes, decorrentes do domínio que, aparentemente, terão exercido sobre os terrenos em questão com conivência da Administração, expectativas que, eventualmente, poderiam ou poderão fundar qualquer tipo de indemnização decorrente da execução do acto questionado e a que, aparentemente, os recorrentes aspiram, a avaliar pelo conteúdo da alínea j) das conclusões das respectivas conclusões: trata-se, contudo, de matéria arredada do escrutínio do presente meio processual, onde haverá, e só, que apurar da validade do acto. E, essa, parece-nos inquestionável.
Razões por que, não ocorrendo o vício assacado, ou qualquer outro de que cumpra conhecer, somos a pugnar pelo não provimento do presente recurso.”
*
O Tribunal é o competente e o processo o próprio.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas, e têm interesse processual.
Não existe outras nulidades, excepções nem questões prévias que obstem ao conhecimento do mérito da causa.
Cumpre decidir.
***
II) FUNDAMENTOS DE FACTO E DE DIREITO
Resulta provada dos elementos constantes dos autos, designadamente do processo administrativo, a seguinte matéria de facto com pertinência para a decisão da causa:
De acordo com a certidão emitida pela Conservatória do Registo Predial em 18 de Agosto de 2008, sobre as parcelas do terreno assinalado com as letras “XX” e “XX” na planta cadastral nº 1060/1989, de 14/4/2008, não se encontra registado a favor de pessoa singular ou colectiva o direito de propriedade ou qualquer outro direito real de gozo, nomeadamente de concessão por arrendamento ou por aforamento.
Nem foi emitida qualquer licença de ocupação temporária para as referidas parcelas do terreno.
As parcelas do terreno em causa estão a ser utilizadas pelos recorrentes para depósito de materiais e equipamentos de construção civil, nelas existindo construções não autorizadas.
Por despacho de 5 de Dezembro de 2008, o Senhor Chefe do Executivo da RAEM concordou com a proposta elaborada pela Direcção dos Serviços de Solos, Obras Públicas e Transportes, tendo ordenado aos recorrentes para no prazo de 20 dias proceder à desocupação das supra identificadas parcelas do terreno indevidamente ocupadas pelos recorrentes, bem como remover os materiais e equipamentos nelas depositados e entregá-las ao Governo da RAEM.
Através do ofício 00376/DURDEP/2009, de 15 de Janeiro de 2009, foram os recorrentes notificados do referido despacho do Senhor Chefe do Executivo.
Foi emitida em 5 de Agosto de 1976 a favor de C, moradora numa barraca de madeira, pela então Secção da Polícia Municipal, a autorização nº 2/76 para efeitos de reparação e ampliação do curral para suínos (doc. de fls. 16).
Foi emitida em 23 de Junho de 1977 a favor de C, moradora numa barraca de madeira sita em Sám Ká Chun - Taipa, pela então Secção da Polícia Municipal, a autorização nº 18/77 para efeitos de reparação da sua barraca de madeira para habitação (doc. de fls. 17).
O recorrente A é utente da Companhia de Electricidade de Macau (doc. de fls. 18).
O recorrente A está munido de cópia de um “Sá Chi Kai” (doc. de fls. 19).
*
    A questão que aqui se coloca é saber se a decisão que ordenou a desocupação de parcelas do terreno identificado nos autos e remoção dos materiais e equipamentos pelos recorrentes era ilegal, ou por outras palavras, se os recorrentes possuem algum título legítimo que lhes permitam ocupar o terreno em causa, seja em termos de posse ou outro direito real.
    Alegam os recorrentes que a posse e o domínio útil do terreno têm sido exercidos pelos familiares há mais de 80 anos, nomeadamente tendo sido emitida pela então Administração do Concelho das Ilhas uma licença a favor da avó do recorrente A, daí que a decisão final do Senhor Chefe do Executivo está viciada de erro nos pressupostos de facto.
    Salvo melhor opinião, não entendemos que a decisão recorrida padece do alegado vício.
    Sobre a matéria em discussão, a jurisprudência de Macau tem sempre entendido, chamando à colação o disposto no artigo 7º da Lei Básica da RAEM, que não era passível de reconhecimento do direito de propriedade de imóvel não reconhecido como propriedade privada antes do estabelecimento da RAEM, mesmo que a acção tivesse sido intentada antes deste estabelecimento, desde que não houvesse sentença transitada em julgado antes desta data, a reconhecer tal direito.1
    Na verdade, a partir da transferência da soberania em 20 de Dezembro de 1999 e da imediata entrada em vigor da Lei Básica da RAEM, todos os terrenos passam a ser propriedade do Estado com excepção daqueles que já se integraram e se integram na propriedade privada pertencentes aos particulares, que continuam a ser objecto de protecção.
    E, não tendo aqueles terrenos entrado definitivamente no domínio da propriedade privada, não são os mesmos passíveis de aquisição por usucapião ao abrigo do disposto no artigo 7º da Lei Básica.
    No caso vertente, embora tenham os recorrentes apresentado cópia de um Sá Chi Kai, mas tal documento não constitui um título formal de aquisição da propriedade do terreno em causa.
O mesmo acontece com os documentos relativos à conta de electricidade ou às autorizações para proceder a reparações de uma barraca de madeira sita naquele local, também não constituem fundamentos suficientes nem válidos para ocupação ou utilização do terreno em causa.
    Quanto à demarcação do terreno, segundo consta da planta emitida pela Direcção dos Serviços de Cartografia e Cadastro, por os seus limites resultarem da indicação do próprio advogado, os factos nela atestados, sobretudo no respeitante aos limites do terreno demarcado, não podem ser provados plenamente por força do artigo 365º a contrario do Código de Processo Civil de Macau.
    De facto, não se descortina que os documentos juntos aos autos pelos recorrentes sejam suficientes para demonstrar que foi concedido algum direito real ou qualquer outro direito real de gozo, nomeadamente de concessão por arrendamento ou por aforamento, ou licença de ocupação temporária, a favor dos eventuais antecessores dos recorrentes, apenas ficou provado que as parcelas do terreno em causa e eventualmente uma barraca que lá existia foram ocupadas há algum tempo pelos recorrentes e eventualmente por alguns seus antecessores, desconhecendo-se, no entanto, em que termos e a que título consistia essa ocupação.
    Uma vez não logrando os recorrentes provar qualquer aquisição válida das parcelas do terreno em causa, nem qualquer pressuposto que legitime a sua posse, assim, inverificado o vício indicado, outra solução não resta senão negar provimento ao recurso contencioso interposto pelos recorrentes.
***
III) DECISÃO
Face ao exposto, acordam em negar provimento ao recurso contencioso, mantendo o acto recorrido.
Custas pelos recorrentes, com 5 U.C. de taxa de justiça.
***
Macau, 21 de Novembro de 2013

Tong Hio Fong (Relator)

Lai Kin Hong (Primeiro Juiz-Adjunto)

João Gil de Oliveira (Segundo Juiz-Adjunto)(Voto a decisão, ressalvando a possibilidade da comprovação, que não foi feita no presente caso, de comprovação do terreno como propriedade privada ou domínio privado, antes do estabelecimento da RAEM, como expressamente afirma o artigo 7º da Lei Básica.)

Presente Vitor Coelho
1 A título exemplificativo, cita-se os Acórdãos do TUI, Proc.12/2012, 34/2008, 32/2005, 41/2007
---------------

------------------------------------------------------------

---------------

------------------------------------------------------------




Proc. 88/2009 Página 11