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Proc. nº 340/2013
Relator: Cândido de Pinho
Data do acórdão: 05 de Dezembro de 2013
Descritores:
-Autorização de residência
-Reabilitação judicial

SUMÁRIO

I - Os fins da reabilitação, na medida em que servem propósitos particulares, devem ceder perante os fins públicos servidos pela norma ao conferir o poder discricionário ao seu titular, relevando nos casos em que esteja em causa o exercício do direito de punir em processo criminal, pois aí só pode ser considerado pelo tribunal, no momento da decisão, o que consta do certificado (de onde foi cancelada anterior condenação por efeito da reabilitação). Mas já não valerá para efeitos administrativos no âmbito de actividade discricionária em que esteja em causa a apreciação das qualidades do indivíduo.

II - A total desrazoabilidade no exercício dos poderes discricionários que serve de fundamento ao recurso contencioso (art. 21º, al. d), do CPAC) é aquela que tem o sentido de uma absurda e desmesurada aplicação do poder discricionário administrativo perante um determinado caso real e concreto. Decisão desrazoável é aquela cujos efeitos se não acomodam ao dever de proteger o interesse público em causa, aquela que vai para além do que é sensato e lógico tendo em atenção o fim a prosseguir. Um acto desrazoável é um acto absurdo, por vezes até irracional.

III- Um acto desproporcional é desregrado, desmedido, é desequilibrado entre o interesse público subjacente e o interesse privado nele envolvido; é um acto que apresenta uma dispositividade com uma dimensão maior do que era expectável ou aconselhável que tivesse.

IV- Um acto injusto é aquele que o administrado não merece, ou porque vai além do que o aconselha a natureza do caso e impõe sacrifícios infundados atendendo à matéria envolvida, ou porque não considera aspectos pessoais do destinatário que deveriam ter levado a outras ponderação e prudência administrativas. É injusto porque, podendo o seu objecto realizar-se com uma carga menor para o administrado, a este se lhe impõe, apesar disso, um gravame penoso demais.









Proc. nº 340/2013

Acordam no Tribunal de Segunda Instância da R.A.E.M.

I - Relatório
B, titular do passaporte da RPC nº G50XXXXXX, residente na Rua do ......, nº ..., Centro Comercial ......, …, …-…, em Macau, recorre contenciosamente do despacho do Ex.mo Secretário para a Economia e Finanças de 16/04/2013, que lhe não renovou o título de residência temporária.
*
Na petição inicial, formulou as seguintes conclusões:
«A) - Os recorrentes têm legitimidade, estão representados e em prazo;
B) - O ato constituído pelo Despacho do Secretário para a Economia e Finanças violou os princípios da proporcionalidade, da justiça e da imparcialidade impostos pelos arts. 5º e 7º do CPA em vigor;
C) - O referido ato é ilegal por vício de violação de lei e, por conseguinte, deve ser anulado, como previsto no arte 116º do CPA.
PEDIDO: Termos em que, e contando com o indispensável suprimento de Vossas Excelências, deve ser dado provimento ao recurso e anulado o Despacho recorrido, devendo o processo ser reanalisado pelo organismo responsável para o efeito, o IPIM.
Assim, farão Vossas Excelências a habitual e sã JUSTIÇA».
*
Contestou a entidade recorrida, pugnando pela improcedência do recurso em termos que aqui damos por reproduzidos.
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Tendo o processo prosseguido os seus trâmites normais, na oportunidade o recorrente apresentou alegações facultativas, nas quais formulou as seguintes conclusões adicionais:
«8º.
Em 3 do passado mês de Abril do corrente ano de 2013 transitou em julgada a sentença de 8/3/2013, constante do Processo Judicial CR1-060147-PCC-A, ficando decidida a reabilitação do Requerente - doc.2 anexo ao Recurso Contencioso.
9º.
Nesse mesmo processo foram, como se refere na respectiva sentença, tidos em consideração nomeadamente o Parecer do Ministério Público e a necessidade do requerente de fixar residência em Macau.
10º.
Diz a sentença que... para facilitar ao requerente a fixação de residência... este Tribunal considera que se pode autorizar... o pedido de reabilitação do requerente (tradução do original em língua chinesa).
11º.
Diz ainda a mesma sentença que o requerente tem atualmente uma vida normal e um trabalho estável, uma atitude positiva para o futuro, sendo o seu comportamento e a sua vida estáveis e que está completamente reinserido na sociedade, cumprindo as leis e vivendo com uma atitude positiva (tradução do original em língua chinesa).
12º.
Assim, na data do Despacho recorrido, já existia a sentença que teve em consideração as condições concretas de fixação de residência do interessado em causa - questionadas no referido processo - e a sua capacidade de cumprir as leis de Macau.
13º.
O Tribunal da RAEM decidiu a reabilitação do requerente, após analisar a personalidade do mesmo, as respectivas condições de vida, a respectiva inserção na realidade social da RAEM e a previsão possível do cumprimento, por parte do requerente, das leis da RAEM, ou seja, o Tribunal analisou e avaliou a capacidade do Requerente cumprir as razões de ordem pública e segurança previstas nas leis de Macau e decidiu afirmativamente.
14º.
O trânsito em julgado de uma decisão judicial de mérito considera-se, como ensina a doutrina, uma espécie de “lei entre as partes”, ou seja, as partes devem acatar o resultado da mesma e, consequentemente, respeitar as conclusões da Entidade Judicial.
15º.
Dessa aceitação e cumprimento não resulta qualquer prejuízo relativamente ao respeito pelo princípio da separação de poderes judicial e executivo.
16º.
A ausência de ponderação, por parte da Entidade Recorrida, da decisão do Venerando Tribunal de Macau e dos respectivos argumentos que sustentaram a referida decisão judicial de mérito, consubstancia, na opinião do Recorrente e com o devido respeito, uma “total desrazoabilidade no exercício de poderes discricionários” previstos na alínea d) do nº 1 do Artº 21 º do CPAC.
17º.
No período de tempo decorrido após a referida decisão judicial, nada de relevante para este caso há a censurar ao Recorrente.
18º.
Assim, reafirmamos as conclusões apresentadas no Recurso Contencioso, nomeadamente que acto constituído pelo Despacho do Secretário para a Economia e Finanças recorrido violou os princípios da proporcionalidade, da justiça e da imparcialidade impostos pelos arts. 5º e 7º do CPA em vigor.
19º.
Em conformidade, o referido ato de não autorização de residência em Macau por mais um período, é ilegal por vício de violação de lei e, por conseguinte, deve ser anulado, como previsto no art. 124º do CPA.
PEDIDO
Reafirmamos o Pedido já apresentado e, contando com o indispensável suprimento de Vossas Excelências, deve ser dado provimento ao Recurso e anulado o Acto recorrido, devendo o processo ser reanalisado pelo organismo responsável para o efeito».
*
A entidade recorrida também alegou, reiterando a improcedência do recurso.
*
O digno Magistrado do Ministério Público opinou igualmente no sentido do inêxito do recurso contencioso.
*
Cumpre decidir.
***
II - Pressupostos processuais
O tribunal é absolutamente competente.
O processo é o próprio e não há nulidades.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias e são legítimas.
Não há outras excepções ou questões prévias que obstem ao conhecimento de mérito.
***
III - Os factos
Dá-se por assente a seguinte factualidade:
1- C foi autorizada a fixar residência em Macau, pela primeira vez, em 17 de Agosto de 2009;
2- Com ela foi autorizada a residência do marido, B, ora recorrente, e o filho, D.
3- Para a renovação do pedido, a referida C apresentou documentos relativos a um imóvel, devidamente identificado, comprovando manter o investimento imobiliário que este na base da concessão inicial de autorização de residência.
4- O Instituto de Promoção do Comércio e do Investimento de Macau emitiu, em 25/03/2013, o parecer nº 0729/Fixação de Residência/2008/01R, com o seguinte teor:
«INSTITUTO DE PROMOÇÃO DO COMÉRCIO E DO INVESTIMENTO DE MACAU
Pedido de fixação de residência por investimento em bens imóveis - Renovação
Aplicável: Regulamento Administrativo n.º 3/2005
Assunto: Apreciação do pedido de fixação de residência temporária
À Comissão Executiva
1. Dados de identificação dos interessados e o respectivo prazo da autorização para fixação de residência temporária:
Ordem
Nome
Relação
Documento/ número
Prazo de validade do documento
Prazo de validade da autorização de fixação residência temporária até
Prazo de validade proposto para a autorização de residência temporária até
1
C (C)
Requerente
Passaporte chinês G028XXXXXX
18/05/2018
17/08/2012
17/08/2015
2
B (B)
Cônjuge
Passaporte chinês G050XXXXXX
13/10/2021
17/08/2012

3
D (D)
Descendente
Passaporte chinês G023XXXXXX
17/07/2017
17/08/2012
17/08/2015
2. A requerente, pela primeira vez, em 17 de Agosto de 2009, foi autorizada a fixar residência temporária em Macau.
3. Para o fim de renovação, a requerente apresentou os documentos de imóveis seguintes, no sentido de provar que ela detém ainda o investimento imobiliário conforme exigido na lei.
(1) N.º da descrição na Conservatória do Registo Predial: XXXXX
Av. ......, n.º ...-..., Edf. ......, ...º andar, ..., Macau Valor: MOP$1.134.650,00
Data de registo: 19 de Setembro de 2007 (62)
4. Nos termos do art.º 3.º, n.º 1, al. 2) do Regulamento Administrativo n.º 3/2005, a requerente apresentou um certificado de depósito a prazo emitido por instituição de crédito de Macau, de forma a comprovar que ela tem fundos de valor não inferior a MOP$500.000,00 depositados em Macau.
Certificado de depósito a prazo da requerente:
Instituição de crédito emissora: Banco XXX XXX, S.A.R.L.
N.º: 11031-015270-6
Saldo: HKD$523.542,27, equivalente a MOP$539.248,54
Natureza: Livre de quaisquer encargos
Prazo do depósito: Desde 13 de Março de 2008 até 15 de Março de 2013 (Renovação automática do capital acrescido dos respectivos juros no vencimento do depósito)
Data de emissão: 20 de Abril de 2012
5. Aquando do pedido de renovação, a requerente apresentou o “Certificado de Registo Criminal” do seu cônjuge B (B) (vide fls. 15 a 23), o qual demonstrou que este tinha vários cadastros criminais, nomeadamente:
(1) em 9 de Fevereiro de 1993, foi condenado, pela prática de um crime de extorsão com plano concertado e um crime de violação de domicílio, na pena de 7 meses de prisão e na multa de 1 mês, à taxa diária de MOP$12,00, convertível na pena de prisão de 20 dias (vide fls. 16).
(2) em 17 de Janeiro de 1995, foi condenado, pela prática de um crime de imigração ilegal, na multa de 60 dias, à taxa diária de MOP$10,00, convertível na pena de prisão de 40 dias (vide fls. 17).
(3) em 19 de Janeiro de 1998, foi condenado, pela prática de um crime de imigração ilegal e um crime de falsas declarações sobre a identidade, na pena de 15 meses de prisão (vide fls. 18).
(4) em 15 de Julho de 1999, foi condenado, pela prática de um crime de falsas declarações sobre a identidade, na pena de 1 ano e 5 meses de prisão (vide fls. 19).
(5) em 3 de Abril de 2008, foi condenado, pela prática de um crime de presença em local de jogo ilícito, na multa de 45 dias, à taxa diária de MOP$80,00, perfazendo a multa global de MOP$3.600,00, convertível na pena de prisão de 30 dias (vide fls. 22).
6. O cônjuge da requerente apresentou declarações e documentos comprovativos em 29 de Maio, 31 de Maio e 17 de Agosto de 2012, no sentido de dar explicações sobre o seu cadastro criminal, dizendo que ele cometeu os vários erros porque queriam ganhar dinheiro para cuidar da sua família, e que estando profundamente arrependido, desejava que pudesse continuar a residir legalmente no Território, tendo, assim, já mandatado advogado para requerer ao tribunal a reabilitação judicial e a não transições das decisões (vide fls. 52 a 71).
7. A fim de acompanhar o caso em apreço, no dia 11 de Dezembro de 2012, este Instituto, por meio do ofício n.º 17209/GJFR/2012, notificou o cônjuge da requerente para apresentar parecer escrito relativo aos supracitados registos criminais no prazo de 10 dias (vide fls. 51).
8. No dia 26 de Dezembro de 2012, a requerente apresentou declaração e os respectivos documentos (vide fls. 42 a 50), esclarecendo que, em Maio de 2012, o seu cônjuge, por ter cadastro criminal, já mandatou advogado para requerer ao tribunal a reabilitação judicial e a não transições das decisões, estando, nesse momento, a aguardar a aprovação do tribunal.
9. À luz do art.º 9.º, n.º 2, al. 1) da Lei n.º 4/2003 da RAEM, para efeitos de concessão da autorização de residência, deve atender-se, nomeadamente, aos seguintes aspectos: “Antecedentes criminais, comprovado incumprimento das leis da RAEM ou qualquer das circunstâncias referidas no artigo 4.º da presente lei.”
10. Do Certificado de Registo Criminal do cônjuge da requerente, B (B), resulta revelado que tendo vários antecedentes criminais, o mesmo, em vez de ser primário, violou a lei repetidamente. Apesar de ter requerido ao tribunal a reabilitação judicial e a não transições das decisões, estando, então, a aguardar a aprovação do tribunal, não equivale isso a dizer que nunca existiram as infracções penais por si praticadas no passado. Importa ainda apontar que os crimes cometidos pelo cônjuge da requerente, nomeadamente um crime de extorsão com plano concertado e um crime de violação de domicílio, a imigração ilegal e falsas declarações sobre a identidade, são de bastante gravidade, tendo o mesmo sido condenado, por isso, nas respectivas penas de prisão, daí que seja realmente difícil dar-se proposta favorável ao seu pedido de renovação.
11. Face ao exposto, verifica-se que os pedidos de renovação da requerente C (C) e do seu descendente D (D) ainda satisfazem o disposto no Regulamento Administrativo n.º3/2005, propondo-se, portanto, que sejam lhes concedidas autorizações de residência temporária renovadas ambas até 17 de Agosto de 2015.
12. Entretanto, apesar de o cônjuge da requerente, B (B), ter requerido ao tribunal a reabilitação judicial e a não transições das decisões, não equivale isso a dizer que nunca existiram as infracções penais por si praticadas no passado. Além disso, dada a bastante gravidade das referidas infracções penais, ele foi condenado nas respectivas penas de prisão. Sendo assim, conforme o art.º 9.º, n.º 2, al. 1) da Lei n.º 4/2003, aplicável ex vi do art.º 23.º do Regulamento Administrativo n.º 3/2005, é de indeferir o pedido de renovação da autorização de residência temporária do cônjuge da requerente B (B).
Submeto isto à consideração de V. Ex.ª».
5- No dia 16 de Abril de 2013 o Ex.mo Secretário para a Economia e Finanças concedeu a renovação de autorização de residência aos membros do agregado, menos ao ora requerente (fls. 2 do apenso “traduções”).
6- Dessa decisão foi feita a notificação por intermédio de C (fls. 4 do apenso “traduções”).
7- Correu termos no TJB um processo a que coube o nº CR1-06-0147-PCC-A, do 1º juízo, no qual foi proferida sentença datada de 8/03/2013, concedendo ao requerente a reabilitação judicial e ordenando o cancelamento de todas as decisões que constem do Certificado de Registo Criminal (doc. fls. 2 junto com a petição inicial; fls. 16 a 18 dos autos e 13 a 16 do apenso “traduções”).
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IV - O Direito
1 - Questão prévia
Apesar de o recorrente ter vindo nas suas alegações facultativas aditar aquilo a que chamou “conclusões adicionais”, possibilidade que, em abstracto, em princípio não lhe está vedada, face ao disposto no art. 68º, nº3, do CPAC, a verdade é que nada do que ali aportou assenta na verificação dos requisitos consignados na referida disposição legal. Com efeito, novos fundamentos só são permitidos, desde que advenham ao conhecimento do recorrente supervenientemente, por exemplo, após o contacto com o procedimento administrativo junto ao processo com a contestação. Acontece que aquilo que o recorrente refere nas referidas “conclusões adicionais” não tem qualquer suporte em novos elementos tardiamente chegados à esfera de conhecimento do alegante. São a mera repetição dos argumentos trazidos aos autos na causa de pedir na p.i.
Com uma excepção, porventura: aquela que se refere à “desrazoabilidade no exercício de poderes discricionários” invocada no art. 16º das alegações. Contudo, podendo esta alegação não ser mais do que o desenvolvimento da p.i. na parte referente à vaga imputação de “desequilíbrio” feita nesse articulado (cfr. 27º e 30º), por razões de bom senso e pro-actione, não deixaremos de lhe dedicar a merecida atenção.
*
2 - Do recurso contencioso
Por o acto administrativo aqui sindicado não ter renovado a autorização de residência ao recorrente, com o fundamento de ter cometido ilícitos no passado, vem ele pedir socorro ao tribunal no sentido de que tal decisão seja anulada.
Em 1º lugar, considera que o acto está deficientemente fundamentado, por não ter ponderado a circunstância de existir, à data da sua prolação, uma sentença judicial que lhe havia concedido a reabilitação judicial.
Considera ainda que o acto viola os princípios da igualdade e proporcionalidade, justiça e imparcialidade.
Vejamos.
*
2.1. - No concernente à fundamentação, cremos que a preocupação do recorrente radica no facto de alegadamente o acto não ter sopesado ou ponderado, como se quiser, a decisão judicial que concedeu a reabilitação judicial.
Não tem razão. Como bem se pode ler no parecer que antecedeu o despacho sindicado, a reabilitação foi alvo de atenção. Disse o parecer: “…a reabilitação judicial e a não transições das decisões, estando, então, a aguardar a aprovação do tribunal, não equivale isso a dizer que nunca existiram as infracções penais por si praticadas no passado. Importa ainda apontar que os crimes cometidos pelo cônjuge da requerente, nomeadamente um crime de extorsão com plano concertado e um crime de violação de domicílio, a imigração ilegal e falsas declarações sobre a identidade, são de bastante gravidade, tendo o mesmo sido condenado, por isso, nas respectivas penas de prisão, daí que seja realmente difícil dar-se proposta favorável ao seu pedido de renovação.
11. (…). 12. Entretanto, apesar de o cônjuge da requerente, B (B), ter requerido ao tribunal a reabilitação judicial e a não transições das decisões, não equivale isso a dizer que nunca existiram as infracções penais por si praticadas no passado. Além disso, dada a bastante gravidade das referidas infracções penais, ele foi condenado nas respectivas penas de prisão. Sendo assim, conforme o art.º 9.º, n.º 2, al. 1) da Lei n.º 4/2003, aplicável ex vi do art.º 23.º do Regulamento Administrativo n.º 3/2005, é de indeferir o pedido de renovação da autorização de residência temporária do cônjuge da requerente B (B)”.
Isto significa que essa matéria foi tida em consideração, vale dizer, foi ponderada no acto, embora não merecesse a relevância que o recorrente queria que tivesse. Isso, porém, é outra coisa; é, a consideração ou desconsideração do peso da reabilitação no enquadramento jurídico da renovação da autorização de residência na RAEM, circunstância que se desvia do vício da mera forma, para o tema do mérito, fundo ou substância da decisão administrativa.
De qualquer maneira sempre se anota que “A ponderação a fazer em sede de concessão da autorização ou renovação da residência não passa pela consideração autónoma dos efeitos da condenação penal e pela extinção desses mesmos efeitos, mas sim por uma outra avaliação que a Administração faz em termos comportamentais do interessado, face ao seu interesse em residir em Macau e projecção das suas atitudes, comportamentos e vivências em termos de conformação com o ordenamento jurídico” (Ac. TSI, de 28/06/2012, Proc. nº 843/2011).
Por conseguinte, com base no argumentário utilizado, não é certo que o acto padeça de falta de fundamentação, tal como o dever é plasmado nos arts. 114º e 115º do CPA.
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2.2. - Quanto ao valor da reabilitação judicial, lamentavelmente, discordamos da posição ao recorrente. A verdade é que a posição constante dos tribunais de Macau, particularmente nas instâncias superiores, já está firmada no sentido de que “Quando o legislador permite que os poderes discricionários sejam usados ao abrigo e para os fins do art. 9º da Lei nº 4/2003, de 17/03, está a dar total amplitude ao depositário desses poderes em prol do bem comum, sem constrangimentos relacionados com os fins da reabilitação” (Ac. TSI, de 3/05/2012, Proc. nº 394/2011).
Aliás, por uma razão de economia, deixemos verter aqui o que sobre o assunto o citado aresto (Proc. nº 394/2011) exarou:
«E em que medida, perguntamos nós agora, a reabilitação judicial pode interferir com os requisitos de autorização de residência previstos no art. 9º da Lei nº 4/2003?
Como é sabido, a reabilitação judicial1 - diferente da “reabilitação de direito”, em que os seus efeitos operam automaticamente uma vez decorridos os prazos estabelecidos na lei - pressupõe uma análise judicial dos pressupostos contidos no art. 25º, nº1 do citado DL nº 27/96/M, “ex vi” art. 53º, nº2 do DL nº 86/99/M.
Assim sendo, ela só poderá ser decretada se o tribunal, após a análise do pedido e dos elementos instrutórios que compõem o processo, tanto oferecidos pelo interessado, como aqueles que oficiosamente o juiz deve ou pode obter, face ao art. 53º do citado DL. nº 86/99/M, concluir que está perante um cidadão que mostrou estar “readaptado à vida social” (art. 25º, nº1 cit.).
E com esta definição poderia estar exposto o mote para a solução do problema. Na verdade, dir-se-ia que, se aquilo que conta é o presente da pessoa ou a sua condição actual de readaptado à vida social, não haveria aí qualquer diferença com o que se passa na situação do criminoso que, não obstante a sua condição de “boa pessoa” no passado, não deixa de ser condenado se o seu presente estiver manchado por uma actuação ilícita. Uma vez que, num caso ou noutro, determinante é a actualidade, não se deveria mirar a reabilitação com os olhos voltados para trás, para o passado de eventual “pessoa má” do reabilitado.
E isso deverá mesmo ser encarado tal qual o acabámos de defender nalguns casos, mas noutros o assunto não pode ser entendido dessa maneira. Ou seja, essa afirmação de princípio deve ceder em função das diversas situações, como veremos.
Antes de mais nada, nós entendemos que esta readaptação não pode valer apenas para os cidadãos que sejam residentes da RAEM, mas também para quaisquer outros que careçam da reabilitação para os mais variados fins, inclusive para, através dela, poderem vir a almejar a obtenção do título de residência que ainda não tenham. Se a reabilitação se destinasse a apenas cidadãos residentes legais em Macau, não faria sentido, por exemplo, que o TJB concedesse, como concedeu, a reabilitação judicial a esta cidadã chinesa. Aliás, nem o DL nº 27/96/M, nem o DL nº 86/99/M estabelecem a esse propósito qualquer discriminação positiva ou negativa. Haveria grave atropelo à lógica, se as leis de Macau permitissem que entidades oficiais (judiciais) concedessem a um cidadão do exterior de Macau o benefício do instituto que aqui apreciamos e logo a seguir viessem consentir que outras oficiais entidades (administrativas) proibissem que dele se pudessem extrair quaisquer efeitos com tal fundamento.
(…) A questão é, repete-se, saber se poderiam ser esgrimidos argumentos relacionados com a condenação sofrida pela cidadã chinesa em causa e a tanto se confina o nosso esforço de apreciação.
Com efeito, o acto - baseado no parecer que o antecedeu - entendeu que a senhora Wu não podia obter a autorização de residência peticionada, por ter cometido há sete anos atrás um crime pelo qual fora condenada e, por tal razão, a sua conduta constituir incumprimento das leis da RAEM. Ou seja, indeferiu o pedido à sombra do art. 9º, nº2, al. a), da Lei nº 4/2003.
(…) Isto é, vistas as coisas sob a égide da reabilitação, enquanto instituto regenerador, a solução pareceria não dever apresentar qualquer obstáculo a uma extracção plena da sua eficácia, sem limites ou constrangimentos, porque dirigida à pessoa em si mesma (àquela pessoa, toda ela, e não uma parte dela), considerada no seu todo e para todo e qualquer efeito.
Mas, se sairmos da penumbra do caso, e o deixarmos ver à luz que baixa sobre outros institutos em redor, igualmente disciplinadores da vida em sociedade, como o da autorização de residência, por exemplo, talvez se dissipem as silhuetas dos contornos e concluamos que o problema tem uma solução global, consoante os interesses envolvidos.
Assim, em 1º lugar, é preciso ter presente que não há, entre nós, aqui na RAEM, um instituto de reabilitação devidamente regulamentado, como acima se disse, em que sejam bem definidos os pressupostos de atribuição e estabelecidos os efeitos dela decorrentes2. Seria útil, por exemplo, saber em que tipo de casos a reabilitação, dependendo dos interesses em causa, poderia excepcionalmente não ser de conceder ou quais aqueles em que ela poderia não ser operativa. Deste modo, não obstante a reabilitação importar o cancelamento do registo, de acordo com as disposições conhecidas e acima já mencionadas (v.g., art. 25º), a verdade é que nenhuma norma encontramos que proíba que, para certos efeitos, nomeadamente os do interesse público especial que prossiga, alguma entidade não possa obter a montante a informação que foi cancelada.
E o caso em apreço parece servir de lauto exemplo. Estando a Administração na posse desse elemento – o de que a cidadã cometeu crime em Macau (…) de uso de documento falso precisamente, ao que é suposto, para servir de fundamento a residência local anos antes – e não havendo norma que proíba o uso desse dado para tal efeito, ilógico e incompreensível seria que não o utilizasse para a realização do interesse público subjacente. Cabendo-lhe a prossecução do interesse público da segurança e, por conseguinte, do dever de fazer observar as regras da convivência societária no respeito pelas leis em vigor em Macau, proceder em contrário, fechando os olhos ao passado, poderia ser alvo de crítica social por parte daqueles que as respeitam e que aqui já são residentes. Poderia até abrir as portas à desenfreada entrada de “ilegais”, que, mesmo que descobertos e punidos, acabariam por atingir mais tarde e por esta via da reabilitação o objectivo inicial. Ora, se o impedimento de assim agir por parte da Administração viesse da lei, isso seria o mesmo que dar-lhe inutilmente uma arma, que ao mesmo tempo lhe impedia de usar!
Em 2º lugar, não esqueçamos que estamos perante uma actividade discricionária da Administração, esta que ela desenvolve em ordem à autorização de residência de que trata o art. 9º citado. Isto quer dizer que, mais do que critérios de legalidade estrita, o que a move são noções de mérito, densificados através de padrões de justiça, oportunidade e conveniência.
Ora, a afirmação de tais padrões pode ser traduzida por razões concretas ligadas aos requisitos vertidos na norma cega. Isto é, quando o legislador permite que os poderes discricionários sejam usados ao abrigo e para os fins do art. 9º citado, está a dar total amplitude ao depositário desses poderes em prol do bem comum, sem constrangimentos relacionados com os fins da reabilitação. Dito por outras palavras, os fins da reabilitação – repetimos, sem melhor regulamentação e definição dos seus limites negativos – na medida em que servem propósitos particulares, devem merecer cedência perante os fins públicos servidos pela norma ao conferir o poder discricionário ao seu titular. Norma que não tem em nenhuma especial conta os beneficiários da reabilitação e que, pelo contrário, a todos os cidadãos atinge por igual.
A reabilitação não pode mostrar-se operante para todos os efeitos, valendo, sim, para aqueles que implicam o exercício do direito de punir no âmbito de um processo criminal, pois aí só pode ser considerado pelo tribunal no momento da decisão o que consta do certificado (de onde foi cancelada anterior condenação por efeito da reabilitação). Mas já não valerá para efeitos administrativos no âmbito de actividade discricionária em que esteja em causa a apreciação das qualidades do indivíduo.
Por tal motivo, jurisprudência deste TSI já produzida sobre o assunto, ainda que fundada numa situação ligeiramente diferente3, asseverou que “…o facto de as infracções em apreço terem sido praticadas há já bastante tempo, não implica, como é óbvio, que aquelas não possam e devam ser consideradas como antecedentes criminais” para efeitos do normativo em análise”4.
Razão, ainda, para o TUI5, ter dito em seu aresto seu que “…os requisitos para a concessão de autorização de residência previstos no regime de entrada, permanência e autorização de residência, a Lei n.º 4/2003, têm o seu fundamento diferente que o regime de registo criminal. Naquele relevam mais os interesses de ordem pública e segurança da comunidade da RAEM, neste preocupa com a ressocialização de delinquentes condenados criminalmente na Região através da reabilitação. São diferentes os interesses que se visam proteger. Por isso, não é possível aplicar pura e simplesmente as disposições de um regime para o outro”6.
Serve a transcrição para ilustrar, exemplificativamente, que a reabilitação judicial não impede a Administração de levar em linha de conta a realidade dos factos no exercício da sua actividade discricionária. Isto é, a reabilitação não cria uma cortina impermeável no que respeita à ponderação dos factos ilícitos cometidos pelo reabilitado no passado. O interesse público que a Administração prossegue neste tipo de decisões importa outro tipo de considerações (de natureza social, por exemplo, associadas à segurança e tranquilidade públicas) para além das humanas, por mais respeitáveis que possam ser e por mais danosas que possam representar para a esfera do indivíduo concreto e para o seu círculo de vida familiar. Na verdade, «O ordenamento jurídico da RAEM protege a família, a unidade e a estabilidade familiar como um direito fundamental, plasmado no artigo 38.º da lei Básica, bem como nos artigos 1°, 2° e 3° da lei n.º 6/94/M de 1 de Agosto, decorrendo esta protecção de uma necessidade programática que deve pautar a actuação da Administração e dos administrados, não deixando contudo de ter que se encontrar o equilíbrio entre os diversos princípios e valores que devem igualmente ser prosseguidos pela Administração».7
Esta é, repetimos, a leitura que os tribunais de Macau vêm fazendo acerca desta temática8.
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2.3. - Falta analisar a imputada violação dos princípios acima citados.
2.3.1. - Quanto ao da igualdade, a inocuidade da invocação do vício provém da simples circunstância de não estar ilustrado com nenhum elemento de facto que pudesse densificar a pretensa violação. Se, como se sabe, só existe violação do princípio da igualdade, no âmbito do exercício dos poderes discricionários, se a Administração decide diferentemente casos que são iguais na substância e no enquadramento jurídico, a verdade é que para a sua apreciação poder ser feita judicialmente torna-se necessário que o recorrente aporte aos autos casos de facto iguais que tenham merecido solução diferente daquela que o seu caso tenha tido. E isso não o fez o recorrente. Portanto, o vício está condenado inelutavelmente ao insucesso.
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2.3.2. - Quanto aos restantes (proporcionalidade, justiça, imparcialidade), a sorte não é diferente.
Como é sabido, um acto desproporcional é desregrado, desmedido, é desequilibrado entre o interesse público subjacente e o interesse privado nele envolvido; é um acto que apresenta uma dispositividade com uma dimensão maior do que era expectável ou aconselhável que tivesse.
E um acto injusto é aquele que o administrado não merece, ou porque vai além do que o aconselha a natureza do caso e impõe sacrifícios infundados atendendo à matéria envolvida, ou porque não considera aspectos pessoais do destinatário que deveriam ter levado a outras ponderação e prudência administrativas. É injusto porque, podendo o seu objecto realizar-se com uma carga menor para o administrado, a este é imposto, apesar disso, um gravame penoso demais9.
Ora, tal como se afirmou no acórdão de de 11/10/2012 (Proc. nº 229/2012), “não se mostra desproporcional, nem desrazoável, nem injusto, nem desadequado que a Administração não queira ter na RAEM, ao menos para já, um cidadão que não se mostrou cumpridor das leis (…). Neste sentido, não vemos que aqueles princípios hajam sido violados ou que a decisão (…) seja fruto de alguma arbitrariedade ou se funde em erro grosseiro e manifesto na utilização dos poderes discricionários, sabendo que só o erro manifesto ou a total desrazoabilidade no exercício desse poder constituem uma forma de violação de lei judicialmente sindicável, sendo certo que interesses públicos, como os da prevenção e da garantia da segurança e estabilidade social públicas da RAEM, devem prevalecer sobre os dos poderes discricionários, sabendo que só o erro manifesto ou a total desrazoabilidade no exercício desse poder constituem uma forma de violação de lei judicialmente sindicável, sendo certo que interesses públicos, como os da prevenção e da garantia da segurança e estabilidade social públicas da RAEM, devem prevalecer sobre os interesses pessoais de cada indivíduo em particular. O que significa, igualmente, que nem a legalidade se mostra ofendida, nem os direitos e interesses do recorrente se acham vilipendiados”.
Os argumentos transcritos, retirados do cotejo dos artigos 5º e 7º do CPA, aplicam-se “ipsis verbis”, à situação presente. Razão que nos leva a, sem mais considerandos, julgar improcedentes os respectivos vícios.
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2.3.3. - A acrescer ao que se acaba de afirmar, resta notar que a razoabilidade que o recorrente defende ter sido desrespeitada não serve de nenhum proveito. Como se disse no Ac. de 10/01/2013, no Proc. nº 360/201210:
«O quadro legal em que se move a factualidade aqui relevante, nomeadamente os arts.
4º e 9º da Lei nº 4/2003, é de clara discricionariedade. (…) Uma “total desrazoabilidade no exercício dos poderes discricionários” pode servir de fundamento de recurso contencioso (art. 21º, al. d), do CPAC). Trata-se de uma expressão com alguma indeterminação conceptual, mas que se aceita possa comportar o sentido de uma absurda e desmesurada aplicação do poder discricionário administrativo perante um determinado caso real e concreto. A decisão desrazoável é aquela cujos efeitos se não acomodam ao dever de proteger o interesse público em causa, aquela que vai para além do que é sensato e lógico tendo em atenção o fim a prosseguir. Um acto desrazoável é um acto absurdo, por vezes até irracional11.
Ora, neste sentido, não cremos que o despacho de não renovar seja desrazoável, seja fruto de alguma arbitrariedade ou se funde em erro grosseiro e manifesto na utilização dos poderes discricionários, sabendo que só o erro manifesto ou a total desrazoabilidade no exercício desse poder constituem uma forma de violação de lei judicialmente sindicável, sendo certo, por outro lado, que os interesses públicos, como os da prevenção e da garantia da segurança e estabilidade social públicas da RAEM, devem prevalecer sobre os interesses pessoais de cada indivíduo em particular. Isto é, a situação particular do recorrente, por muito que seja actualmente caracterizada por um quadro de honestidade e probidade, por muito que releve de um sentimento de estabilidade familiar e de regras de vida conforme os padrões societários estabelecidos em Macau, não pode levar o tribunal a fazer ingerência na actividade administrativa, por não lhe caber ou pertencer a definição dos parâmetros do que é razoável e tolerável em domínios como este, com um alto grau de discricionariedade.
Significa que também este vício se tem que dar por inverificado.
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V - Decidindo
Nos termos expostos, acordam em julgar improcedente o recurso contencioso.
Custas pelo recorrente.
TSI, 05 / 12 / 2013
Presente (Relator) Vítor Manuel Carvalho Coelho José Cândido de Pinho
(Primeiro Juiz-Adjunto) Tong Hio Fong
(Segundo Juiz-Adjunto) Lai Kin Hong

1 Apesar da referência do art. 26º do DL nº 27/96/M, nunca chegou a ser publicado nenhum diploma regulamentador do instituto da reabilitação, pelo que o seu regime continua a ser o que decorre dos arts. 25º e 26º do citado diploma e nos arts. 52º e 53º do DL nº 86/99/M, de 22/11.
2 No art. 349º do Regime Jurídico da Função Pública de Macau, por exemplo, diz-se quais os efeitos que para o funcionário podem advir da reabilitação. E na jurisprudência comparada também se defende que o funcionário demitido por condenação em pena maior, uma vez reabilitado, pode concorrer e ser nomeado novamente funcionário: Ac. STJ, de 15/06/1983, Proc. nº 036921, in BMJ nº 328/329.
3 O cidadão em causa teria cometido o ilícito fora de Macau.
4 Ac. TSI, de 25/05/2006, Proc. nº 305/2005.
5 Ainda que versando também sobre uma reabilitação de direito com referência a um indivíduo condenado no exterior da RAEM.
6 Ac. TUI, de 13/12/2007, Proc. nº 36/2006.
7 Ac. TSI, de 26/07/2012, Proc. nº 766/2011.
8 Ver ainda, os Ac. do TUI, de 14/12/2012, Proc. nº 76/2012; e do TSI, de 10/01/2013, Proc. nº 360/2012
9 Neste sentido, o ac. TSI, de 10/01/2013, proc. nº 360/2012
10 Também Ac. TSI, de 11/10/2012, Proc. nº 229/2012
11 Também Agustin Gordillo, in Tratado de Derecho Administrativo, tomo 3, VIII, pag.22-26.
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