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Processo nº 752/2013 Data: 12.12.2013
(Autos de recurso penal)

Assuntos : Crime de “passagem de moeda falsa” e de “burla”.
Tentativa.



SUMÁRIO

1. O pagamento de despesas através da utilização de cartões de crédito falsificados integra a prática do crime de “passagem de moeda falsa” e não o de “burla”.

2. Se o pagamento foi liminarmente rejeitado, sem que tenha havido “circulação de moeda”, deve a conduta ser qualificada como a prática do crime de “passagem de moeda falsa” na forma tentada.


O relator,

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José Maria Dias Azedo

Processo nº 752/2013
(Autos de recurso penal)






ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:





Relatório

1. A, arguido com os restantes sinais dos autos, respondeu em audiência colectiva no T.J.B., vindo a ser condenado pela prática como autor e em concurso real de 3 crimes de “passagem de moeda falsa”, na forma tentada, p. e p. pelos art°s 255°, n.° 1, al. a), 257°, n.° 1, al. b), 21° e 22°, n.° 1, todos do C.P.M., na pena de 1 ano e 9 meses de prisão cada, e, em cúmulo jurídico, na pena única de 2 anos e 6 meses de prisão; (cfr., fls. 395 a 401-v que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).

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Inconformado, vem o arguido recorrer, motivando para, em sede de conclusões, e em síntese, dizer que o Tribunal a quo incorreu em “erro na qualificação jurídica” da sua conduta, que em sua opinião devia ser qualificada como a prática do crime de “burla”, pugnando também por uma redução da(s) pena(s) que lhe foi(ram) imputada(s); (cfr., fls. 410 a 413).

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Respondendo, considera o Ministério Público que se deve confirmar a decisão recorrida na sua íntegra; (cfr., fls. 416 a 419-v).

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Admitido o recurso, e remetidos os autos a este T.S.I., em sede de vista, emitiu o Ilustre Procurador Adjunto o seguinte Parecer:

“Compulsando a motivação do recurso interposto, verifica-se que foram colocadas duas questões jurídicas pelo recorrente.
A primeira relaciona-se com a alegada errada aplicação do direito por parte do tribunal "a quo", entendendo que a correcta qualificação dos factos deve ser a figura do crime de burla e não do crime de passagem de moeda falsa.
A segunda tem a ver com a dosimetria penal aplicada nos autos.
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Vamos começar pela primeira questão.
Salvo o respeito, discordamos com a qualificação jurídica pugnada pelo recorrente.
Na sua tese, dado que um dos cartões de crédito "falsificado" destinou-se a levantar numerários e não em aquisição de bens, fazendo com que o Casino se processasse a entrega dos respectivos numerários em dinheiro. Assim sendo, enquadrava-se na tipicidade do crime de burla, previsto no art° 211, n° 1 do C.P.M.
Para nós, se bem que haja, efectivamente, zona de intercepção entre o crime de burla e o crime de passagem de moeda falsa, pois, em maioria dos casos ambos os crimes podem ofender o bem jurídico de património do terceiro e resulta prejuízo patrimonial, mas só por isso não é razão bastante para entender que o crime de burla prevaleça ao crime de passagem de moeda falsa.
Ora, como a maioria da doutrina se entende, entre o crime de burla e o crime de passagem de moeda falsa encontram-se muitas vezes numa relação de concurso das normas aplicáveis, nomeadamente, numa relação de consunção pura.
Acresce que dentro desta relação de consunção o crime de burla deve ser consumida pelo crime da passagem de moeda falsa, na medida em que é entendido que neste último tipo do crime o legislador estabeleceu um regime próprio e específico para salvaguardar o bem jurídico de "intangibilidade do sistema monetário legal", tanto na previsão dos tipos incriminadores (elementos constitutivos) como na sua respectiva estatuição (muitas vezes com penas mais severas)
Como nas palavras do Prof. A.M. Almeida Costa no "Comentário Conimbricense do Código Penal", pago 787 e pago 815:
"a teleologia da lei aponta, de modo inequívoco, no sentido de que a incriminação da colocação em circulação de moeda contrafeita esgota o conteúdo da tutela penal conferida àqueles outros bens jurídicos e, portanto, ao património, sempre que a sua ofensa decorra e, nessa medida, se "confunda" com a entrada da moeda falsa no tráfico monetário corrente, verificando-se uma situação típica de consunção pura."
Em segundo lugar, não nos pareça que só pela circunstância de o cartão falsificado tivesse servido para levantar numerário em vez de aquisição de bens materiais possa alterar a cena. Pois, levantar numerário é hoje em dia uma das funções essenciais de aquisição de serviço fornecido pelo uso do cartão de crédito.
Ora, confessamos que não nós vemos qualquer diferença qualitativa substancial entre a situação do uso do cartão para aquisição de produtos ou para aquisição de serviços. Pensamos que ambas as situações estão perfeitamente enquadráveis no tipo incriminador de passagem de moeda falsa.
Concluindo, não tem razão nenhuma o recorrente nesta questão de qualificação, o recurso não merece de provimento.
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Quanto à questão da medida concreta da pena.
O recorrente alega que a pena encontrada pelo tribunal recorrido é demasiadamente pesada por não ter considerado a aplicabilidade do tipo do crime de burla por ele pugnado e a respectiva moldura penal na determinação da pena.
Por outro lado, invocou alguns acórdãos dos casos "semelhantes" de T.S.I. e de T.U.I., sustentando assim que a pena aplicada nos presentes autos é relativamente pesada.
Em primeiro lugar, na sequência de tudo ficamos dito em relação à inaplicabilidade do tipo incriminador de burla, nada mais temos de comentar sobre o primeiro fundamento acima referido.
Em segundo lugar, temos de dizer que cada caso é um caso, e não se pode fazer comparação abstracta, sem atender às circunstâncias concretas de cada caso, para ajuizar a bondade de decisão.
Efectivamente, não' se deve ignorar que os actos praticados pelo recorrente são graves em termos de ilicitude, por ter já posto em perigo (através do uso do cartão) o bem jurídico de intangibilidade do sistema monetário legal. Acresce que o recorrente veio a Macau, de propósito, para praticar tais factos ilícitos, ofendendo assim, de maneira grave, a ordem e tranquilidade da sociedade.
Acresce que dentro de moldura de um mês a três anos e quatro meses, o tribunal "a quo" só fixou a pena concreta em um ano e nove meses de prisão, tal medida nem chega a representar metade da pena abstracta aplicável, assim, confessamos que não se descortina qualquer exagero nessa medida da pena.
E o mesmo se passa com a pena única encontrada, dentro de uma moldura de um ano e nove meses a cinco anos e três meses de prisão, o tribunal "a quo" fixou a pena única em dois anos e seis meses de prisão, pensamos em nada se pode queixar da sua não proporcionalidade.
Por fim, devemos salientar que toda a operação de fixação da pena do tribunal "a quo" foi feita no âmbito da figura de crimes de passagem de moeda falsa "tentado", ao passo que o mesmo tribunal entendeu que as condutas em si eram enquadráveis na figura de consumação do crime. (cfr. a fls. 400 dos autos)
Ou seja, devido às limitações resultantes das regras processuais, já tinha sido "beneficado", pois, se tivesse sido observado o necessário contraditório na audiência e discussão de julgamento, era previsível que o recorrente iria sofrer uma pena dentro de moldura do crime consumado respectivo, ou seja, mais pesada. .
*****
Para além das questões levantadas pelo recorrente, verificamos que existe outra que o tribunal "a quem" pode e deve conhecer oficiosamente.

Na verdade, o tribunal "a quo" condenou a final as condutas do recorrente como prática de crimes de passagem de moeda falsa na sua forma tentada, por entender que o recorrente não conseguiu obter benefício patrimonial ilegítimo através do uso dos cartões de crédito falsos.
No entanto, como dizia pelo Prof, Almeida Costa, no Comentário Conimbrincense do Código Penal, Tomo II, pago 769.
"Dado que a lesão do bem jurídico só ocorre com a entrada em circulação da moeda, o delito constitui, do ponto de vista em apreço, um crime de perigo abstracto ou presumido, não dependendo da prova de que, em concreto, se verificou o risco efectivo daquela entrada em circulação."
Desenvolvendo esta ideia ao caso concreto, significa que desde o momento em que o agente entregou o cartão falso ao estabelecimento ou loja comercial para proceder ao pagamento, o crime fica já consumado, não depende de consumação do negócio ou de nenhum real prejuízo causado para o destinatário.
Assim sendo, e de acordo como os factos dados como provados, todos os actos praticados pelo recorrente integram já na figura de consumação do crime e não ficam só na fase de tentativa.
Pelo exposto, este tribunal "a quem" deve re-qualificar os factos, alterando a condenação de todos os crimes a título tentados nos crimes a título consumados, sem prejuízo de observar as regras de proibição de reformatio in pejus”; (cfr., fls. 429 a 432).

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Cumpre decidir.

Fundamentação

Dos factos

2. Estão provados e não provados os factos como tal elencados no Acórdão recorrido a fls. 397-v a 399-v, e que aqui se dão como integralmente reproduzidos.

Do direito

3. Vem o arguido dos autos recorrer do Acórdão do T.J.B. que o condenou pela prática como autor e em concurso real de 3 crimes de “passagem de moeda falsa”, na forma tentada, p. e p. pelos art°s 255°, n.° 1, al. a), 257°, n.° 1, al. b), 21° e 22°, n.° 1, todos do C.P.M., na pena de 1 ano e 9 meses de prisão cada, e, em cúmulo jurídico, na pena única de 2 anos e 6 meses de prisão.

Entende que o Tribunal a quo incorreu em “erro na qualificação jurídica” da sua conduta, que considera dever ser qualificada como a prática do crime de “burla”, pugnando também por uma redução da(s) pena(s) que lhe foi(ram) imputada(s).

–– Sem demoras, vejamos se tem razão, começando-se, como é lógico, pela “qualificação jurídico-penal” da conduta do ora recorrente.

Nos termos do art. 211° do C.P.M.:

“1. Quem, com intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo, por meio de erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou, determinar outrem à prática de actos que lhe causem, ou causem a outra pessoa, prejuízo patrimonial é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.
2. A tentativa é punível.
3. Se o prejuízo patrimonial resultante da burla for de valor elevado, o agente é punido com pena de prisão até 5 anos ou com pena de multa até 600 dias.
4. A pena é a de prisão de 2 a 10 anos se:

a) O prejuízo patrimonial for de valor consideravelmente elevado;

b) O agente fizer da burla modo de vida; ou

c) A pessoa prejudicada ficar em difícil situação económica”.

Por sua vez, preceitua o art. 255° do mesmo Código que:

“1. Quem, por qualquer modo, incluindo a exposição à venda, passar ou puser em circulação,

a) como legítima ou intacta, moeda falsa ou falsificada,

b) moeda metálica depreciada, pelo seu pleno valor, ou

c) moeda metálica com o mesmo ou maior valor que o da legítima, mas fabricada sem autorização legal, é punido, no caso da alínea a), com pena de prisão até 5 anos, e, no caso das alíneas b) e c), com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias.
2. Se o agente só tiver tido conhecimento de que a moeda é falsa ou falsificada depois de a ter recebido, é punido:

a) No caso da alínea a) do número anterior, com pena de multa até 240 dias;

b) No caso das alíneas b) e c) do número anterior, com pena de multa até 90 dias”.

Tendo presente a factualidade dada como provada – que não foi impugnada nem se mostra de alterar – cremos que evidente é a sem razão do recorrente no ponto aqui em questão.

De facto, e como resulta da dita factualidade, no cometimento dos crimes pelos quais estava o ora recorrente acusado, utilizou o mesmo vários “cartões de crédito” (falsificados), motivos não havendo assim para a qualificação da sua conduta como a prática do crime de “burla”, em vez do de “passagem de moeda falsa”, como foi, e bem, decidido pelo T.J.B., mostrando-se pois de subscrever, aqui, na íntegra, o doutamente opinado pelo Ilustre Procurador Adjunto, nada mais se afigurando de acrescentar.

–– Quanto à “pena”.

Aos crimes de “passagem de moeda falsa” pelo recorrente cometidos cabe a pena de prisão até 5 anos.

Dada a forma do seu cometimento, (tentativa), aplicável é o art. 67° do C.P.M., onde se estatui que:

“1. Sempre que houver lugar à atenuação especial da pena, observa-se o seguinte relativamente aos limites da pena aplicável:

a) O limite máximo da pena de prisão é reduzido de um terço;

b) O limite mínimo da pena de prisão é reduzido a um quinto se for igual ou superior a 3 anos e ao mínimo legal se for inferior;

c) O limite máximo da pena de multa é reduzido de um terço e o limite mínimo reduzido ao mínimo legal;

d) Se o limite máximo da pena de prisão não for superior a 3 anos pode a mesma ser substituída por multa, dentro dos limites referidos no n.º 1 do artigo 45.º
2. A pena especialmente atenuada que tiver sido em concreto fixada é passível de substituição e suspensão, nos termos gerais”.

E, no caso, em estrita obediência ao assim preceituado, fixou o Tribunal a quo as penas parcelares de 1 ano e 9 meses de prisão para cada 1 dos crimes pelo recorrente cometidos.

Serão tais penas excessivas?

Pois bem, nos termos do art. 40° do C.P.M.:

“1. A aplicação de penas e medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade.
2. A pena não pode ultrapassar em caso algum a medida da culpa.
3. A medida de segurança só pode ser aplicada se for proporcionada à gravidade do facto e à perigosidade do agente”.
Por sua vez, tem este T.S.I. entendido que “na determinação da medida da pena, adoptou o Código Penal de Macau no seu art.º 65.º, a “Teoria da margem da liberdade”, segundo a qual, a pena concreta é fixada entre um limite mínimo e um limite máximo, determinados em função da culpa, intervindo os outros fins das penas dentro destes limites”; (cfr., v.g., o Ac. de 03.02.2000, Proc. n° 2/2000, e, mais recentemente, de 14.11.2013, Proc. n° 549/2013).

Na situação dos autos, e como bem salienta o Ilustre Procurador Adjunto, há que ter em conta que o arguido agiu de acordo com um plano previamente engendrado, deslocando-se propositadamente do exterior para Macau a fim de levar a cabo a sua conduta, insistindo e repetindo esta, agindo assim com um dolo – directo e – muito intenso.

Por sua vez, afigura-se-nos também notório o aumento da criminalidade relacionada com “cartões de crédito”, sendo, desta forma, evidentes as fortes necessidades de prevenção criminal deste tipo de crime.

Daí, e atento o que acima se expôs, censura não merecem as penas parcelares impostas que se mostram em total sintonia com o estatuído nos art°s 40°, 65° e 67° do C.P.M..

Em relação ao “cúmulo jurídico”, pouco há a dizer.

Com efeito, e como já teve este T.S.I. oportunidade de afirmar: “na determinação da pena única resultante do cúmulo jurídico são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente.
Na consideração dos factos, ou melhor, do conjunto dos factos que integram os crimes em concurso, está ínsita uma avaliação da gravidade da ilicitude global, que deve ter em conta as conexões e o tipo de conexão entre os factos em concurso.
Por sua vez, na consideração da personalidade - que se manifesta na totalidade dos factos - devem ser avaliados e determinados os termos em que a personalidade se projecta nos factos e é por estes revelada, ou seja, importa aferir se os factos traduzem uma tendência desvaliosa, uma tendência para a prática do crime ou de certos crimes, ou antes, se reconduzem apenas a uma pluriocasionalidade que não tem razão na personalidade do agente”; (cfr., v.g., o Ac. de 11.10.2012, Proc. n.° 703/2012, e mais recentemente, de 14.11.2013, Proc. n.° 695/2013).

Nesta conformidade, e em causa estando uma moldura penal de 1 ano e 9 meses a 5 anos e 3 meses de prisão, excessiva também não se mostra a pena única de 2 anos e 6 meses de prisão.

Constata-se assim que evidente é a falta de razão do ora recorrente.

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Em sede do douto Parecer, coloca o Ilustre Procurador Adjunto uma “questão nova”, relacionada com a qualificação jurídica da conduta do arguido, considerando que os crimes por este cometidos estão consumados.

Sem embargo do muito e devido respeito, face à factualidade provada, não se mostra de acolher o assim entendido, pois que nenhuma das transacções pelo arguido efectuadas com os cartões de crédito teve sucesso, tendo os cartões sido liminarmente rejeitados, não nos parecendo assim de considerar que houve efectiva “circulação de moeda”.

Nesta conformidade, e apresentando-se-nos o recurso do arguido manifestamente improcedente, imperativa é a sua rejeição.

Decisão

4. Nos termos e fundamentos expostos, em conferência, acordam rejeitar o recurso; (cfr., art. 409°, n.° 2, al. a) e 410, n.° 1 do C.P.P.M.).

Pagará o recorrente 5 UCs de taxa de justiça, e como sanção pela rejeição do seu recurso, o equivalente a 4 UCs; (cfr., art. 410°, n.° 4 do C.P.P.M.).

Macau, aos 12 de Dezembro de 2013
José Maria Dias Azedo
Chan Kuong Seng
Tam Hio Wa
Proc. 752/2013 Pág. 20

Proc. 752/2013 Pág. 19