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Processo n.º 463/2013 Data do acórdão: 2013-12-16 (Autos em recurso penal)
Assuntos:
– art.o 90.o, n.o 2, da Lei do Trânsito Rodoviário
– condução sob influência de estupefacientes
– critério de aferição da influência de estupefacientes na condução
– reacção positiva a qualquer substância estupefaciente
– condução sob influência de álcool em três níveis
– art.º 90.º, n.º 1, da Lei do Trânsito Rodoviário
– art.º 96.º, n.os 2 e 3, da Lei do Trânsito Rodoviário
– grau concreto de influência de álcool no condutor
– art.º 117.º da Lei do Trânsito Rodoviário
– art.º 116.º, n.º 1, da Lei do Trânsito Rodoviário
– contraprova do estado de influência de álcool
– art.º 118.º, n.º 1, da Lei do Trânsito Rodoviário
– exame de detecção de estupefacientes
– exame de pesquisa de alcoolemia
– art.º 115.º da Lei do Trânsito Rodoviário
– art.º 119.º, n.º 1, da Lei do Trânsito Rodoviário
– último grau de jurisdição
– medida da pena
S U M Á R I O
1. O art.o 90.o, n.o 2, da Lei do Trânsito Rodoviário (LTR) pune criminalmente “quem conduzir veículo na via pública sob influência de estupefacientes ou de substâncias psicotrópicas cujo consumo seja considerado crime nos termos da lei”.
2. Segundo a factualidade provada em primeira instância, em 24 de Dezembro de 2012, às 05:00 horas da manhã, o pessoal policial mandou parar, para investigação, um veículo automóvel na altura conduzido pelo arguido numa via pública, e descobriu que a cara do arguido apresentava reacção retardada, e levado o arguido, às 06:05 horas da mesma manhã, ao teste por parte do Centro Hospitalar Conde de São Januário, revelou o respectivo relatório que o arguido apresentava reacção positiva às substâncias estupefacientes de Ketamina e de Cocaína, de cujas natureza e características conhecia bem o próprio arguido, o qual sabia também que a sua conduta, praticada de modo livre, voluntário e consciente, era ilegal e punível por lei.
3. Estando já comprovada, por teste, a reacção positiva do corpo do arguido às substâncias estupefacientes de Ketamina e de Cocaína, devia o tribunal recorrido ter concluído forçosamente que o arguido se encontrou a conduzir veículo em via pública sob influência de estupefacientes, e não ter absolvido o arguido deste crime.
4. Na verdade, só se poderia concluir por falta de influência de estupefacientes na condução de veículo, quando e só quando se apurasse que o corpo do condutor não tivesse nenhuma reacção positiva a qualquer substância estupefaciente ou psicotróprica, hipótese essa que não sucedeu no caso concreto dos autos.
5. Por outras palavras, para efeitos de verificação do tipo legal do art.o 90.o, n.o 2, da LTR, não é necessário indagar sobre qual o grau ou o nível de influência de substância(s) estupefaciente(s) ou psicotrópica(s) consumida(s) pelo condutor de veículo no seu acto de condução, visto que se o Legislador da LTR não exige essa indagação, o intérprete-aplicador do Direito também não a deve exigir, sob pena de violação da própria norma incriminadora em questão.
6. Para reforçar a conclusão acima tecida, é de atender a que a mesma LTR acaba por sancionar os actos de condução sob influência de álcool em três níveis distintos, punindo-os, no nível mais grave, a título de “crime de condução em estado de embriaguez” (cfr. o art.º 90.º, n.º 1, da LTR), e, nos dois níveis menos graves, já a título de contravenção (cfr. o disposto sobretudo nos n.os 3 e 2 do art.º 96.º da LTR, respectivamente), e isto tudo dependendo do grau concreto de influência de álcool no condutor, daí que não é por acaso que a própria LTR prevê, principalmente no art.º 117.º, e também algo lateralmente no n.º 1 do art.º 116.º, vias de contraprova do estado de influência de álcool, soluções legislativas essas que já não se encontram adaptadas para os actos de condução sob influência de estupefaciente, em relação aos quais a LTR já os pune todos (tudo a título de crime previsto no n.º 2 do art.º 90.º), sem distinção de qualquer nível concreto de influência de estupefaciente no condutor, para além de não prever qualquer via de contraprova do estado de influência de estupefaciente, sendo sintomático dessa opção legislativa o facto de a LTR falar, no n.º 1 do art.º 118.º, dos exames de “detecção” de estupefacientes, em confronto com o termo “pesquisa” empregue nos exames de alcoolemia (de que se fala principalmente no art.º 115.º).
7. Diferença de tratamento legislativo toda essa que não pode ser apagada pela letra do n.º 2 do art.º 119.º da LTR, posto que esta norma se limita a remeter para diploma complementar, a fixação ou regulamentação de quais “os exames, os métodos e os materiais a utilizar para a determinação do estado de influenciado por estupefaciente ou substâncias psicotrópricas”, e nunca a fixação de mais algum elemento integrante do tipo de crime do art.º 90.º, n.º 2, da própria LTR.
8. Termos em que na presente lide recursória, há que passar a condenar o arguido directamente como autor material, na forma consumada, de um crime de condução sob influência de estupefacientes, como vinha inicialmente também acusado pelo Ministério Público.
9. Entretanto, para assegurar ao arguido o segundo (e último) grau de jurisdição quanto à questão da medida da pena, é de ordenar ao mesmo tribunal singular recorrido que venha a aplicar inclusivamente sanções legais ao crime de condução em causa do arguido, tidas por adequadas em função de todas as circunstâncias fácticas já dadas por provadas na sentença ora recorrida.
O relator,
Chan Kuong Seng

Processo n.º 463/2013
(Autos de recurso penal)
Recorrente: Ministério Público
Arguido recorrido: A





ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU
I – RELATÓRIO
Inconformado com a sentença proferida a fls. 51 a 54 dos autos de Processo Comum Singular n.° CR1-13-0063-PCS do 1.o Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base, na parte relativa à absolvição do arguido A, já aí melhor identificado, da também inicialmente acusada prática, em autoria material, e na forma consumada, de um crime de condução sob influência de estupefacientes, p. e p. pelo art.o 90.o, n.o 2, da Lei n.o 3/2007, de 7 de Maio (Lei do Trânsito Rodoviário, doravante abreviada como LTR), veio o Ministério Público acusador recorrer para este Tribunal de Segunda Instância (TSI), para pedir a condenação directa do arguido no dito crime, por, no seu entender, o Tribunal recorrido ter cometido erro notório na apreciação da prova no atinente à indagação se o arguido tenha conduzido intencionalmente o veículo automóvel em via pública, sob influência de estupefacientes (cfr. a motivação do recurso apresentada a fls. 61 a 64v dos presentes autos correspondentes).
Ao recurso respondeu o arguido (a fls. 68 a 69v dos autos) no sentido de manifesta improcedência do recurso.
Subidos os autos, emitiu a Digna Procuradora-Adjunta parecer (a fls. 79 a 81), pugnando pelo provimento do recurso.
Feito o exame preliminar, corridos os vistos e realizada já a audiência de julgamento neste TSI, cumpre decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICA
Do exame dos autos, fluem os seguintes elementos com pertinência à solução do recurso:
1. O Tribunal a quo decidiu absolver, na sentença ora recorrida, o arguido do inicialmente também imputado crime de condução sob influência de estupefacientes, por entender que não estava provado que o arguido tenha conduzido intencionalmente o veículo automóvel em via pública sob influência de estupefacientes, não obstante a simultânea condenação do arguido pela autoria material, na forma consumada, de um crime de consumo ilícito de estupefacientes.
2. No texto da mesma sentença, deu-se por provado materialmente o seguinte:
– em 23 de Dezembro de 2012, cerca das 03:00 horas da madrugada, o arguido, num estabelecimento de Karaoke em Macau, ingeriu uns pós em cor branca fornecidos por um indivíduo de identidade não apurada;
– em 24 de Dezembro de 2012, às 05:00 horas da manhã, quando o arguido conduziu um veículo automóvel numa via pública em Macau, o pessoal policial mandou parar esse veículo para efeitos de investigação, tendo o pessoal policial descoberto que o arguido apresentava cara com reacção retardada;
– às 06:05 horas da mesma manhã, o pessoal policial levou o arguido para fazer teste no Centro Hospitalar Conde de São Januário, cujo relatório revelou que o corpo do arguido apresentava reacção positiva às substâncias estupefacientes de Ketamina e de Cocaína, ambas controladas pela Lei n.o 17/2009, de 10 de Agosto (doravante abreviada como Lei de droga);
– o arguido conhecia bem a natureza e características das substâncias acima referidas;
– o arguido adquiriu as substâncias acima mencionadas para seu consumo próprio;
– o arguido agiu livre, voluntária e conscientemente no consumo da droga;
– o arguido sabia claramente que a sua conduta era ilegal e punível por lei;
– o arguido é delinquente primário;
– o arguido trabalha como empregado de venda de veículos automóveis e motorista, com oito mil patacas de rendimento médio mensal;
– o arguido tem a mãe a seu cargo;
– o arguido tem por habilitações académicas o 1.o ano do ensino secundário elementar.
III – FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
De antemão, é de notar que mesmo em processo penal, e com excepção da matéria de conhecimento oficioso, ao tribunal de recurso cumpre resolver só as questões material e concretamente alegadas na motivação do recurso e ao mesmo tempo devidamente delimitadas nas conclusões da mesma, e já não responder a toda e qualquer razão aduzida pela parte recorrente para sustentar a procedência das suas questões colocadas (nesse sentido, cfr., de entre muitos outros, os acórdãos do TSI, de 7 de Dezembro de 2000 no Processo n.o 130/2000, de 3 de Maio de 2001 no Processo n.o 18/2001, e de 17 de Maio de 2001 no Processo n.o 63/2001).
Do teor da sua motivação, resulta que o Ministério Público ora recorrente pretende que seja condenado directamente o arguido também no crime de condução sob influência de estupefacientes.
E para este Tribunal ad quem, há que proceder esse desejo do Ministério Público, embora por seguintes razões, parcialmente diversas das alegadas na motivação do recurso :
– o art.o 90.o, n.o 2, da LTR pune criminalmente “quem conduzir veículo na via pública sob influência de estupefacientes ou de substâncias psicotrópicas cujo consumo seja considerado crime nos termos da lei”;
– estando o arguido já condenado na sentença recorrida pela prática, em autoria material, e na forma consumada, de um crime de consumo ilícito de estupefacientes, só falta verificar se a matéria de facto já dada por assente nessa sentença dê para integrar a situação, também descrita no tipo legal em causa, de o agente “conduzir veículo na via pública sob influência de estupefacientes ou de substâncias psicotrópicas”;
– segundo a factualidade provada em primeira instância, em 24 de Dezembro de 2012, às 05:00 horas da manhã, o pessoal policial mandou parar, para investigação, um veículo automóvel na altura conduzido pelo arguido numa via pública, e descobriu que a cara do arguido apresentava reacção retardada, e levado o arguido, às 06:05 horas da mesma manhã, ao teste por parte do Centro Hospitalar Conde de São Januário, revelou o respectivo relatório que o arguido apresentava reacção positiva às substâncias estupefacientes de Ketamina e de Cocaína, de cujas natureza e características conhecia bem o próprio arguido, o qual sabia também que a sua conduta, praticada de modo livre, voluntário e consciente, era ilegal e punível por lei;
– ora, perante essa mesma matéria de facto já provada – da qual, aliás, resultou congruentemente claro que o arguido andava a conduzir livre, voluntária e conscientemente (e com conhecimento da ilegalidade e da punibilidade dessa sua conduta), às 05:00 horas da manhã de 24 de Dezembro de 2012, um veículo automóvel numa via pública, já depois de consumido ilegalmente as Ketamaina e Cocaína –, andou mesmo inadequadamente o Tribunal recorrido ao decidir absolver o arguido do crime do art.o 90.o, n.o 2, da LTR, por entender que não estava provado que o arguido tenha conduzido intencionalmente o veículo automóvel em via pública sob influência de estupefacientes, entendimento conclusivo esse que foi realmente menos bem tirado pelo Tribunal recorrido;
– com efeito, estando já comprovada, por teste, a reacção positiva do corpo do arguido às substâncias estupefacientes de Ketamina e de Cocaína, devia o Tribunal recorrido ter concluído forçosamente que o arguido se encontrou a conduzir veículo em via pública sob influência de estupefacientes;
– na verdade, só se poderia concluir por falta de influência de estupefacientes na condução de veículo, quando e só quando se apurasse que o corpo da pessoa condutora não tivesse nenhuma reacção positiva a qualquer substância estupefaciente ou psicotróprica, hipótese essa que não sucedeu no caso concreto dos autos;
– por outras palavras, opina o presente Tribunal ad quem que para efeitos de verificação cabal do tipo legal do art.o 90.o, n.o 2, da LTR, não é necessário indagar sobre qual o grau ou o nível de influência de substância(s) estupefaciente(s) ou psicotrópica(s) consumida(s) pela condutora de veículo no seu acto de condução, visto que se o Legislador da LTR não exige essa indagação (sendo comprovativo disto o modo distinto por que o Legislador redigiu o tipo legal de condução em estado de embriaguez, em confronto com a letra do tipo legal de condução sob influência de estupefacientes ou substâncias psicotrópricas – vide a parte inicial da redacção do n.o 1 do art.o 90.o da LTR, em comparação com a letra do n.o 2 deste artigo), o intérprete-aplicador do Direito também não a deve exigir, sob pena de violação da própria norma incriminadora em questão;
– aliás, para reforçar a conclusão acima tecida, é de atender a que a mesma LTR acaba por sancionar os actos de condução sob influência de álcool em três níveis distintos, punindo-os, no nível mais grave, a título de “crime de condução em estado de embriaguez” (cfr. o art.º 90.º, n.º 1, da LTR), e, nos dois níveis menos graves, já a título de contravenção (cfr. o disposto sobretudo nos n.os 3 e 2 do art.º 96.º da LTR, respectivamente), e isto tudo dependendo do grau concreto de influência de álcool no condutor, daí que não é por acaso que a própria LTR prevê, principalmente no art.º 117.º, e também algo lateralmente no n.º 1 do art.º 116.º, vias de contraprova do estado de influência de álcool, soluções legislativas todas essas que já não se encontram adaptadas para os actos de condução sob influência de estupefaciente, em relação aos quais a LTR já os pune todos (tudo a título de crime previsto no n.º 2 do art.º 90.º), sem distinção de qualquer nível concreto de influência de estupefaciente no condutor, para além de não prever qualquer via de contraprova do estado de influência de estupefaciente, sendo sintomático dessa opção legislativa o facto de a LTR falar, no n.º 1 do art.º 118.º, dos exames de “detecção” de estupefacientes, em confronto com o termo “pesquisa” empregue nos exames de alcoolemia (de que se fala principalmente no art.º 115.º), diferença de tratamento legislativo toda essa que não pode ser apagada pela letra do n.º 2 do art.º 119.º da LTR, posto que esta norma se limita a remeter para diploma complementar, a fixação ou regulamentação de quais “os exames, os métodos e os materiais a utilizar para a determinação do estado de influenciado por estupefaciente ou substâncias psicotrópricas”, e nunca a fixação de mais algum elemento integrante do tipo de crime do art.º 90.º, n.º 2, da própria LTR;
– termos em que há que passar a condenar o arguido directamente como autor material, na forma consumada, de um crime de condução sob influência de estupefacientes, como tal já vinha inicialmente também acusado pelo Ministério Público.
Entretanto, para assegurar ao arguido o segundo (e último) grau de jurisdição quanto à questão da medida da pena, é de ordenar ao mesmo Tribunal Singular recorrido que venha a aplicar concretamente sanções legais ao crime de condução em causa do arguido, tidas por adequadas em função de todas as circunstâncias fácticas já dadas por provadas na sentença ora recorrida (e já referidas na parte II do presente acórdão de recurso), e, depois, a punir o arguido em sede do art.o 71.o do Código Penal.
IV – DECISÃO
Dest’arte, acordam em julgar provido o recurso, condenando o arguido também como autor material, na forma consumada, de um crime de condução sob influência de estupefacientes, p. e p. pelo art.o 90.o, n.o 2, da Lei n.o 3/2007, de 7 de Maio, cabendo ao mesmo Tribunal Singular recorrido a tarefa de proceder à medida concreta da pena deste crime e ao cúmulo jurídico das sanções em sede do art.o 71.o do Código Penal.
Custas do recurso pelo arguido (por este ter defendido a improcedência do recurso), com quatro UC de taxa de justiça, e duas mil patacas de honorários a favor da sua Ex.ma Defensora Oficiosa.
Comunique o presente acórdão ao Processo n.o CR4-13-0275-PCS do 4.o Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base, ao Instituto de Acção Social, e ao Corpo de Polícia de Segurança Pública, para efeitos tidos por convenientes.
Macau, 16 de Dezembro de 2013.
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Chan Kuong Seng
(Relator)
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Tam Hio Wa
(Primeira Juíza-Adjunta)
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Choi Mou Pan
(Segundo Juiz-Adjunto)



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