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Proc. nº 396/2013
Relator: Cândido de Pinho
Data do acórdão: 23 de Janeiro de 2014
Descritores:
-Art. 478º do CPC
-Representação orgânica e representação voluntária
-Transigir e confessar
-Depoimento de parte
-Prova testemunhal

SUMÁRIO:

I - Não pode obter-se dos representantes orgânicos das pessoas colectivas senão apenas o seu depoimento como parte. O mesmo não se diga já dos representantes voluntários de pessoas singulares.

II - O depoimento de parte tem uma essência probatória, com vista a alcançar a confissão de factos desfavoráveis ao depoente e à parte a que pertence e o reconhecimento de factos favoráveis à parte contrária. Verdadeiramente, o depoimento de parte visa obter a confissão judicial.

III - O representante voluntário pode agir como testemunha do representado, desde que não disponha de poderes confessórios.

IV - A confissão é um meio de prova, que consiste no reconhecimento que a parte faz da realidade de um facto que lhe é desfavorável e favorece a parte contrária. Mas, para o confessar, é preciso que seja facto pessoal ou que o conheça.

V - A transacção é um contrato pelo qual as partes livremente (desde que não importe a afirmação da vontade relativamente a direitos indisponíveis) previnem ou terminam um litígio mediante recíprocas concessões (art. 1172.º, n.ºs 1 e 2, do CC).

VI - Se alguém passa uma procuração a outrem permitindo-lhe transigir sobre o objecto da acção ou de desistir do pedido ou da instância, mas sem lhe conferir poderes confessórios, então o procurador pode depor como testemunha e não como “parte”.








Proc. nº 396/2013

Acordam no Tribunal de Segunda Instância da R.A.E.M.

I - Relatório
A, com os demais sinais dos autos, intentou acção declarativa com processo ordinário contra as rés “B Investment Company, Ltd”, “Companhia de Construção e Fomento Predial C, Lda” e “Companhia de Desenvolvimento de Imobiliário D, Lda”, todos com os demais sinais dos autos, pedindo, por nulidade e por simulação, a resolução de um contrato de promessa celebrado com a 1ª ré com vista à transmissão do direito de concessão sobre um imóvel, efectuada por escrituras de 30/10/2003 e 8/01/2004, e a restituição, por impugnação pauliana, do direito em causa ao autor.
*
Em audiência de discussão e julgamento, o M.mo Juiz presidente recusou a audição da testemunha do autor, de seu nome E (fls. 81), com o argumento de esta pessoa ser possuidora de uma procuração passada pelo autor, onde lhe eram conferidos poderes gerais para transigir e desistir da instância ou do pedido.
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Desse despacho o autor interpôs recurso jurisdicional para este TSI, em cujas alegações formulou as seguintes conclusões:
«A. Vem o presente recurso interposto do despacho proferido na sessão de julgamento de 08.06.2012, nos termos do qual o Tribunal a quo decidiu “...não admitir o depoimento de E como testemunha, não sendo atendidas as declarações já prestadas pelo mesmo.”
B - Com tal decisão não se pode o Recorrente conformar, por entender que E, testemunha arrolada pelo Autor e a quem previamente o Autor passou a procuração de fls. 22 dos autos, nunca podia ser considerado parte ou prestar depoimento de parte em representação do Autor e ora Recorrente.
C - Entende o Recorrente que o Tribunal a quo procedeu a uma interpretação incorrecta dos preceitos legais invocados - o art. 518.º e segunda parte do art. 478.º, n.º 2 e do art. 536.º, n.º 2 do C.P.C -, desde logo, não tomando em devida consideração o facto de o Recorrente ser uma pessoa singular, donde nunca seria admissível a prestação de depoimento de parte por procurador.
D - Na verdade, uma coisa é a outorga de poderes para se obter uma transacção judicial, outra bem diferente é conferir poderes para se obter uma confissão dos factos.
E - Por outro lado, contrariamente ao que prescreve o art. 478.º, n.º 2 do C.P.C., o Recorrente não se encontra inabilitado, não é incapaz, nem é uma pessoa colectiva.
F - Donde, no caso, nunca seria possível que o Autor pudesse prestar depoimento de parte, através de outrem, designadamente, mediante a outorga de uma procuração.
G- Enquanto que os poderes para celebração de transacção judicial, desistência da instância ou do pedido actuam ao nível processual: susceptibilidade de fazer extinguir a instância ou o pedido; os poderes para confissão implicam um conhecimento pessoal dos factos, donde, quem quer que seja que tenha poderes para confessar, tem de ter um conhecimento pessoal dos factos e, portanto, a confissão dos factos tem lugar a um nível substancial. H - Nos termos do art. 147.º do C.P.C., tendo em conta que a desconsideração das declarações da testemunha E é susceptível de influir no exame ou na decisão da causa, padece o despacho recorrido de nulidade, cuja declaração desde já se requer.
I - Pelo exposto, deve ser ordenada a re-inquirição de E, na qualidade de testemunha e, consequentemente, determinada a anulação de todos os actos processuais subsequentes, incompatíveis com a falta de prestação de tal depoimento.
J - O despacho recorrido viola o disposto nos arts. 478.º, n.º 2 e 518.º do CPC, pelo que mal andou o Tribunal recorrido ao considerar que E estava impedido de ser ouvido como testemunha, na medida em que podia depor como parte.
Nestes termos e melhores de direito que V. Ex.as doutamente suprirão, deve o presente recurso ser considerado procedente por provado e, consequentemente, revogado o despacho que não admitiu o depoimento de E como testemunha, substituindo-se por outro que ordene a respectiva inquirição, anulando-se todos os actos processuais subsequentes, incompatíveis com a falta de prestação de tal depoimento.
Decidindo assim farão Vossas Excelências JUSTIÇA.».
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A “Companhia de Construção e Fomento Predial C, Lda” respondeu ao recurso (em cujas contra-alegações não formulou conclusões), pugnando pelo seu improvimento, em termos que aqui damos por reproduzidos.
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Foi, na oportunidade, proferida sentença, a qual julgou improcedente a acção.
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O autor apresentou recurso jurisdicional dessa decisão, formulando as seguintes conclusões alegatórias:
«A. Vem o presente recurso interposto da sentença proferida no passado dia 18.01.2013, pela qual o Tribunal a quo decidiu absolver os Réus dos pedidos deduzidos na acção.
B. Com tal decisão não se pode a Recorrente conformar, por entender que a sentença recorrida padece de erros de julgamento quanto à matéria de facto, agravado pelo facto de o Tribunal a quo ter desconsiderado/ignorado documentos fundamentais juntos aos autos.
C. Acresce que, a decisão sobre a matéria de facto proferida nos presentes autos carece totalmente de fundamentação, não apresentando o Acórdão com a resposta à matéria de facto qualquer fundamento para o sentido das respostas aos quesitos, facto tão mais grave tendo em conta que o Tribunal a quo optou por dar a maior parte dos factos como não provados, sem que se vislumbre qual a razão ou em que meios de prova se suportou para considerar tais factos como não provados.
D. Na verdade, com todo o respeito, entende o Recorrente que o Tribunal a quo optou por analisar os factos que foram submetidos à sua apreciação e julgamento de uma forma simplista, desligando-se do que aconteceu no presente caso, bem como da realidade e da prática negocial então vigente em Macau, nomeadamente, em 1992, ano da celebração do negócio em apreço nos autos.
E. Tal realidade foi explicada ao Tribunal a quo pelas testemunhas ouvidas em sede de audiência de discussão e julgamento.
F. Entendendo ainda o Recorrente que diferente julgamento da matéria de facto se impunha até pela análise da prova documental junta aos autos e, inclusivamente, analisada em sede de audiência de discussão e julgamento.
G. Com todo o respeito, entende o Recorrente que o Tribunal a quo, tendo-se desligado da complexidade e das especificidades do caso em apreço, está a permitir que se consolide na Ordem Jurídica uma situação de injustiça extremamente lesiva, não só dos interesses do Recorrente, mas também de terceiros.
H. Consequência directa de tal facto - o incorrecto julgamento da matéria de facto - resulta que, no caso em apreço, verifica-se igual incorrecta subsunção dos factos ao direito.
I. Entendendo a Recorrente que, no mínimo, perante a prova produzida em julgamento, o Tribunal a quo deveria ter declarado a resolução do contrato promessa, bem como declarado verificados os pressupostos da impugnação pauliana e declarado a nulidade da transmissão por violação do pacto comissório, tudo nos termos que se passa a expor.
J. Com efeito, no caso em apreço, a falta de fundamentação das respostas do Tribunal a quo foi total, sendo que dúvidas não podem existir quanto à essencialidade das respostas, nomeadamente quanto aos quesitos 1.º, 2.º, 3.º, 4.º, 5.º, 6.º, 7.º, 8.º, 8.º-A, 12.º, 17.º, 19.º, 21.º, 23.º, 24.º, 25.º, 26.º, 28.º, 29.º, 32.º, 41.º e 43.º, em termos que, aliás, motivam a impugnação da matéria de facto, nos termos e para os efeitos do disposto do art. 599.º do C.P.C., nos termos que de seguida o Recorrente passará afazer.
K. Nestes termos, sendo a fundamentação da resposta à matéria de facto essencial, nomeadamente no que se refere aos quesitos 1.º, 2.º, 3.º, 4.º, 5.º, 6.º, 7.º, 8.º, 8.º-A, 12.º, 17.º, 19.º, 21.º, 23.º, 24.º, 25.º,26.º, 28.º, 29.º, 32.º, 41.º e 43.º para os efeitos do presente recurso, nos termos do art. 629.º, n.º 5 do CP.C, deverão os autos baixar ao Tribunal Judicial de Base, a fim de o Tribunal a quo fundamentar as respectivas respostas.
L. Quanto ao quesito n.º 1,relativo à celebração e existência do contrato promessa de 08.01.1992, considerando a amplitude do quesito, o qual se refere essencialmente à celebração e ao objecto do contrato promessa, entende o Recorrente que tal quesito só podia ter sido dado como provado.
M. Com efeito, o contrato-promessa encontra-se junto aos autos como doc. 1 junto com a petição inicial (cfr. fls. 14 a 17) e a sua celebração com a 1.ª Ré foi confirmada por todas as testemunhas.
N. Acresce que, em qualquer caso, tendo concluído que tal contrato não terá sido celebrado pela 1ª Ré - o que por mera cautela de patrocínio se pondera, sem conceder - o Tribunal a quo sempre deveria ter dado o quesito n.º 1 como provado, ainda que acrescentasse que tal contrato foi celebrado entre o Autor e F, em coerência, aliás, com a decisão do Tribunal quanto à resposta ao quesito n.º 9 da base instrutória (em termos que, aliás, motivaram reclamação contra a resposta à matéria de facto), em que foi dado como:
O. Quanto aos quesitos 1.º a 8.º-A da base instrutória, referentes à celebração e apuramento da vontade das partes quanto à celebração do contrato-promessa que está na génese dos presentes autos (cfr. doc. 1 junto com a petição inicial) tais factos deveriam ter sido considerados provados, com base depoimentos das testemunhas, bem como com base em prova documental junta aos autos, nos termos que se ora se reproduz: Isso é um costume do nosso sector. Naquela altura, só se identificava o patrão e não a Companhia. Por exemplo, Casino Lisboa, todos nós sabemos que na realidade tem vários donos, mas nós só reconhecemos o Dr. G. E no terreno é da mesma forma, nós reconhecemos é F. Nós sabemos que ele representa a B.
A: No final de 1991/1992 era uma prática que os contratos fossem assinados com o representante e não em nome da própria sociedade. É assim?
T: Sim. Nestes negócios, no início da década de noventa, nós não tínhamos bem conhecimento jurídico. Como o português era a língua oficial e nós não conhecemos essa língua, precisamos de, através de advogados... Nos costumes chineses só se confia na pessoa.”
P. Ou seja, a propósito da existência e objecto do contrato promessa objecto dos presentes autos, todas as testemunhas confirmaram o teor do quesito n.º 1 da base instrutória e a sua celebração entre o Autor e a 1.ª Ré, na qualidade de proprietária do imóvel.
Q. Antes de mais, que a intenção do Autor era celebrar o contrato promessa de compra e venda do imóvel com quem se afigurava o seu legítimo proprietário (conferir factos assentes a) e b)) - razão pela qual, aliás, o Autor pagou imediatamente a primeira prestação a título de sinal no valor de MOP$97.335.000,00 (conferir resposta do Tribunal a quo ao quesito n.º 9 da base instrutória) -, é incontornável e resulta até das regras básicas da experiência e do senso comum.
R. Pelo que a resposta do Tribunal a quo, nomeadamente, aos quesitos 3.º e 4.º da base instrutória é verdadeiramente incompreensível, não tendo qualquer correspondência com a realidade, nem com o que foi expressamente referido pelas testemunhas em sede de julgamento.
S. Entendendo o Recorrente que, independentemente do que foi referido pelas testemunhas, os quesitos 3.º e 4.º da base instrutória sempre deveriam ter sido dado como PROVADOS, até porque se tratam de factos notórios (cfr. art. 433.º do C.P.C.) ou susceptíveis de prova por presunção (cfr. arts. 342.º e 344.º, ambos do Código Civil).
T. Quanto aos restantes quesitos ora em análise, das respostas do Tribunal (embora não fundamentadas) aos quesitos 5.º, 41.º e 43.º da base instrutória parece resultar que o Tribunal a quo valorou unicamente as datas das inscrições no registo comercial de Hong Kong relativos à aquisição de 99% das quotas por F e da sua nomeação para o cargo de administrador da B, nos termos que resultam dos documentos juntos como Docs. 11 e 12 da contestação da 2ª Ré.
U. Ora, é sabido que, em relação aos actos em referência aquisição da qualidade de sócio e nomeação de administrador da sociedade - o registo não é constitutivo de direitos, visando apenas conferir publicidade a tais actos.
V. Nada impede - como não impediu -, que F se apresentasse e já actuasse aos olhos de todos como legítimo representante da B, a 1ª Ré, mesmo antes de tal facto se encontrar inscrito no registo.
W. Ou seja, dos referidos documentos resulta inequivocamente que antes da data de inscrição no registo comercial da aquisição de acções correspondentes a 99% do respectivo capital, bem como da inscrição da nomeação como administrador, F já se intitulava e agia aos olhos de toda a gente como “dono” e legítimo representante da 1.a Ré.
X. Facto igualmente aceite e reconhecido por toda a gente, inclusivamente pela 2.ª Ré, a qual, antes das datas inscritas no registo comercial, já passava cheques à ordem de F (ao abrigo do contrato de cooperação de fls. 794 a 796), já aceitava livranças assinadas por F, tendo sido com F que assinou o próprio contrato de desenvolvimento e cooperação, ao abrigo do qual emprestou dinheiro à 1ª Ré (fls. 794 a 796).
Y. Ou seja, no caso, verifica-se que há uma total confusão entre a pessoa de F e a B, a 1ª Ré.
Z. Pelo que, considerando o depoimento das testemunhas, bem como dos documentos agora mencionados, entende o Recorrente que os quesitos 1.º a 8.º-A da base instrutória só poderiam ter sido dados como PROVADOS.
AA. Pelo exposto, perante a prova produzida em audiência e acima referida, bem como da análise dos documentos juntos aos autos, o Tribunal a quo só podia ter dado como provados os quesitos 1.º a 8.º-A da base instrutória, requerendo-se assim a Vossas Excelências que seja modificada a matéria de facto no sentido de tais factos passarem a ser dados como PROVADOS.
BB. Quanto ao quesito 12.º da base instrutória, relativo à interpelação do Autor à Ré e dado como não provado pelo Tribunal a quo, a respectiva prova resulta da prova testemunhal, a prova de tal facto resulta das declarações das seguintes testemunhas: com efeito, se a 1.ª Ré perdeu a titularidade do imóvel em virtude das transmissões referidas nos quesitos 14.º e 15.º da base instrutória, naturalmente, passou a encontrar-se impossibilitada de iniciar quaisquer obras, a curto, médio ou longo prazo.
CC. Tratando-se de um conclusão necessária e que resulta por inerência da prova das transmissões do imóvel para a esfera jurídica da 2.º e da 3ª Rés, o quesito 17.º da base instrutória teria necessariamente que ser dado como PROVADO.
DD. Quanto ao quesito 19.º da base instrutória - “apesar da celebração do contrato referido no art. 14.º, nem a 1.ª Ré teve a intenção de alienar o direito, nem a 2.ª Ré pretendeu adquiri-lo” entende o Recorrente que, perante o circunstancialismo que envolveu tal aquisição por parte da 2.ª Ré, tal facto deveria ter sido dado como Provado.
EE. Com efeito dúvidas não podem existir que a 2.ª Ré adquiriu o imóvel em apreço nos presentes autos (declarando a respectiva aquisição pelo valor de MOP$52.118.000,00), fazendo negócio consigo mesmo, tendo a escritura pública de 30.10.2003 sido outorgada com base na procuração irrevogável de 02.04.1992.
FF. É o que resulta dos documentos juntos como does. 2 (procuração irrevogável) e 18 (escritura pública de 30.10.2003) juntos com a contestação da 2.ª Ré, bem como da resposta aos quesitos 14.º e 36.º e 51.º dados como provados, ou seja, pela consideração da prova documental junta aos autos, resulta que, no caso, a 2.ª Ré procedeu à transmissão do imóvel a seu favor, fazendo negócio consigo mesma.
GG. A 1.ª Ré “não foi perdida, nem achada” neste negócio, não foi consultada a propósito do momento da respectiva transmissão e, muito menos, sobre o respectivo valor.
HH. O que significa que, tendo o Tribunal a quo dado como provado a confissão de dívida da 1.ª à 2ª Ré, no valor de HKD$243.000.000,00, tal significa que, não só a 1.ª Ré não recebeu qualquer valor como ainda ficou em dívida para com a 2.ª Ré, no valor aproximado de HKD$190.882.000,00 (sobre o qual, eventualmente, a 2.ª Ré ainda exigiria juros à taxa convencionada - cfr. resposta ao quesito 35.º da base instrutória).
II. Pelo exposto, tendo em conta os documentos juntos aos autos, bem como a resposta do Tribunal a quo aos quesitos 14.º, 34.º/35.º e 51.º da base instrutória, entende o Recorrente que o quesito 21.º da base instrutória deverá ser dado como PROVADO, porquanto, não só a 1.ª Ré não recebeu qualquer preço pela transmissão do imóvel, como - em bom rigor - ainda terá permanecido em dívida para com a 2.º Ré.
JJ. Quanto aos quesitos 23.º, 26.º e 32.º da base instrutória que foram todos considerados como Não Provados, entende a Recorrente que tais factos resultaram claramente demonstrados em sede de audiência de julgamento, quer com base nas declarações das testemunhas, quer com base na prova documental junta aos autos e que se passa a identificar.
KK. Pelo exposto, entende o Recorrente que, da análise dos referidos documentos, dúvidas não podem existir que quer a 2ª Ré, quer a 3ª Ré tinham perfeito conhecimento da situação do imóvel em apreço nos presentes autos, pelo que necessária e inelutavelmente a sua conduta iria causar prejuízos a todos aqueles que previamente celebraram contratos para aquisição das fracções, onde se inclui o Recorrente.
LL. Impondo-se, consequentemente, também urna correcção na resposta ao quesito 27.º da base instrutória, de forma a incluir a 3ª Ré (“Provado que a 2.ª Ré e a 3.ª Ré sabiam da existência de promessas de venda …”), o que, desde já e para os devidos efeitos legais, o Recorrente igualmente requer a Vossas Excelências.
MM. Assim, tendo em conta os depoimentos das testemunhas acima destacados, bem corno o teor dos documentos de fls. 797 e ss. e de fls. 794 a 796 dos autos, entende o Recorrente que os quesitos 23.º, 26.º e 32.º da base instrutória só poderiam ter sido dados todos corno PROVADOS.
NN. Quanto ao quesito 24.º da base instrutória - “Com esses actos impossibilitou o cumprimento da promessa pela 1ª Ré celebrada” - Não Provado, a resposta do Tribunal a quo ao dar o referido quesito corno não provado é, urna vez mais, verdadeiramente incompreensível.
OO. As testemunhas confirmaram tal facto, nomeadamente as testemunhas H e I, mas trata-se, mais uma vez, de um quesito que encerra urna conclusão de direito.
PP. Com efeito, se a 1ª Ré perdeu a titularidade do imóvel em virtude das transmissões referidas nos quesitos 14.º e 15.º da base instrutória, naturalmente, deixou de ser possível o cumprimento o contrato promessa celebrado com o Autor e ora Recorrente, o qual, por sua vez, deixou igualmente de poder requerer a execução específica do contrato.
QQ. Tratando-se de um conclusão necessária e que resulta por inerência da prova das transmissões do imóvel para a esfera jurídica da 2.ª e da 3.ª Rés, o quesito 24.º da base instrutória teria necessariamente que ser dado como PROVADO.
RR. Quanto ao quesito 25.º da base instrutória - “Diminuindo os bens da 1.ª Ré” - entende o Recorrente que só pode ter ficado a dever-se a lapso do Tribunal a quo ter considerado tal facto como não provado, tal como resulta das respostas positivas aos quesitos 30.º e 31.º da base instrutória.
SS. Com efeito, se o Tribunal a quo deu como provado - como se impunha - que o imóvel em apreço nos presentes autos era o único bem de que dispunha a 1.ª Ré, a qual não era titular de quaisquer outro bens susceptíveis de penhora, é claro que as transmissões do imóvel para a 2.ª e 3.ª Rés diminuíram (esvaziaram mesmo!) o património da 1.ª Ré.
TT. Tratando-se de um conclusão necessária e que resulta dos factos que o próprio Tribunal a quo considerou provados em resposta aos quesitos 30.º e 31.ºda base instrutória, entende o Recorrente que o quesito 25.º da base instrutória teria necessariamente que ser dado como PROVADO.
UU. Ora, os relatórios de avaliação do imóvel, elaborados pela “Companhia de Construção e Fomento Predial J Lda.”, relativos aos anos de 2001 e 2002, juntos pela 1.ª Ré no início da sessão de julgamento de 08.06.2012, por si só, são aptos a comprovar os quesitos 28.º e 29.º da base instrutória, ou seja, que os preços declarados nas transmissões efectuadas pela 2.ª e 3.ª Rés são substancialmente inferiores ao valor de mercado do imóvel em Outubro de 2003 e Janeiro de 2004.
VV. Dos mesmos resulta claramente que o valor de mercado do imóvel ascendia ao valor de HKD$500,000,000.00, no ano de 2001, e de HKD$550,000,000.00, no que diz respeito ao ano de 2002.
WW. Sendo ainda que ambos relatórios mencionam o valor do imóvel após construção, donde se previa um valor de venda de HKD$855,002,325.00 (e lucros na ordem de HKD$153,383,729.40 até HKD$251,391,288.81), no que se refere ao ano de 2001, e um valor de venda de HKD$940,502,557.50 (e lucros na ordem de HKD$167,086,341.50 a HKD$274,628,592.60), no que se refere ao ano de 2002.
XX. Ora, tais relatórios são susceptíveis de pôr seriamente em causa o teor e a veracidade dos relatórios de avaliação do imóvel, elaborados pela “Companhia de Investimento e Fomento Predial K (Macau), S.A.R.L.”, em 30.08.2002, e pela mesma “Companhia de Construção e Fomento Predial J Lda.”, juntos pelas 2.ª e 3.ª Rés (conferir Doc. 26 do requerimento de prova apresentado pela 2ª Ré em 26.04.2011 e relatórios de avaliação do imóvel juntos pela 3. a Ré como Doc. 1 do requerimento de prova apresentado na mesmo dia, 26.04.2011).
YY. Atendendo ao teor do relatório da “Companhia de Investimento e Fomento Predial K (Macau), S.A.R.L.”, junto como doc. 26 do requerimento de prova da 2ª Ré, repare-se na salvaguarda que ao mesmo foi aposta.
ZZ. Depois, quanto aos relatórios da “Companhia de Construção e Fomento Predial J Lda.”, juntos pela 1.ª Ré em 08.06.2012 e ao confronto com o relatório, datado de 30.07.2002, elaborado pela mesma Companhia e que atribuiu ao imóvel o valor de MOP$60.000.000,00 junto aos autos pela 3.ª Ré, atenta a discrepância de valores, foi ordenada a inquirição dos respectivos autores.
AAA. Assim, na sessão de julgamento de 21.06.2012, foi ouvido L, da Companhia de Construção e Fomento Predial J Lda., o qual explicou que o Autor do relatório de avaliação do imóvel de 30.07.2002 foi elaborado pelo seu pai, o qual já se encontra falecido, tendo o mesmo confirmado o relatório de avaliação de 12.10.2002 que atribuiu ao terreno naquele imóvel o valor de HKD$500.000.000,00.
BBB. Pelo exposto, atentas as declarações prestadas pelas testemunhas, às discrepâncias que resultam dos relatórios periciais e à confirmação por L do teor do relatório de 12.10.2002 que atribuiu ao imóvel o valor de HKD$500.000.000,00, entende o Recorrente que os quesitos 28.º e 29.º da base instrutória só poderiam ter sido dados como PROV ADOS.
CCC. Por último, quanto aos quesitos 41.º e 43.º da base instrutória - “Provado que no dia 2 de Abril de 1992, o F adquiriu a quota da sócia “M/ N Engeneering Development Co. Ltd:” e que “no dia 08 de Abril de 1992, o F aceitou a nomeação para o cargo de director da 1.ª Ré”, entende o Recorrente que, em coerência com o acima exposto sob o ponto 3.2., para onde, nesta sede, expressamente se remete, o Tribunal a quo não podia dar como provadas as datas em que F adquiriu a quota de 99% na B, nem a data em que aceitou a nomeação para o cargo de administrador.
DDD. Com efeito, tal como acima referido, em relação aos actos em referência - aquisição da qualidade de sócio e nomeação para o cargo de administrador da sociedade -, o registo não é constitutivo de direitos, visando apenas conferir publicidade a tais actos.
EEE. Nada impede - como não impediu -, F de se apresentar e de actuar já aos olhos de todos como “dono” e legítimo representante da B, a 1ª Ré, mesmo antes de tais factos se encontrarem inscrito no registo.
FFF. Pelo exposto, entende o Recorrente que tais factos devem continuar a ser dados como provados, eliminando-se, no entanto, as datas de aquisição da qualidade de sócio e de nomeação para o cargo de administrador, respectivamente.
Do Direito
GGG. Atenta a impugnação da matéria de facto nos termos e pelos fundamentos acima expostos, entende o Recorrente que, no caso, manifestamente se impõe a modificação da matéria de facto e, consequentemente, uma alteração da matéria de direito.
HHH. Assim, no mínimo, impõe-se a declaração de resolução do contrato-promessa e consequentemente devolução em dobro do valor entregue pelo Autor, ora Recorrente a título de sinal; uma revisão dos pressupostos da impugnação pauliana e, por último, a declaração de nulidade por violação do pacto comissório.
III. O contrato-promessa celebrado entre o Autor e a1ª Ré é oponível a esta última, B Investement Company, Ltd., B地產有限公司, pelo que, tendo a mesma sociedade incumprido a promessa, deverá restituir o sinal em dobro, nos termos, designadamente, do previsto na segunda parte do número 2 do artigo 436º do Código Civil de Macau (CC).
JJJ. Deve, pois, em consequência, a 1ª Ré, ora Recorrida, B Investement Company, Ltd., B地產有限公司, ser condenada a pagar a quantia pecuniária de HKD$ 186.670,00, acrescida de juros de mora legais, vencidos e vincendos, conforme peticionado.
KKK. Ainda que, por mera hipótese que apenas se equaciona, o Tribunal ad quem venha a decidir não modificar a matéria de facto e/ou nem alterar o sentido de algum ou alguns dos quesitos ou venha considerar que o/os ou alguns quesitos se encontram devidamente fundamentados, não deixará de ser decretada a resolução do contrato-promessa entre o Autor e a 1ª Ré.
LLL. O incumprimento contratual do contrato-promessa deve, pois, ser imputado àquela (1ª Ré) e não ao F, F, como erradamente considerou o Tribunal a quo, pois foi com base nessa aparência que o Autor pagou a título de sinal, o montante de HKD$ 97.335.000,00 (resposta ao quesito 9º da douta base instrutória).
MMM. Não sendo possível a execução específica (pelo facto de a 1ª Ré ter já transmitido o imóvel à 2ª Ré e esta a uma sociedade que depois alienou o imóvel à 3ª Ré), resta ao Autor receber o duplum do sinal prestado em 8 de Janeiro de 1992, consequência da resolução do contrato (vide, também, os artigos 426º a 430º, todos do CC).
NNN. O contrato-promessa não deixa de ser oponível à 1ª Ré, ora Recorrida, B Investement Company, Ltd., B地產有限公司, pois,
OOO. O Autor confiou (boa fé, seja na vertente subjectiva, seja na vertente objectiva) que F, F, era já representante legal e/ou administrador e/ou procurador da 1ª Ré, ao tempo da celebração do contrato-promessa.
PPP. Neste sentido, conforme consta de fls. 794 a 796 dos autos, F, F assinara já em 18 de Março de 1992 em representação da 1ª Ré B地產有限公司, em que também interveio a 2ª Ré C建築置業有限公司, um contrato de Desenvolvimento e Cooperação relativo ao lote de terreno objecto dos presentes autos, tudo isto antes de F, F, ter registado a sua qualidade de sócio maioritário e de administrador da 1ª Ré.
QQQ. Outrossim, consta de prova documental cuja veracidade nunca foi posta em causa, que F, F, subscreveu a livrança de HKD$ 243.000.000,00 em 2 de Abril de 1992 em nome da 1ª Ré em favor da 2ª Ré - resposta ao quesito 37º da base instrutória e três cheques emitidos pela 2ª Ré em favor da 1ª Ré foram subscritos por aquela em nome/benefício de F, F, antes de 8 de Abril de 1992, data em que este foi nomeado administrador e sócio maioritário a 99% da 1ª Ré.
RRR. Pelo que não tem relevância na relação contratual entre o Recorrente e a1ª Ré, para efeitos da celebração do contrato-promessa, o facto de F, F ter sido nomeado administrador e sócio maioritário (apenas) em 2 de Abril de 1992 (resposta ao quesito 5º da base instrutória.
SSS. Por outro lado, sempre à luz do número 2 do artigo 261º do CC de Macau de 1999 em vigor, relativo à Representação sem poderes, prevê-se que os negócios jurídicos celebrados nestas circunstâncias não serão ineficazes, conforme se transcreve: “2. Contudo, o negócio celebrado por representante sem poderes é eficaz em relação ao representado, independente de ratificação, se tiverem existido razões ponderosas, objectivamente apreciadas, tendo em conta as circunstâncias do caso, que justificassem a confiança do terceiro de boa fé na legitimidade do representante, desde que o representado tenha conscientemente contribuído para fundar a confiança do terceiro.” - Número 2 do artigo 261º do CC
TTT. Assim, a 1ª Ré, “conscientemente contribuiu para fundar a confiança do terceiro”, o Autor, “na legitimidade do representante”, o F, F representando este aquela, e sendo aquela a promitente-compradora e não este último, como erradamente concluiu o Tribunal a quo.
UUU. A representada, 1ª Ré, ao celebrar com o Autor ocontrato-promessa na pessoa de F, F vê o negócio jurídico ser-lhe eficaz e oponível sem necessidade de ratificação do Autor, que estava e sempre esteve de boa fé, ao pretender celebrar a promessa em data relativamente próxima das escrituras de compra e venda, em ordem a revender as fracções autónomas (vide a resposta ao quesito 16º da base instrutória).
VVV. Estando o Recorrente sempre de boa fé (ética e psicológica, ou objectiva e subjectiva) e sendo claro que ala e 2ª Rés sempre consideraram F, F, como proprietário/dono e legítimo representante legal/administrador da 1ª Ré, O contrato-promessa e o negócio jurídico celebrado entre este último (representando a 1ª Ré) e o Autor é válido, eficaz e o incumprimento da promessa deve ser imputado na esfera jurídica da sociedade B地產有限公司, ora 1ª Ré.
WWW. Termos em que se requer que o negócio jurídico celebrado em 8 de Janeiro de 1992 entre o Autor e F, Fadministrador e representante da 1ª Ré, seja oponível a esta Ré, sendo a mesma condenada no pagamento do sinal em dobro, por incumprimento culposo do contrato promessa.
XXX. Igualmente se encontram verificados os requisitos para a procedência da impugnação pauliana, ao contrário do vertido na Sentença recorrida de fls. 1090 e 1090v, a saber (em especial, nos termos e para os efeitos do previsto nos artigos 605º, 607, 609º e 612º, todos do CC):
YYY. (a) o crédito do Autor é anterior aos negócios e transmissões realizadas entre as 1ª, 2ª e 3ª Rés; (b) verificação e prática de actos lesivos e impossibilidade para o Autor (credor) de obter a satisfação integral do seu crédito, bem como o agravamento dessa impossibilidade (o imóvel era e é o único bem da 1ª Ré); (c) a venda do imóvel assente na alínea A) da matéria assente é onerosa e existe má fé, desde logo, da 1ª Ré, ao incumprir a promessa celebrada em 8 de Janeiro de 1992, com o Autor, ora Recorrente; (d) As Rés, em especial a 2ª e 3ª Rés, sabiam da existência de um contrato-promessa celebrado entre o Autor e a1ª Ré. Sabiam, pois, aquelas, de que seria impossível a execução específica por parte do Autor e que a1ª Ré, alienado o único imóvel de que era proprietária, tornaria impossível o cumprimento da sua obrigação para com o Autor; (d) o aqui Recorrente tem direito à restituição dos bens na medida do seu interesse, podendo executar o património do obrigado à restituição, aplicando-se, com as devidas adaptações, o previsto no artigo 612º, bem como o número 2 do artigo 613º, ambos do CC, bem como ser aquele Autor/Recorrente autorizado à execução do património da 3ª Ré, que é a titular do imóvel;
ZZZ. De facto, a venda do imóvel da 1ª Ré para a 2ª Ré no valor de MOP$ 52.118.000,00 é muito inferior ao valor do mercado.
AAAA. O mesmo se diga da subsequente venda/alienação da 2ª Ré para a Sociedade de Investimento Predial Kai Limitada no montante de HKD$ 50.430.000,00.
BBBB. E, finalmente, a venda do imóvel para a actual proprietária do mesmo, a 3ª Ré, no valor de MOP$ 63.000.000,00, muito abaixo do real valor.
CCCC. Daí que tais vendas configurem autênticas simulações, como foi alegado e peticionado pelo ora Recorrente, o que aqui se reitera.
DDDD. Basta ver, por exemplo, que as avaliações do imóvel feitas pela sociedade “Companhia de Construção e Fomento Predial J Lda.”, documentos juntos pela 1ª Ré em Juízo em requerimento datado de 7 de Junho de 2012 consideravam o imóvel como valendo: em 12 de Outubro de 2001, o imóvel especificado na alínea A) da matéria assente estava avaliado em HKD$ 500.000.000,00; em 12 de Outubro de 2002, o mesmo imóvel (um ano depois), estava avaliado em HKD$ 550.000.000,00 - documentos 1 e 2 (de um total de 7 documentos) apresentados pela 1ª Ré.
EEEE. Não deixa de ser curioso que em requerimento apresentado pela 3ª Ré, a mesma sociedade (“Companhia de Construção e Fomento Predial J Lda.”), tenha considerado que o valor do imóvel, em 30 de Julho de 2002, seria agora de apenas MOP 60.000.000,00.
FFFF. Tal súbita discrepância ou “desvalorização” do preço do imóvel está igualmente evidenciada na própria Sentença recorrida, a fls. 1092v (página 18 da decisão recorrida).
GGGG. Assim, não faz qualquer sentido que um imóvel tenha sido avaliado em 2001 e em 2002 em mais de HKD$ 500.000.000,00, para em 2003 e 2004 apenas tivesse um valor de HKD$ 50.430.000,00 ou de MOP$ 63.000.000,00.
HHHH. Qual o motivo para a súbita desvalorização do imóvel em cerca de 10 (dez) vezes menos o seu valor, é algo que o Recorrente não compreende, daí a sua impugnação e recurso em termos de impugnação pauliana, simulação e violação do pacto comissório.
IIII. O valor matricial do imóvel apenas releva para efeitos do pagamento e liquidação do imposto de selo, e, no entanto, foi por este montante que em escritura pública de 8 de Janeiro de 2004, a 3ª Ré adquiriu o mesmo (!): MOP$ 63.000.000,00.
JJJJ. Todas estas sucessivas vendas ou alienações foram feitas por um valor muitíssimo inferior ao preço de mercado, sem sequer entrarmos na questão do valor que o imóvel poderia e teria após a sua construção e edificação, a qual, nunca chegou a acontecer - resposta ao quesito 13º - o devedor, ora 1 a Ré, “nunca chegou a iniciar a construção do prédio.”;
KKKK. Para efeitos da procedência da impugnação pauliana, confira-se igualmente a resposta ao quesito 27º da base instrutória - A 2ª Ré sabia da existência de promessas de fracções autónomas a construir no prédio referido em A) dos factos assentes, bem como a resposta ao quesito 30º da base instrutória - O direito referido em B) dos factos assentes é o único bem que a1ª Ré dispunha.
LLLL. Deve, pois, proceder a impugnação pauliana, executando-se o património da 3ª Ré, actual titular e proprietária do imóvel (artigos 609º e 613º, ambos do CC).
MMMM. Ainda e sem conceder, verifica-se a nulidade da transmissão do imóvel da 1ª Ré para a 2ª Ré, pela violação do Pacto Comissório (nos termos e para os efeitos do previsto no artigo 690º do CC).
NNNN. Nos termos do artigo 690º do CC: “É nula, mesmo que seja anterior ou posterior à hipoteca, a convenção pela qual o credor faz a coisa onerada no caso de o devedor não cumprir.”
OOOO. Ora, não só a I” Ré constituiu uma hipoteca a favor da 2ª Ré para o reembolso do empréstimo por aquela a favor desta no valor de HKD$ 243.000.000,00 - alínea C) dos factos assentes, como permitiu, celebrando-se uma escritura pública de compra e venda e uma procuração irrevogável a favor da mutuante, 2ª Ré, esta vendeu ou transmitiu o imóvel constante da alínea A) dos factos assentes pela quantia de MOP$ 52.118,00 a si própria, por negócio consigo mesmo resposta ao quesito 51º da base instrutória.
PPPP. A 2ª Ré depois alienou o imóvel à Sociedade de Investimento Predial O Limitada, na quantia pecuniária de HKD$ 50.430.000,00, que por sua vez vendeu o imóvel à 3ª Ré, no valor de MOP$ 63.000.000,00 - resposta ao quesito 56º da base instrutória e Alínea D) da matéria de facto assente.
QQQQ. A dilação no pagamento facultado pela 2ª Ré à Ia Ré para pagamento do empréstimo foi obtido claramente de uma forma usurária, aproveitando uma situação de dependência, ligeireza, enfraquecimento e de fraqueza da 1ª Ré para com a 2ª Ré, tendo esta obtido ou registo de uma hipoteca em seu favor sobre o imóvel e depois feito coisa sua, ao bem onerado, num montante de MOP$ 52.118.000,00, obtendo-se um benefício claramente injustificado e excessivo em favor da 2ª Ré, em detrimento do Autor (e mesmo da 1ª Ré).
RRRR. Inferior ao valor do imóvel e inferior ao sinal passado e pago pelo Autor à 1ª Ré.
SSSS. O negócio é, pois, nulo (designadamente, nos termos do número 2 do artigo 273º, bem como dos artigos 274º, 275º, 279, 282º e 283º, todos do CC, bem como, ainda, indirectamente, nos termos no número 4 do artigo 1073º do mesmo diploma legal).
TTTT. O valor da alienação que aqui releva é o valor da alienação do imóvel de MOP$ 52.118.000,00 em com base em procuração irrevogável conferida/ outorgada pela Ia Ré à 2ª Ré em 2 de Abril de 1992, que permitiu a esta última ter os mais amplos poderes sobre o imóvel, nomeadamente para dispor do dito imóvel, bem como de poderes para a prática de negócio consigo mesmo, conforme teor de fls. 69 a 73 respostas aos quesitos 14º, 36º e 51º, todos da base instrutória.
UUUU. Nem se diga, como faz a Sentença recorrida, que se deve contabilizar o juro por 9 (nove anos), entre 1994 e 2003, considerando, hipoteticamente, que a dívida da 1ª Ré para a 2ª Ré ascenderia a HKD$ 243.000.000,00 (dívida constante de escritura a fls. 65 a 68 dos autos - resposta ao quesito 34 o da base instrutória), ascendendo o montante total a HKD$ 560.612.317,81, incluindo os juros - cfr. o teor de fls. 1092 da douta Sentença, aqui posta em crise.
VVVV. Estes amplos poderes que permitem à 2ª Ré, a alienação a si mesmo do imóvel já onerado com uma hipoteca (no caso da 1ª Ré não cumprir a “dívida para com a 2ª Ré”), configuram uma violação do pacto comissório.
WWWW. Nestes autos, além da taxa de juro de 14,4%, acordada entre a 1ª Ré e a 2ª Ré, taxa de juro válida ainda que excessiva, é manifesto que a venda do imóvel a si mesmo por parte desta última por MOP$ 52.118.000,00 era um valor manifestamente inferior ao valor real e de mercado do imóvel.
XXXX. São razões de ordem pública e de protecção do tráfico e do comércio jurídico que obstam a que se permita a um credor pignoratício ou hipotecário fazer sua a coisa onerada, no caso do devedor incumprir, bem como na consignação de rendimentos (artigos 661º, 674º e 690º, todos do CC).
YYYY. O baixíssimo valor monetário em que a 2ª Ré adquiriu o imóvel através de negócio consigo mesmo, aliado à hipoteca registada em 10 de Abril de 1992, para garantir um empréstimo no montante de HKD$ 243.000.000,00, tendo aque1ª Ré feito do bem onerado coisa sua, alienando-o posteriormente, configura uma violação do pacto comissório.
Termos em que, e com o douto suprimento de V. Ex.as, deverá o recurso interposto ser declarado totalmente procedente e, em consequência, ordenada a revogação da sentença recorrida.
Decidindo assim farão Vossas Excelências JUSTIÇA!».
*
Sem apresentar “conclusões”, contra-alegou a ré “Companhia de Construção Fomento Predial C, Lda.”, em termos que aqui se dão por reproduzidos.
*
Na sua resposta ao recurso, a 3ª ré “Companhia de Desenvolvimento Imobiliário D Limitada”, contra-alegou nos seguintes termos conclusivos:
*
«1- Feito o julgamento da matéria de facto o Autor não logrou provar que tinha celebrado algum contrato promessa com a 1ª Ré.
2- Feito o julgamento da matéria de facto o Autor não logrou provar os requisitos previstos para a verificação de simulação dos negócios jurídicos impugnados.
3- Como também não logrou provar a verificação dos requisitos legais previstos para o instituto da impugnação pauliana.
Não restam dúvidas de que os argumentos utilizados pelo Recorrente são contrários aos factos provados e são desprovidos de fundamentação idónea.
Pelo que, o Tribunal ad quem deve julgar improcedente todas as alegações dos recorrentes e manter a decisão sob censura.
Pelo exposto e sem necessidade de mais considerações, deverá o presente recurso ser julgado improcedente, por não provado, e, consequentemente confirmar-se a decisão proferida pelo tribunal a quo com todos os efeitos legais».
*
Cumpre decidir.
***
II - Os Factos
Do 1º recurso
1 - Consta dos autos uma procuração passada pelo autor a E, através da qual a este conferiu poderes para receber intervir nas acções respeitantes ao lote 133, incluindo o de receber citações e notificações, transigir do objecto da acção e desistir do pedido e da instância (fls. 22 e tradução a fls. 15/16 do apenso “traduções”).
2 - O M.mo Juiz proferiu o seguinte despacho:
«Uma vez que da procuração de fls. 22 passada pelo Autor a favor de E consta que foram conferidos poderes gerais a este para transigir e desistir do pedido ou da instância na presente acção, o mesmo não pode depor como testemunha nos termos do artigo 518 e da segunda parte do artigo 478º, nº2, do CPC.
Tendo em conta o expendido e o disposto no artigo 536º do CPC, decide-se não admitir o depoimento de E como testemunha não sendo atendidas as declarações já prestadas pelo mesmo» (fls. 81).
*
Do recurso da sentença
A sentença deu por provada a seguinte factualidade:
«Da Matéria de Facto Assente:
- O terreno sito na Avenida XX, Lote XX encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº 1XXX2, a folha 184v do Livro B36 (alínea A) dos factos assentes).
- Por inscrição sob o nº 8XXX2 da C.R.P., era registada a favor da 1ª Ré O direito de concessão por arrendamento do prédio mencionado em alínea A) (alínea B) dos factos assentes).
- Por registo de 10 de Abril de 1992, a 1 a Ré constituiu hipoteca a favor da 2ª Ré, sob o prédio referido em A) dos factos assentes para garantir o reembolso do empréstimo no montante de HKD$243,000,000 (alínea C) dos factos assentes).
- Por escritura de 8 de Janeiro de 2004, a Sociedade de Investimento Predial O, Limitada, munida da procuração passada pela 2ª Ré de 19 de Dezembro de 2003, em sua representação, declarou vender à 3ª Ré, que esta declarou adquirir o prédio referido em A) dos factos assentes pelo preço de MOP$63.000.000,00 (alínea D) dos factos assentes).
*
Da Base Instrutória:
- O F desde 2 de Abril de 1992 é o sócio maioritário e administrador da 1 a Ré na qual é detentora de 99% do respectivo capital social (reposta ao quesito da 5º da base instrutória).
- Em 8 de Janeiro de 1992, data de celebração do contrato junto a fls. 14 a 16, o Autor entregou a primeira prestação do preço, no montante de HKD$97.335.000,00, ao F. (reposta ao quesito da 9º da base instrutória).
- Por despacho de 8 de Novembro de 1995, a Direcção dos Serviços de Solos, Obras Públicas e Transportes aprovou o projecto para a construção do prédio cujas fracções autónomas foram objecto da compra e venda prometida, tendo, consequentemente, a respectiva licença de obras sido emitida em 9 de Novembro de 1995 (reposta ao quesito da 10º da base instrutória).
- A construção do prédio nunca chegou a iniciar-se (reposta ao quesito da 11 º da base instrutória).
- A 1 a Ré nunca chegou a iniciar a construção prédio (reposta ao quesito da 13º da base instrutória),
- Em 30 de Outubro de 2003, a 1ª Ré celebrou com a 2ª Ré uma escritura pública de compra e venda através da qual a primeira declarou vender à segunda e esta declarou comprar o prédio referido em A) dos factos assentes (reposta ao quesito da 14º da base instrutória).
- E, posteriormente, em 8 de Janeiro de 2004, a 2ª Ré, por sua vez, celebrou com a 3ª Ré uma escritura pública de compra e venda através da qual a primeira declarou vender à segunda e esta declarou comprar o mesmo prédio (reposta ao quesito da 15º da base instrutória).
- A intenção do Autor é revender as fracções prometidas, foi sempre sua preocupação que as escrituras de compra e venda pudessem ser celebradas em data relativamente próxima daquela em que foi assinada a promessa (reposta ao quesito da 16º da base instrutória).
- O Autor perdeu o interesse na prestação por parte da 1ª Ré (reposta ao quesito da 18 º da base instrutória).
- A 2ª Ré sabia da existência de promessas de venda das fracções autónomas a construir no prédio referido em A) dos factos assentes (reposta ao quesito da 27º da base instrutória).
- O direito referido em B) dos factos assentes é o único bem de que a 1ª Ré dispunha (reposta ao quesito da 30º da base instrutória).
- A 1ª Ré não é titular de quaisquer outros bens susceptíveis de penhora (reposta ao quesito da 31 º da base instrutória).
- Por escritura de 2 de Abril de 1992 celebrada entre a 1ª e a 2ª Rés, aquela confessou-se devedora da desta da quantia de HKD$243.000.000,00 cujo teor constante no documento a fls. 65 a 68, que aqui se dá por integralmente reproduzido (reposta ao quesito da 34º da base instrutória).
- Foi estipulado que, verificando-se qualquer atraso no pagamento das quantias relativamente aos prazos estipulados, as quantias em dívida venceriam juros à taxa anual de 14,4%, não podendo o atraso exceder seis meses relativamente aos prazos estipulados, sob pena de a totalidade do crédito se considerar imediatamente vencido, para todos os efeitos legais (reposta ao quesito da 35º da base instrutória).
- Nesse mesmo dia, a 1ª Ré passou uma procuração irrevogável à 2ª Ré conferindo-lhe os mais amplos poderes sobre o imóvel referido em A) dos factos assentes, nomeadamente, poderes para dispor do dito imóvel, bem como poderes para a prática de negócio consigo mesmo, cujo teor consta no documento a fls. 69 a 73, que aqui se dá por integralmente reproduzido (reposta ao quesito da 36º da base instrutória).
- A 1ª Ré, no 2 de Abril de 1992, subscreveu uma livrança no valor de HKD$243.000.000,00 a favor da 2ª Ré (reposta ao quesito da 37º da base instrutória).
- A quantia de HKD$243.000.000,00, incluía o montante de HKD$162.000.000,00 correspondente ao capital emprestado e o de HKD$81.000.000,000 correspondente aos juros (reposta ao quesito da 38º da base instrutória).
- O montante de HKD$162.000.000,OO foi entregue pela 2ª Ré ao representante legal da 1ª Ré, ou a quem este indicou, em 7 tranches, a saber: o montante de HKD$16.200.000,00 em 14/3/92; o montante de HKD$16.200.000,00 em 18/3/92; o montante de HKD$29.600.000,00 em 2/4/92; o montante de HKD$31.990.000,00 em 2/4/92; o montante de HKD$60.000.000,00 em 2/4/92; o montante de HKD$10.000,00 em 2/4/92; e o montante de HKD$8.000.000,00 em 2/4/92 (reposta ao quesito da 39º da base instrutória).
- A “M & N Engeneering Development Co. Ltd.” era sócio e detentora de 99% do capital da 1ª Ré (reposta ao quesito da 40º da base instrutória),
- No dia 2 de Abril de 1992, o F, adquiriu a quota da sócia “M & N Engeneering Development Co. Ltd.” (reposta ao quesito da 41 º da base instrutória).
- No dia 8 de Abril de 1992, o F aceitou a sua nomeação para o cargo de director da 1ª Ré (reposta ao quesito da 43º da base instrutória).
- A 1ª Ré não devolveu o empréstimo referido na resposta ao quesito 34º à 2a no prazo fixado (reposta ao quesito da 44º da base instrutória).
- Por carta de 17/9/94, a 1ªRé, alegando que se encontrava em situação económica deficitária e não conseguiu pagar a dívida contraída à 2ª Ré, dentro do prazo fixado, pediu à 2ª Ré a prorrogação do prazo de pagamento por mais 75 dias (reposta ao quesito da 45º da base instrutória).
- Comprometendo-se, uma vez consentida a prorrogação dos 75 dias, em indemnizar a 2ª Ré, no montante de HKD$13.500.000,00, face aos prejuízos e transtornos causados à 2ª Ré (reposta ao quesito da 46º da base instrutória).
- A 1 a Ré prometeu pagar à 2ª Ré a totalidade do empréstimo em duas tranches e nos prazos seguintes (reposta ao quesito da 47º da base instrutória):
• até 29/10/94, pagaria o montante de HKD$30.000.000,00; e
• até 2/12/94, pagaria o montante de HKD$226.500.000,00.
- Caso a 1ª Ré não realizasse o pagamento dos referidos montantes no novo prazo fixado, a 2ª Ré ficava como plena liberdade de dispor do imóvel, bem como do edifício que nele iria ser implantado (reposta ao quesito da 48º da base instrutória).
- Por carta de 21 de Setembro de 1994, a 2ª Ré aceitou as condições oferecidas pela Ia Ré (reposta ao quesito da 49º da base instrutória).
- A 1ª Ré não saldou a dívida para com a 2ª Ré (reposta ao quesito da 50º da base instrutória).
- A escritura pública referida na resposta ao quesito 14º outorgada pela 2ª Ré que no uso dos poderes passados da procuração irrevogável mencionado na resposta ao quesito 36º, transmitiu a si própria o prédio referido em A) dos factos assentes pelo preço de MOP$52.118.000,00 (reposta ao quesito da 51º da base instrutória).
- Em 27 de Dezembro de 2002, a 2ª Ré, na qualidade de mandatária e munida de uma procuração referida na resposta ao quesito 36º firmou um acordo com a Sociedade de Investimento Predial O Limitada, nos termos do qual aquela prometeu, em nome da 1 a R., vender e a última, ou quem esta indicar, e esta prometeu adquirir, o terreno mencionado em A) dos factos assentes, pelo preço de HKD$5O.600.000,00, conforme o teor do documento de fls. 127 a 131 que aqui se dá por integralmente reproduzido (reposta ao quesito da 5r da base instrutória).
- A Sociedade de Investimento Predial O Limitada pagou à 2ª Ré a quantia de HKD$S0.430.000,00 (reposta ao quesito da 53º da base instrutória).
- Por escritura de 19 de Dezembro de 2003, a 2ª Ré passou uma procuração à favor da Sociedade de Investimento Predial O Limitada, na qual foram conferidos a este todos os poderes constante no documento a fls. 147 a 149 que aqui se dá por integralmente reproduzido (reposta ao quesito da 54º da base instrutória).
- A 3ª Ré é constituída pelos sócios familiares dos sócios da Sociedade de Investimento Predial O Limitada (reposta ao quesito da 55º da base instrutória).
- A quantia de HKD$S0.430.000,00 foi paga pela Sociedade de Investimento Predial O Limitada que indicou a 3ª Ré para figurar como compradora na escritura pública de compra e venda referida em D) dos factos assentes (reposta ao quesito da 56º da base instrutória)».
***
III - O Direito
1 - Questão prévia
Dispõe o art. 628º, nº2, do CPC que “os recursos que não incidam sobre o mérito da causa e que tenham sido interpostos pelo recorrido em recurso de decisão sobre o mérito só são apreciados se a sentença não for confirmada”. Compreende-se que assim seja: não fará qualquer sentido conhecer dos recursos interlocutórios apresentados por uma parte se ao recurso interposto da sentença pela outra (a parte vencida a final) o tribunal “ad quem” vier a negar provimento, confirmando a decisão final impugnada. Visto que a sentença, de alguma maneira, trouxe vencimento à esfera do recorrente, o êxito da sua posição não determina o conhecimento dos recursos por si interpostos no ínterim processual.
É diferente a situação – como a que aqui sucede – se o recurso da sentença é interposto pela mesma parte que havia recorrido de despachos intercalares. Em tal hipótese, aplica-se a regra do nº1 do artigo: todos os recursos interpostos serão apreciados segundo a ordem da sua interposição.
Assim, conheceremos em primeiro lugar, do recurso interlocutório, sem prejuízo, porém, do disposto no nº3 do artigo, isto é, sem prejuízo de se considerar que ele só será provido se ele a infracção eventualmente cometida puder ter tido influência no exame ou decisão da causa ou se o provimento tiver interesse para o recorrente.
*
2 - Do recurso interlocutório
Está em causa o despacho proferido em plena audiência de discussão, que recusou o depoimento da testemunha indicada pelo autor da acção, E.
Trata-se de pessoa a quem o autor tinha transferido poderes para o representar nas acções judiciais que dissessem respeito ao lote de terreno 133 melhor identificado nos autos, nomeadamente receber citações, notificações e, bem assim para transigir ou desistir da instância e do pedido.
O tribunal “a quo” considerou que, munida de tais poderes de representação, a pessoa indicada estava em condições de depor como parte. Consequentemente, entendeu que, ao abrigo do art. 518º do CPC, não podia depor como testemunha. Por isso não admitiu o seu depoimento nessa qualidade, com fundamento no art. 536º do mesmo Código.
*
Portanto, a questão é esta: podia tal pessoa depor como parte?
Veja-se o que diz o art. 478º a este respeito:
Artigo 478.º
(De quem pode ser exigido)
1. O depoimento de parte pode ser exigido de pessoas que tenham capacidade judiciária.
2. Pode requerer-se o depoimento de inabilitados, assim como de representantes de incapazes ou pessoas colectivas; porém, o depoimento só tem valor de confissão nos precisos termos em que os inabilitados possam obrigar-se e os representantes possam obrigar os seus representados.
3. Cada uma das partes pode requerer não só o depoimento da parte contrária, mas também o dos seus compartes.
No que respeita às pessoas colectivas, a lei é clara: não pode obter-se dos seus representantes senão apenas o seu depoimento como parte. Toda a jurisprudência vai, aliás, nesse sentido, numa posição que é perfeitamente razoável. Com efeito, se a pessoa está a representar organicamente a pessoa colectiva a que pertence, então tudo o que disser envolve, implica e responsabiliza a própria pessoa colectiva. Diz-se nesses casos que as declarações que prestar são imputáveis à pessoa colectiva. Ora, uma tal imputação haverá de ter repercussões negativas para a esfera da pessoa colectiva se, como parte, o representante da pessoa colectiva acabar de comprometer a sorte da acção pela via confessória.
Aliás, e como é sabido, o depoimento de parte tem uma essência probatória (Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, I, Parte Geral, tomo IV, pág. 430), isto é, tem por objectivo, precisamente, obter a confissão de factos desfavoráveis ao depoente e à parte a que pertence e o reconhecimento de factos favoráveis à parte contrária. Verdadeiramente, o depoimento de parte visa obter a confissão judicial (v.g., Ac. RL, 10/03/2000, Proc. nº 4840/00; Ac. RE, de 26/04/2005, Proc. nº 580/01; RL, de 21/04/2004, Proc. nº 972/2004; 8/06/2004, Proc. nº 1700/03; RC, de 12/06/2005, Proc. nº 2824/2005; RL, de 5/06/2007, Proc. nº 3129/2007).
A confissão (“declaração de ciência”, apud Castro Mendes, “Direito Processual Civil”, II, 697 e Mário de Brito, “Cod. Civil Anotado”, I, 470 e nota 843) tem, assim, uma marca “probatória” que o juiz avaliará no âmbito da sua actividade decisória. O depoimento de parte destina-se, por conseguinte, à obtenção do meio de prova a que se referem os artigos 345º e sgs. do CC. E se falamos de “meio de prova”, então é porque estamos no domínio de uma actividade jurisdicional que tem em vista, precisamente, a recolha de dados de facto necessários à subsunção deles ao direito a aplicar na sentença.
Isto é, admite-se o depoimento de parte nos casos em que as declarações prestadas acabam por ser contrárias à pessoa que as presta e decisivas no quadro da actividade julgadora que o tribunal terá que efectuar quando chegar o momento de decidir o litígio e de o tribunal se munir de elementos suficientes e imprescindíveis ao reconhecimento do direito (Anselmo de Castro, Direito Processual Civil Declaratório, III, pág. 325).
Porém, as coisas já não são necessariamente assim se o caso não é de representação orgânica de alguém em relação a uma pessoa colectiva, mas de representação voluntária.
Não detectámos jurisprudência local sobre o assunto. Todavia, na jurisprudência comparada, esbarrámos pelo menos uma vez com as palavras autorizadas de um aresto, que “a contrário”, acabou por admitir que, em tais hipóteses, o representante voluntário pode agir como testemunha do representado, desde que não disponha de poderes confessórios (Ac. STJ de 3/03/1972, Proc. nº 63871, in BMJ nº 115, pág. 2022071).
Ora bem. Se olharmos para o art. 518º do CPC logo se conclui que não pode ser testemunha quem possa depor como parte. E por outro lado, seguro é, também, que na qualidade de “representante”, a restrição ao depoimento como testemunha apenas está vocacionada a quem seja representante de pessoa colectiva (art. 478º). Olhados os termos da norma com um sentido que a letra nos impõe, então parece que, em todos os casos em que a representação não se destina a vincular uma pessoa colectiva, não haverá obstáculos ao depoimento do representante de pessoa singular, como era o caso. Trata-se de uma interpretação literal perfeitamente plausível à luz do art. 8º, nº2, do CC.
Mas, conquanto se admita dever-se ir mais longe na hermenêutica, isto é, admitindo que se tenha que alargar o âmbito subjectivo da norma, a ponto de se tentar alcançar o sentido da representação de indivíduo singular para indivíduo singular, nem mesmo assim pensamos que a solução divirja. Expliquemo-nos.
Será que com aquela representação voluntária, manifestada através da procuração de fls. 22, o procurador estava munido de poderes confessórios? Eis a questão.
Já nos fomos referindo à polémica atrás. A confissão, como se disse, significará a prestação em juízo (confissão judicial) ou fora dele (confissão extrajudicial) de declaração contrária aos interesses do declarante ou da pessoa que ele representa, favorecendo os interesses da parte contrária (art. 345º).
No que se refere à confissão judicial, o que é preciso é ver duas coisas: a) se os poderes realmente vinculam a representada e, se sim, em que termos; b) se o representante podia ter alguma intervenção na causa.
E quanto a isso, não nos parece que a dimensão dos poderes transmitidos seja de molde a acolher a decisão recorrida.
Com efeito, o que o representado aceitou foi assumir a posição que E viesse a tomar quanto à desistência do pedido ou da instância e, bem assim, quanto à transacção que pudesse realizar. Por outro lado, este tipo de poderes nunca lhe permitiria intervir na causa, senão apenas para lhe pôr termo nos moldes descritos. Isso, porém, não é o mesmo que reconhecer que podia intervir na causa. Ele não tinha poderes para intervir na causa na discussão substantiva do direito invocado. E, nesse caso, como pudemos ler em aresto da Relação de Lisboa, que aqui citamos a título de jurisprudência comparada, “Sem intervenção na causa em representação da parte, e, por isso, não podendo ser-lhe exigido depoimento de parte, não se verificava a arguida inabilidade para depor como testemunha” (Ac. RL., de 12/12/1991, Proc. nº 0032726)2.
O referido aresto, agora mesmo citado, disse ainda o seguinte: “Nem se “obtempere” que o que importa essencialmente é a qualidade de representante da parte, não o facto acidental de estar ou não no processo (RLJ 85/246).
Essa é consideração válida apenas, pelo seu fundamento - inabilidade de ordem moral -, no caso de representação orgânica ou necessária, supondo uma muito íntima ligação entre representante (geral) e representada (o caso era de gerente de sociedade representada no processo por outro gerente), sendo sem cabimento relativamente a quadro superior (director de seguros) de companhia seguradora, seu representante voluntário, por mais latos que sejam os seus poderes, incluindo os de confessar o pedido - não se sabendo em que causas, e nesta sem intervenção em representação da parte”.
Ora, esta possibilidade nunca poderia significar uma representação para intervenção no processo do ponto de vista da discussão do litígio e no sentido da obtenção de uma decisão que acudisse aos seus intentos.
Por outro lado, os poderes transmitidos apenas iriam vincular o representante no quadro de uma extinção da instância, pela via da transacção ou da desistência, nos precisos termos da procuração.
Ou seja, nem o quadro de vinculação, nem os poderes de acção ou intervenção na causa, deste ponto de vista, seria aptos a permitir uma representação em toda a linha, tal qual como se fosse parte. Não.
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Mas ainda resta, porventura, extrair as consequências da circunstância de a referida pessoa dispor de poderes para “transigir”. Será que esta possibilidade significará, ao menos tacitamente, poderes de confissão? Por exemplo, se numa acção em que o A pede indemnização de um milhão de patacas, uma transacção em que aceite a indemnização por 500 mil patacas equivalerá a confessar a inexistência do direito ao excedente?
Não nos parece. A transacção não envolve a apreciação do direito e, pelo contrário, é o afastamento do litígio da discussão sobre ele. A transacção é um contrato pelo qual as partes livremente (desde que não importe a afirmação da vontade relativamente a direitos indisponíveis) previnem ou terminam um litígio mediante recíprocas concessões (art. 1172.º, n.ºs 1 e 2, do CC). Já a confissão é um meio de prova, que consiste no reconhecimento que a parte faz da realidade de um facto que lhe é desfavorável e favorece a parte contrária (art. 345º do CC). Ora, para o confessar, é preciso que seja facto pessoal ou que o conheça (art. 479º, nº1, do CPC). Assim, se alguém, pela via da procuração, tiver poderes para transigir, tal não significa necessariamente que conheça os factos.
Quer dizer, enquanto a transacção não envolve a discussão do direito litigioso (visa, justamente, evitá-la), a confissão é, precisamente, um meio de prova acerca da realidade de um facto contra os interesses do confitente3. Neste sentido, “transigir” não é o mesmo que “confessar”. São modos distintos de agir e de efeitos diversos, tanto assim que a confissão espontânea por procurador carece de “autorização especial” (art. 349º, nº1, CC) enquanto a provocada pode obter-se em depoimento de parte ou em prestações de informações ou esclarecimentos ao tribunal (art. 3549º, nº2, CC). Embora o representante pudesse desistir ou transigir, isso apenas era um modo de extinguir a instância, sem que isso lhe conferisse o direito a discutir o direito substantivo invocado pelo autor (cuja existência, extensão ou natureza, o procurador até podia verdadeiramente ignorar) a ponto de poder fazer declarações confessórias.
Ora, se a referida pessoa não intervinha no processo como parte, nem tinha poderes expressos de representação voluntária para confessar, então não podia dizer-se que, por intermédio da procuração, o constituinte se pudesse auto-vinculasse aos actos de confissão que o procurador viesse a praticar. O que equivale a dizer que o procurador nunca podia exercer poderes de parte para confessar4 e, por isso, não podia ser obrigado a fazer depoimento de parte no processo. E se não podia exercer poderes confessórios de parte, então nada obstava a que pudesse depor como testemunha.
Esta é, tanto quanto nos é permitido concluir, e com o maior respeito por diferente opinião, a solução mais consentânea com os institutos em apreço.
*
Sendo assim, o recurso merece provimento, por considerarmos violado o disposto no art. 478º, nº2 e 518º do CPC. Em consequência disso, o processo haverá que baixar à 1ª instância a fim de ser retomada a sua tramitação na fase em que se encontrava no momento em que foi produzido o despacho impugnado, para se ouvir a pessoa na qualidade de testemunha, quanto aos factos sobre os quais ainda não pôde depor, e para o tribunal valorar as declarações prestadas aos factos sobre os quais já depôs, mas em relação às quais o tribunal entendeu expressamente dar como “não atendidas”.
Isto porque o depoimento pode ser útil ao desfecho da causa, uma vez que o contributo de mais uma testemunha pode fazer uma nova ou diferente luz sobre a matéria de facto essencial ao desfecho do litígio. Podendo a pessoa testemunhar, o tribunal superior não pode emitir juízos de prognose negativos acerca da relevância do seu depoimento e, portanto, do contributo que ele pode dar para o bom julgamento da matéria de facto, vale dizer, consequentemente para o bom desfecho da causa.
A razão de ser para esta conclusão prende-se, por outro lado, com a circunstância de o mesmo recorrente impugnar a matéria de facto considerada assente na 1ª instância (seria diferente o nosso entendimento, caso não tivesse sido posta em causa a matéria de facto no recurso da sentença final).
Decidido assim este recurso, fica prejudicado o conhecimento do recurso da sentença final, que, aliás, se não pode manter.
***
IV - Decidindo
Nos termos expostos, acordam em conceder provimento ao recurso jurisdicional interlocutório, revogando o despacho de fls. 81, anulando os processuais subsequentes, incluindo a própria sentença, de que foi interposto recurso, mas de que, por tal razão, se não toma conhecimento.
Custas pela parte vencida a final.
TSI, 23 de Janeiro de 2014

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José Cândido de Pinho
(Relator)

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Tong Hio Fong
(Primeiro Juiz-Adjunto)

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Lai Kin Hong
(Segundo Juiz-Adjunto)

1 Neste sentido, também, e com base no mesmo aresto, ver Viriato Lima, Manual de Direito Processual Civil, pág. 469)
2 Acórdão da RC, de 15/12/1971 disse que não interessa que o depoente tenha ou não interesse directo na causa, mas tão só se ele é ou não parte no respectivo processo; se o é, depõe como parte; se não o é, depõe como testemunha; “doutro modo, teríamos pessoas que não podiam depor como partes, por o não serem no processo, e não o poderiam fazer como testemunhas e estaríamos caídos nas dificuldades que o Código de 1939 quis evitar” (Proc. nº 4980, in BMJ nº 212, pág. 290).
3 V.g., Ac. STJ de 7/01/2010, Proc. nº 5298/06
4 José Lebre de Freitas, A Confissão no Direito Probatório, pag. 75
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