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Proc. nº 693/2013
Relator: Cândido de Pinho
Data do acórdão: 20 de Fevereiro de 2014
Descritores:
-Gerência
-Remuneração
-Deliberação de sócios
-Abuso de direito
-“Venire contra factum proprium”

SUMÁRIO:

I - Nos termos do art. 177º do Código Comercial de 1888, face ao art. 27º da Lei das Sociedades por Quotas de 1901, a remuneração do gerente podia ser atribuída na escritura social de constituição da sociedade ou determinada em assembleia-geral. E nos termos do art. 387º do Código Comercial de 1999 a remuneração deve ser fixada por deliberação dos sócios, reproduzida, posteriormente, em acta, que funciona como formalidade “ad probationem”.

II - A deliberação social não é nunca um contrato; é um acto jurídico unilateral, ainda que dele resultem efeitos jurídicos.

III - E é também, e em princípio, um acto expresso, ainda que, nalgumas ocasiões seja possível aceitar a produção de uma deliberação tácita ou implícita, mas nesse caso, a partir dos termos de uma outra deliberação expressa de onde aquela se possa inferir.

IV - Assim, não é possível que a referida deliberação sobre a fixação de remuneração de gerente seja substituída por um documento assinado por um dos sócios, através do qual se confere um valor remuneratório ao gerente.

V - A falta dessa deliberação, por violação de norma imperativa, pode acarretar nulidade de forma (falta o instrumento formal), que não de conteúdo (não é uma nulidade substancial), o quer torna a decisão final de fixação de remuneração meramente anulável e sanável por actos posteriores.

VI - Para se poder fazer prevalecer a doutrina exposta nos pontos anteriores, torna-se, porém, necessário que a matéria de facto adquirida no processo revele que as funções de gerente que a pessoa exerceu o foram no quadro de uma relação específica, com remuneração correspondente. Diferentemente, se os autos revelarem que, apesar das funções de gerente exercidas, o vínculo que o ligava à empresa era de mera relação laboral, então eventual destituição das funções de gerente, mesmo sem justa causa, não são resolúveis, do ponto da vista da indemnização, à luz do art. 387º do Código Comercial, que a estabelece em dois anos de exercício.

VII - O abuso do direito manifestado no “venire contra factum proprium”, assenta numa estrutura que pressupõe duas condutas da mesma pessoa, ambas lícitas, ainda que assumidas em momentos distintos e distanciadas no tempo, em que a primeira (o “factum proprium”) é contraditada pela segunda (o “venire contra”). É essa relação de oposição entre as duas que justifica a invocação do princípio do abuso do direito.













Proc. nº 693/2013

Acordam no Tribunal de Segunda Instância da R.A.E.M.

I - Relatório
A, divorciado, residente na Rua de XX, nº XX, XX Garden, Edifício XX, Bloco XX, XXºandar, “XX”, Taipa, intentou no TJB acção ordinária contra “B (Macau) – Serviços e Sistemas de Segurança”, Limitada”, com os demais sinais dos autos, pedindo a condenação desta no pagamento de uma quantificada indemnização, e bónus a que se achava com direito, em consequência de destituição sem justa causa do cargo que ocupava na administração da ré.
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Tendo o processo prosseguido a sua normal tramitação, veio na oportunidade a ser proferida sentença, que julgou improcedente a acção com a consequente absolvição da ré dos pedidos.
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Dessa sentença recorre o autor, em cujas alegações formula as seguintes conclusões:
«A. Nos autos ficou claramente provado que o Autor foi nomeado como Gerente Geral da Ré, que lhe foi fixada remuneração nessa qualidade, que o Autor exerceu o cargo com rigor e competência, sendo o único administrador executivo da Ré, tendo esse desempenho sido sempre objecto de grande apreciação e reconhecimento por parte da Ré, e que o Autor foi destituído do mesmo sem justa causa;
B. Segundo o artigo 11º do Código Civil, deve ser aplicado o regime actual à relação controvertida pois estamos perante uma norma em vigor que dispõe directamente sobre o conteúdo de certas relações jurídicas pelo que deve-se abstrair os factos que lhe deram origem aplicando-se pois às relações já constituídas que subsistam à data de entrada em vigor do novo regime;
C. Como resulta da matéria provada, a remuneração foi fixada e foi paga ao Autor na qualidade de Gerente Geral mas não obstante a clareza dos factos provados, o Tribunal a quo não foi capaz de extrair as consequências face à lei interpretando erradamente o artigo 177º do Código Comercial de 1888 no sentido de “Uma vez que a lei é clara no sentido de exigir uma previsão expressa no estatuto ou uma deliberação social para a válida fixação da remuneração dos administradores”;
D. Ao abrigo do anterior regime quer na aplicação do actual regime, não resulta da lei que a mesma exija uma deliberação social expressa para a válida fixação da remuneração dos administradores pelo que a interpretação dada a estas disposições não pode ter o sentido restrito, limitativo que lhe foi conferido na decisão recorrida;
E. Não se pode concluir que, tendo os sócios da Ré decidido nomear o Autor como Gerente Geral da Ré, tendo este sido registado como tal junto da Conservatória do Registo Comercial, tendo este representado a sociedade de forma individual na assinatura de diversos contratos, tendo sido o único administrador executivo da Ré em Macau, tendo a sua remuneração sido regularmente paga durante mais de 11 anos nessa qualidade, tendo a mesma sido revista e aumentada ao longo dos anos para essa mesma função, tendo ainda sido lhe pago um bónus pela mesma função (que também foi sendo periodicamente revisto e aumentado) e tendo naturalmente o pagamento dessa remuneração e bónus constado das contas anuais da sociedade sucessivamente aprovadas pelos sócios da sociedade, não se retirassem destes factos as inerentes consequências;
F. A lei aplicável fala em deliberação e não em acta expressa para o efeito, sendo incorrecta uma interpretação restritiva da letra da lei dado que da mesma não consta a referência a “expressa” (que foi erradamente acrescentada no acórdão recorrido) nem tão pouco qualquer outro requisito de forma ou de mérito relativo a essa mesma deliberação (que pode constar de qualquer outro acto ou fonte);
G. A interpretação teleológica conclui que a ratio desse normativo pretende assegurar que sejam os sócios a Autoridade última, única e exclusiva a decidir sobre a remuneração dos administradores - evitando assim qualquer outro órgão societário, que qualquer outra entidade ou individuo dentro da sociedade, que os próprios administradores se sobreponham aos sócios e usurpem esta competência. É essa a ratio também do actual artigo 387º, número 1 do Código Comercial de 1999;
H. Com conhecimento desta ratio da norma podemos assegurar a sua correcta aplicação - assegurar que sejam apenas os sócios a decidir sobre a remuneração dos administradores - a factualidade nos autos que respeita a um período de mais de 11 anos, demonstra à saciedade que os sócios da Ré aprovaram, por muitas e repetidas vezes, o cargo de administrador exercido pelo Autor e a remuneração auferida nessa qualidade;
I. O próprio Tribunal a quo pareceu antecipar o absurdo da conclusão afirmando que “a justiça do presente caso parece porém, obrigar-nos a ter em conta que o Autor exerceu efectivamente o cargo de gerente geral, recebia mensalmente uma determinada remuneração e foi destituído sem Justa causa; e, consequentemente, não dar muito relevo às mencionadas exigências legais e reconhecer uma indemnização ao Autor”;
J. Estamos perante uma situação de abuso do direito na modalidade de venire contra factum proprium (art. 326º do Código Civil), com vários requisitos quanto aos limites do direito: - é absolutamente objectiva; - pressupõe a boa fé e uma diligência mínima do ofendido; - e pressupõe sobretudo um excesso absurdo, um clamor de excesso no exercício (abusivo) do direito, de conhecimento oficioso e pode ser invocada a todo o tempo;
K. Confirmando-se a situação de abuso de direito, este tem efeitos variados na esfera jurídica do Autor do abuso quer sejam a “paralisação dos efeitos jurídicos do exercício desse direito” podendo “dar lugar à obrigação de indemnizar, à nulidade nos termos gerais do art.º 294 do CC; à legitimidade de oposição; ao alargamento de um prazo de prescrição ou de caducidade”, incluindo-se ainda, e, obviamente, a possibilidade da omissão de uma certa acta não pode ser invocada por quem a devia aprovar ... ;
L. O instituto do abuso de direito, tem todos os seus requisitos preenchidos no caso “sub judice” e constitui uma solução perfeitamente adequada para o litígio em juízo mas o aresto recorrido, resolveu imputar o abuso de direito ao próprio Autor, que (pasme-se!) “(...) tinha obrigação de saber que a sua remuneração não foi fixada em conformidade com a lei e se achar que a remuneração que recebia era a título de remuneração pela gerência, então devia ter exigido a sua fixação nos termos legais”;
M. O aresto recorrido descurou a matéria provada e extraiu conclusões em contradição com os fundamentos de facto (art. 571º, n.º 1 al. e) do CPC) - o Autor foi pago durante mais de 10 anos na qualidade de administrador (como ficou provado), em segundo porque a Ré e as suas sócias sancionaram e aprovaram repetidamente e anualmente esse cargo e remuneração quando (i) aprovaram as contas da sociedade, que incluíam a remuneração do Autor e os dividendos das sócias em virtude da sua boa administração e (ii) promoveram vários aumentos da remuneração e do próprio bónus do Autor (como também ficou provado);
N. Face a estes mesmos factos (provados) não podia a decisão recorrida absolver a Ré do seu abuso e inverter o ónus da prova para imputar ao Autor a passagem de uma deliberação que este, como administrador, nunca poderia votar, quando se verifica Abuso de Direito da Ré, na modalidade de Venire Contra Factum Proprium que conduz à impossibilidade de a mesma invocar a falta da acta que lhe cabia (e devia) passar - existindo clara omissão de pronúncia da sentença recorrida que não se pronunciou sobre este abuso (art. 571º, n.º1, al. d) CPC);
O. O Tribunal a quo não concluiu bem antes de mais porque vem alegar que o Autor se escudou no desconhecimento do vício quando tal nunca foi alegado pelo Autor, sendo que quem se escudou no desconhecimento do vício foi a Ré para se aproveitar da sua própria negligência (que nem cuidou de explicar), pois o vício da falta de deliberação (“acta”) expressa a fixar a remuneração do Autor apenas poderia ser sanado pelos sócios da sociedade e nunca pelo Autor;
P. Uma sociedade é constituída pelos seus sócios os quais tem diversos direitos e deveres, entre os quais o de nomear os seus administradores que podem ou não ser também sócios da sociedade, e de lhes fixar a sua remuneração (artigo 383º, 384º e 387º do actual regime e artigo 26º, 27º e 177º do anterior regime);
Q. O aresto recorrido padece de clara omissão de pronúncia (art. 571º, n.º1, al. d) CPC) ainda por não concluir, em sede de decisão final, de forma cabal e definitiva se a remuneração que o Autor recebeu ao longo dos anos foi a título de salário decorrente de uma relação laboral estabelecida entre as partes ou se foi a título de desempenho do cargo de Gerente Geral da Ré;
R. Não se pode enveredar pela dúvida de que a relação estabelecida entre a Ré e o Autor era uma relação laboral quando da factualidade dada como provada resulta claramente que o Autor desempenhava funções de Gerente Geral com os direitos e deveres daí decorrentes e como tal a sua remuneração era lhe atribuída no âmbito do desempenho desse cargo (nada tendo ficando provado quanto a uma possível e eventual relação laboral...);
S. A concluir-se como o Tribunal a quo, seria abrir um grave precedente pois estar-se-ia a avalizar a possibilidade de a Ré exigir do seu Gerente Geral o cumprimento dos vários deveres resultantes do cargo e que constam da lei e dos estatutos, as sacando-lhe as responsabilidades resultantes dos actos ou omissões por ele praticados, para depois e quanto aos deveres da Ré perante o Autor, enquanto seu Gerente Geral, inverter a sua posição e qualificá-lo como um mero trabalhador;
T. O facto da declaração referida na alínea E) dos factos assentes, ter sido subscrita pelo Senhor C, que não só era sócio da Ré como também representante da outra sócia da Ré, impõe que seja repensada a solução do presente caso, designadamente por força da boa fé, do princípio da aparência destinada a proteger a confiança dos terceiros que transaccionam com uma pessoa colectiva e essencialmente ao abrigo do principio do abuso de direito na modalidade de venire contra factum proprium;
U. Ainda que não haja uma “acta” da Assembleia Geral a fixar de forma expressa a remuneração do Autor, nunca esse facto poderá ser invocado pela Ré para se furtar, consequentemente, ao cumprimento das obrigações legais que sobre si impendem, até porque a vontade dos sócios da Ré (a deliberação) no que concerne à remuneração do A. pelo desempenho exclusivo das funções de Gerente Geral foi claramente demonstrada e documentada nos autos;
V. O incumprimento de uma determinada disposição legal aproveitaria assim e apenas ao próprio agente infractor, o que estaria, naturalmente, em clara contradição com o fim social de qualquer direito;
W. Deu-se como provado nos autos que em 15 de Outubro de 1997, o Senhor C subscreveu uma declaração que incluía o pagamento de um bónus anual, que a Ré aumentou em 2008 a percentagem a considerar para efeitos de bonificação anual para 30%, o qual não foi paga ao Autor;
X. Nos termos das contrapartidas e condições gerais para o exercício das funções de Gerente Geral pelo Autor, a percentagem de cálculo do bónus anual estaria sujeita a revisão periódica, tendo na última revisão em 2008 sido aumentada para 30% (sobre a remuneração base anual auferida pelo Autor como resulta do documento n. o 8 da petição inicial);
Y. Dúvidas não restam que tendo o Autor auferido em 2008 a remuneração anual de MOP1.149.200,00, tem direito ao bónus de 30% sobre esse montante, na quantia de MOP344.760,00.
Nestes termos e nos mais de Direito aplicáveis, deve o presente recurso ser julgado procedente, e em consequência determinada a revogação da decisão recorrida e a sua substituição por outra que determine a condenação da Ré tal como pedido pelo Autor, no pagamento das quantias de: (i) MOP2,298,400.00, a título de indemnização devida pela destituição do Autor, sem justa causa do cargo de membro do Conselho de Gerência da Ré; e (ii) MOP344,760.00, a título de bónus pelo desempenho das funções de membro do Conselho de Gerência relativamente ao exercício de 2008, tudo acrescido de juros à taxa legal título de bónus pelo desempenho das funções de membro do Conselho de Gerência relativamente ao exercício de 2008, tudo acrescido de juros à taxa legal em vigor, desde a data de destituição do Autor até ao efectivo e integral cumprimento de cada uma daquelas obrigações pecuniárias, só assim se fazendo JUSTIÇA!».
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A ré da acção respondeu ao recurso em termos que aqui se dão por reproduzidos para os devidos e legais efeitos.
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Cumpre decidir.
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II - Os Factos
A sentença deu por assente a seguinte factualidade:
«Da Matéria de Facto Assente:
- Por deliberação do Conselho de Administração da Ré realizada a 29 de Abril de 1997, o Senhor C foi nomeado como representante da sociedade “FPD B Group Limited” (alínea A) dos factos assentes).
- Nessa deliberação, ao Senhor C foram conferidos todos os poderes necessários para representar a “FPD B Group Limited” em todas as reuniões da Assembleia Geral da “B (Macau) - Serviços e Sistemas de Segurança, Limitada” (Ré), e aí discutir e votar relativamente a todos os assuntos constantes da respectiva ordem de trabalhos (alínea B) dos factos assentes).
- Por deliberação da assembleia geral extraordinária da Ré realizada no dia 26 de Setembro de 1997, o Autor foi nomeado como Gerente-Geral (alínea C) dos factos assentes).
- A nomeação foi registada junto da Conservatória do Registo Comercial e de Bens Móveis (alínea D) dos factos assentes).
- No dia 15 de Outubro de 1997, C, na qualidade de gerente “chairman” da Ré, subscreveu uma declaração na qual são definidas as contrapartidas e condições gerais para o exercício das funções inerentes ao cargo de membro do conselho de Gerência pelo Autor, cujo teor consta a fls. 73 a 76, que aqui se dá por integralmente reproduzido (alínea E) dos factos assentes).
- O Autor era o único administrador executivo da Ré, colocado permanentemente em Macau e exercendo o cargo na respectiva sede (alínea F) dos factos assentes).
- No dia 31 de Dezembro de 2008, ao Autor foi comunicada a sua destituição do cargo de gerente “chairman” no Conselho de Gerência da Ré pelo seu representante Sr. D, sem que alegasse qualquer causa (alínea G) dos factos assentes).
- Na altura, foi apresentada pela Ré ao Autor um contrato de revogação e de renúncia, com o teor constante a fls. 14 a 18, que aqui se dá por integralmente reproduzido (alínea H) dos factos assentes).
- O Autor recusou a assinar o documento mencionado em H) (alínea 1) dos factos assentes).
- Desde 1 de Maio de 1994, foi estabelecida uma relação laboral entre o Autor e a Ré (alínea J) dos factos assentes).
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Da Base Instrutória:
- Após várias actualizações ao longo dos anos, o Autor auferia no ano de 2008, a remuneração de MOP$1.149.200,00 (MOP$88.400,00 x 13) (resposta ao quesito da 2º da base instrutória).
- No âmbito dos poderes inerentes ao cargo de gerente-geral da Ré, o Autor assinou, em nome e em representação da Ré, individualmente, inúmeros contratos (resposta ao quesito da 3 º da base instrutória).
- O cargo desempenhado pelo Autor foi sempre objecto de grande apreciação e de reconhecimento por parte da Ré (resposta ao quesito da 5º da base instrutória).
- Tendo a Ré aumentado a percentagem a considerar para efeitos de bonificação anual do Autor de 22,5% para 30% para o exercício de 2008 (resposta ao quesito da 6º da base instrutória).
- Em Janeiro de 2009 o Autor deixou de prestar qualquer actividade para a Ré (resposta ao quesito da 6ºA da base instrutória).
- A Ré não deu qualquer quantia ao Autor a título do bónus pelo exercício de 2008 (resposta ao quesito 7º da da base instrutória).
- A Ré não deu qualquer quantia ao Autor a título da compensação por cessação da gerência (resposta ao quesito da 8º da base instrutória).
- No âmbito da relação referida em J) dos factos assentes, o Autor desempenhou vários cargos ao serviço da Ré, nomeadamente o de gerente-geral e recebido o seu salário (resposta ao quesito da 9º da base instrutória).»
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III - O Direito
1 - Da nulidade da sentença
Nas alegações de recurso, o recorrente suscitou a nulidade a que se refere o art. 571º, nº1, al. d), do CPC, por entender que o tribunal não se pronunciou sobre o abuso de direito na modalidade de venire contra factum proprium. Nulidade, ainda, em virtude de a sentença não ter concluído de forma cabal e definitiva se a remuneração que o recorrente recebeu ao longo dos anos foi prestada a título de salário como empregado da recorrida, se a título de remuneração como gerente desta mesma sociedade.
Sem razão, porém, com o devido respeito. Com efeito, a sentença não tratou a problemática do abuso de direito (trazida aos autos na resposta à contestação) na medida em que essa tarefa intelectual de fundamentação somente era necessária se o tribunal “a quo”, a partir do documento de fls. 73-76, isto é, se, face à declaração assinada pelo sócio C, tivesse concluído que a remuneração que o recorrente recebia era contrapartida do exercício das funções de gerente. Nessa hipótese, sim, justificava-se tratar dos efeitos desse documento, nomeadamente ponderar se ele constituía forma válida de conferir um direito remuneratório a título de gerente ao recorrente e se a atitude da recorrida em não extrair dele (documento) todos os seus efeitos (incluindo o indemnizatório “ex vi” da destituição do cargo) era ou não atentatória do princípio da confiança e se traduzia a figura do abuso de direito na vertente do venire contra factum proprium.
Nada disso se justificaria, porém, a partir do momento em que a sentença partiu dos elementos de facto dados como provados, principalmente dos que ilustravam que a remuneração que o recorrente recebia era a título de salário. Isso é o que resulta, por exemplo, da resposta negativa ao quesito 1º e da resposta ao quesito 9º, de onde se extrai claramente que o tribunal considerou provado apenas que a remuneração que o recorrente auferia não se destinava a contrapartida das funções de gerente. Efectivamente, se nesse artigo 9º da base instrutória foi perguntado se o salário que o recorrente auferia era referente à “qualidade de gerente”, a verdade é que tal correspondência não ficou demonstrada. De resto, também a resposta ao quesito 1º é igualmente esclarecedora no mesmo sentido. Perguntava-se, com efeito, se «A partir da nomeação aludida em C)…, o Autor foi sempre recompensado como membro do Conselho de Gerência da Ré», mas o quesito obteve resposta negativa de «Não provado».
Ou seja, uma vez que o tribunal apenas considerou provada a matéria ilustrativa de uma relação laboral submetida à disciplina do direito do trabalho - não uma relação de gerência sujeita ao Código Comercial no tocante à remuneração de gerência e ao efeito que decorre da sua destituição - também não tinha que se debruçar sobre o venire contra factum proprium, apenas justificável caso desse por provada a ligação jurídico-funcional “remuneração-gerência”. Isto é, só faria sentido ponderar se o não pagamento da indemnização a que alude o art. 387º do Código Comercial traduziria um comportamento da recorrida oposto ao anteriormente manifestado e gerador de confiança tutelável se, ao mesmo tempo, o tribunal achasse que o salário auferido ao longo da vida do contrato era para remunerar o exercício da gerência. Isso, porém, não ficou provado.
Provado ficou – e a sentença disse-o de forma bem assertiva – que o recorrente exerceu funções de gerência desde 1997 até princípios de 2008. Mas a sentença concluiu, mais uma vez de maneira a não deixar dúvidas, que a indemnização peticionada não era devida nos termos em que o foi, porque «…o Autor não logrou provar que tinha sempre sido recompensado como gerente geral da ré. Isso significa que a remuneração que o Autor recebeu ao longo dos anos podia ter sido a título de salário como foi já referido no despacho de fls. 164 a 165» (fls. 13 da sentença). Neste sentido, não é verdadeira a afirmação do recorrente de que a sentença não extraiu a conclusão acerca da qualidade em que vinha recebendo a sua remuneração.
Claro que a sentença terá ido para além do que era suposto ir, ao fazer uma incursão sobre o valor do documento/declaração de fls. 73-76. Na verdade, se o tribunal tinha feito anteriormente um julgamento da matéria de facto no sentido de não dar como provado que a remuneração era gerencial, mas simplesmente laboral no quadro de uma relação normal “empregador-empregado”, não valeria a pena estudar a validade do referido documento, porque isso era já tarefa jurídica. Quer dizer, saber se desse documento era possível extrair uma remuneração gerencial válida era exercício de direito, era tarefa de subsunção ao quadro legal. Mas, para isso se fazer seria necessário que o tribunal desse por provado o facto respectivo: que o recorrente recebia uma remuneração de gerência com assento nesse documento. Como tal facto não foi considerado assente, também não havia razão para a sentença discorrer sobre a valia do seu conteúdo no ponto em que ele (documento) estabelece uma remuneração.
Nesse aspecto, a sentença incorreu num vício que devia ter evitado, que foi o de estudar a validade do documento no segmento remuneratório, como se a remuneração do recorrente se tivesse baseado nele. Mas, enfim, como ao mesmo tempo a sentença deixou expresso que os factos provados não demonstram que a remuneração do recorrente não era a correspondente à gerência por si exercida, fechou por essa via a porta à eventualidade de uma fundamentação contraditória.
Tudo para dizer que nenhum dos fundamentos invocados para a nulidade procede.
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2 - Do mérito da sentença
1. - Seguindo o percurso lógico da fundamentação da sentença sob censura, não encontramos qualquer motivo para a nulidade invocada. Esperamos ter convencido as partes das razões da afirmação vazada no ponto anterior.
Mas enquanto isto o dizemos, deparamo-nos com uma dificuldade. É a seguinte:
Por um lado, está assente na alínea E) dos factos assentes que “No dia 15 de Outubro de 1997, C, na qualidade de gerente “chairman” da Ré, subscreveu uma declaração na qual são definidas as contrapartidas e condições gerais para o exercício das funções inerentes ao cargo de membro do conselho de Gerência pelo Autor, cujo teor consta a fls. 73 a 76, …”. Quer dizer, estando assente que o recorrente fora nomeado gerente por deliberação de 29/04/1997 (alínea A) dos factos assentes), assente também está que, na sequência da referida “declaração”, o recorrente passou a auferir uma certa importância a título de remuneração como gerente e que, por causa desse exercício, também receberia um bónus (prémio) anual.
Sendo assim, à primeira vista parece incongruente que o tribunal tenha aceitado que o recorrente viu aumentado o referido bónus (que tinha aparentemente raiz no referido documento) e não tenha considerado que a remuneração que recebia tenha assentado no mesmo documento!
Ainda assim, na medida em que o tribunal, nas respostas que deu aos artigos da base instrutória, foi eliminando as dúvidas ao retirar delas as referências directas ou indirectas ao documento de fls. 73-76 (por exemplo, ver a resposta ao quesito 2º e 9º) e tendo em conta ainda que não se provou que a relação laboral referida em J) cessou com a nomeação do recorrente para gerente-geral (resposta ao qusito 11º), fica mais livre o caminho para se poder concluir que, pese embora o exercício das funções de gerente, o salário que recebia mensalmente não era devido a título de contrapartida remuneratória dessas funções, mas a título de empregado da sociedade recorrida no quadro de uma relação normal laboral submetida à disciplina do regime jurídico laboral.
Se este quadro de facto não corresponde à situação real é coisa que não sabemos, mas que não está em causa, por falta de impugnação nos termos do art. 599º do CPC. Temos, pois, que os dar como correctamente julgados, ainda que aparentemente fique no ar a ideia de que nem tudo estará perfeitamente evidente.
Avancemos, pois.
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2. - Considerando ter sido destituído do cargo de gerente-geral da ré da acção sem justa causa, veio o autor peticionar a indemnização correspondente a dois anos de salário (dois exercícios), nos termos do art. 387º, nº2 do Código Comercial. O que, atendendo à remuneração que obtinha em 2008, cifra no valor de Mop$ 2.298.400,00.
Peticionou também a quantia de Mop$ 344.760,00 a título de bónus pelo seu desempenho como administrador pelo exercício de 2008, correspondente a 30% do produto da remuneração mensal (mop$ 88.400,00) por treze meses.
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A tese da ré na sua contestação foi a de não ter sido intenção sua atribuir ao A. qualquer remuneração pelo desempenho do cargo para que foi nomeado, mas sim manter a sua anterior condição de trabalhador remunerado submetido à disciplina do direito laboral. Diz: nem tal resulta da carta/proposta de fls. 73-76 (facto E), nem houve deliberação sua nesse sentido.
Aliás, continuou a ré, nunca o A., após a entrada em vigor do Código Comercial, propôs ou sugeriu aos antigos e actuais sócios desta que fosse tomada uma deliberação a fixar a remuneração como gerente-geral.
Assim, não teria direito à peticionada indemnização.
E no que se refere ao pretendido bónus, a ré limita-se a dizer que a referida carta/proposta, embora aluda a um bónus, não liquida o seu valor. Pelo que não existe fundamento para a sua atribuição.
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A sentença, fazendo-se eco do disposto no art. 11º do CC, aplicou a Lei das Sociedades por Quotas (arts. 26º e 27º) à nomeação do autor como gerente, por ter sido sob a égide da sua vigência que tal relação se criou.
E porque o autor cessou funções em 7 de Janeiro de 2009, julgou o tribunal “a quo” aplicável agora o Código Comercial de 1999 no que se refere à sua destituição.
Neste pressuposto, acolheu a ideia de o autor ter sido destituído sem justa causa, uma vez que dos autos nenhum elemento existe a fundamentar a cessação, nomeadamente documento revelador de deliberação nesse sentido.
Avançando, a sentença debruçou-se, depois, sobre o tema central do litígio: a existência de uma remuneração pelo exercício do cargo de gerente por banda do impetrante.
E fez, para tanto, uso das disposições, tanto do art. 31º da Lei das Sociedades por Quotas de 1901, como do art. 177º do Código Comercial de 1888, para reconhecer que a função de administrador ou gerente é remunerada, quer pelo acto constitutivo, quer por posterior deliberação da assembleia-geral dos sócios.
E, chamando à colação o novo Código Comercial, asseverou que essa remuneração é decidida pelos sócios em “deliberação dos sócios” nas sociedades por quotas (art. 387º, nº1)
Subsumindo os factos a este painel de normas, achou o julgador da 1ª instância que nada nos autos podia acudir ao autor, visto que nem o estatuto, nem nenhuma deliberação foi junta ao processo que revele que a sociedade demandada alguma vez tenha determinado, através de deliberação, atribuir ao autor uma remuneração específica pelo exercício das suas funções de gerente. O único relevante elemento sobre o assunto apurado foi a deliberação da assembleia-geral realizada em 26/09/1997 que nomeou o A. como gerente. Nada mais, nomeadamente sobre a sua remuneração (alínea C) dos factos e doc. nº3 junto com a p.i., fls. 49 e sgs. dos autos).
Por assim ser, afirmou que não podia senão julgar improcedente o pedido do autor quanto à reclamada indemnização. E mesmo a rematar o iter fundamentativo, concluiu que, para além disso, a factualidade provada não demonstra mais do que uma relação laboral (sujeita, portanto, ao regime do direito laboral), ao abrigo da qual também o recorrente desempenhou funções de gerência. Quer dizer, a remuneração que auferiu ao longo dos anos foi a título de salário como trabalhador que exercia gerência, não como contrapartida remuneratória da gerência. Logo, implicitamente, a indemnização nunca seria a que foi peticionada ao abrigo do art. 387º, nº3, do Código Comercial de Macau.
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A propósito desta decisão, o autor, agora recorrente, lembra que em 15/10/1997 houve uma declaração subscrita por C, na qualidade de “chairman” da ré e de representante da outra sócia desta, que definiu as contrapartidas e condições gerais para o exercício de funções enquanto membro do Conselho de Gerência pelo autor, designadamente a remuneração (alínea E), dos factos assentes doc. fls. 73-76 dos autos).
E recorda outra coisa: que, face ao art. 11º do CC, o problema da sucessão de leis no tempo implica que a esta relação iniciada em 1997 e prolongada até Janeiro de 2009 se devia aplicar o Código Comercial de 1999, que estabelece que a remuneração deve ser fixada por deliberação de sócios.
Ora, continua o recorrente, quando a lei se refere à necessidade de uma deliberação dos sócios, não está a exigir uma deliberação “expressa”. Uma tal interpretação restritiva da letra lei esbarra contra a prática estabelecida na relação entre a sociedade e o autor, nomeadamente no que concerne ao exercício das funções ao longo dos anos, ao pagamento da remuneração e sua actualização periódica, dos bónus pagos e da própria contabilização dessas remunerações nas contas anuais da sociedade.
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Expostos assim os termos do litígio, vejamos qual nos parece ser a boa solução que o caso merece.
Parece, em primeiro lugar, que tendo esta relação sido iniciada em 1997, seria ao abrigo da legislação então em vigor que se haveria de averiguar dos requisitos da nomeação do autor para gerente da sociedade recorrida e, também, dos que se reportam à fixação da respectiva remuneração.
E sendo a demandada uma sociedade por quotas, parece que o dispositivo do art. 31º da Lei da Sociedade por Quotas de 1901 teria que aplicar-se (tempus regit actum). Nessa altura, e tomando por referência o disposto no Código Comercial de 1888, face à remissão feita pelo art. 31º citado, não há dúvida que havia lugar a remuneração do gerente e que esta deveria ser atribuída nos termos da escritura social ou determinada em assembleia-geral (art. 177º do CC de 1888). O que não chegou a acontecer.
Era nessa situação que o recorrente se encontrava quando entrou em vigor o Código Comercial de 1999. Este diploma, esta “lei nova” para os efeitos do presente caso, prescreve, agora especificamente no art. 387º, quanto às sociedades por quotas, que os administradores têm direito a remuneração fixada por deliberação dos sócios.
Trata-se, como se vê, de uma sucessão de leis que, neste particular, visam dispor de modo igual ou muito semelhante sobre um aspecto específico da relação jurídica do exercício de funções de administração e gerência: a remuneração.
Em ambos os regimes está prevista uma remuneração dos gerentes, cujo valor tem que ser fixado pelos sócios reunidos em colectivo.
Em nossa opinião, o caso é dominado pela 2ª parte do artigo 11º do C.C., no sentido de que a lei nova dispõe ou versa sobre o conteúdo desta relação jurídica, uma vez que abstrai do facto que lhe deu origem. Deste modo, o C. Com. de 1999 aplica-se-lhe na medida que ela subsiste à data da sua entrada em vigor, ressalvando-se, porém, os efeitos produzidos ao abrigo da lei anterior.
Em todo o caso, não é necessário ir mais além no estudo, uma vez que tanto no regime anterior, como no resultante do C. Com. de 1999, é imposta uma deliberação com efeitos remuneratórios (salvo a situação de a remuneração ter sido fixada nos estatutos, ao abrigo do C. Com. de 1888, o que, como se viu, não sucedeu). Portanto, ou pela deliberação do C. Com. de 1888, ou pela deliberação dos sócios do C. Com. de 1999, havia a sociedade de ter manifestado a sua vontade através de uma decisão colegial.
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E com isto, estamos já a dar o mote para a resposta que nos pede o recorrente, a respeito do modo de exteriorização dessa vontade.
Se a lei diz que a vontade tem que ser manifestada por intermédio de uma deliberação (deliberação em “assembleia-geral” ou “deliberação de sócios”), então é evidente que só excepcionalmente se pode aceitar um exercício presuntivo dessa manifestação. Isto é, não basta dizer que a sociedade queira ou tenha querido atribuir uma remuneração ao gerente. Aliás, essa vontade até terá pouca importância, já que os comandos legais a impõem, tanto no art. 177º do C.Com. 1888 (excepção feita no primeiro caso para eventual disposição em contrário nos estatutos), como no art. 387º do C.Com. 1999.
O problema não é sequer de ordem formal; é “ad substanciam”.
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O que é a deliberação? Pode ela ser substituída (ou suprida) por outro tipo de materialização da vontade da sociedade?
Há várias teorias em torno da natureza da deliberação social: teoria do contrato, teoria do acordo, da pluralidade de negócios de voto, teoria do acto jurídico não negocial, teoria do negócio jurídico teoria de acto plurilateral, teoria de acto colectivo ou complexo, de negócio jurídico unilateral plural heterogéneo, teoria de acto simples colegial1.
Todavia, a posição dominante é a que considera a deliberação um acto simples (ou unitário) complexo. É a manifestação da vontade do órgão da pessoa colectiva2. É claro que nem sempre as deliberações traduzem uma manifestação de vontade, pois frequentemente se limitam a simples declarações de ciência ou manifestações de sentimento3. Mas, no caso que nos ocupa, estamos a tratar de uma deliberação decisória, portanto, de uma evidente declaração de vontade.
Nesta ordem de ideias, a deliberação que aqui importa sobressair é, portanto, o conjunto das vontades individuais dos elementos que compõem um colégio e que se materializa através de um acto oral ou outro, conforme os casos (v.g., voto escrito, braço no ar, etc.) e que, por seu turno, será depois reproduzido em acta por palavras escritas, que funcionará como documento ou como formalidade “ad probationem”4.
Mas, a deliberação não é apenas isso. É também um acto jurídico a que, tantas vezes, a lei confere efeitos jurídicos. E este, que aqui nos ocupa, é um bom exemplo disso, pois por ela se criam efeitos jurídicos patrimoniais (remuneratórios) na esfera do interessado gerente.
É claro que, para alguma doutrina, por criar efeitos jurídicos, pode ser ela mesma, em certos casos, um negócio jurídico plurilateral ou uma simples declaração negocial5.
Mas, ainda na esteira do autor citado, a deliberação social não é nunca um contrato, ainda que verse sobre alterações ao contrato de sociedade, ou mesmo que incida sobre os efeitos de uma relação jurídica de algum dos seus membros, visto que este implica um consenso entre partes, enquanto a deliberação é unilateral. Pinto Furtado diz mesmo que a deliberação, no ordenamento interno da sociedade, é algo de comparável no direito público ao acto legislativo, ao acto administrativo, às deliberações de pessoas colectivas de direito público e, no direito privado, ao negócio jurídico; Nunca, porém, um negócio em si mesmo.6
Deste modo, estaremos impedidos de entender que uma declaração assinada pelo gerente “chairman”, por si, como sócio, e em representação de outra sócia da ré possa valer como modo substitutivo da deliberação. Isto é, se a deliberação não é contrato, nada podia suprir a sua falta, nomeadamente através da referida declaração, mesmo que ela tivesse pendor negocial, que como se vê a fls. 76 dos autos, está assinada por aquele sócio e pelo recorrente.
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Por outro lado, poderíamos dizer que a falta de deliberação não equivale a dizer falta de comprovação da deliberação. Podia haver uma deliberação, sem que o respectivo teor deliberativo tivesse sido transcrito e vazado para a acta. Seria, aí, apenas um problema de falta de prova e, eventualmente, de eficácia de efeitos.
Contudo, essa questão não foi equacionada nos autos. Portanto, não nos alonguemos mais sobre o tema.
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Regressando ao tema central, o direito à remuneração só se constitui através de uma decisão colegial, que é a deliberação. É necessário que essa vontade seja concretizada, densificada, materializada, através de uma deliberação. A materialização do direito abstractamente previsto na lei só é adquirido para a esfera do interessado mediante essa deliberação.
Uma deliberação é sempre, pois, e em princípio um acto expresso.
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Quererá dizer o recorrente que aquele documento possa ter implícita uma deliberação? Parece que sim.
Este é outro problema interessante. Estamos agora no campo das deliberações “implícitas” ou “tácitas”. A declaração negocial é expressa quando feita por palavras, escrito ou qualquer outro modo directo de manifestação de vontade; é tácita, quando se deduz de factos que, com toda a probabilidade se deduz (art. 209º, CC). Acresce que o silêncio só vale como declaração negocial quando esse valor lhe seja atribuído por lei, uso ou convenção (art. 210º).
Assim, enquanto as expressas (orais, escritas ou por gestos que tenham o mesmo valor7) revelam directa e imediatamente a vontade, as tácitas e implícitas só mediata ou indirectamente a revelam.
É claro que, geralmente, a manifestação expressa num dado sentido pode permitir a dedução de uma outra vontade em sentido diferente. Assim, perante a possibilidade de escolha entre a solução A e a solução B, a opção expressa pela primeira permite deduzir com toda a segurança a rejeição pela solução B. Estamos em casos como este perante facta concludentia, isto é, factos que indiciam conclusões, que permitem inferir claramente uma vontade não especificamente manifestada. É a isto que se chama declaração tácita, que no nosso direito opera através de uma «presunção», ou seja, da ilação que se retira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido (art. 342º do CC).
É, aliás, a própria lei que, frequentemente, estabelece presunções, que umas vezes são juris et de jure, quando não admitem prova em contrário, outras juris tantum, se puderem ser ilididas. O silêncio tem, de resto, muitas vezes eficácia declarativa negocial (declaração implícita) quando tal valor lhe seja atribuído por lei ou por convenção (art. 210º, CC)8.
O problema das deliberações sociais tácitas, retius implícitas, foi tratado por Vasco Lobo Xavier, para concluir que o emprego de deliberações tácitas só por comodidade de linguagem podia ser feito, dando para elas o sentido de uma regulamentação de interesses que seja possível extrair da aprovação de uma deliberação expressa9. Isto é, a deliberação tácita (um pouco diferente, seria o “voto tácito”10) extrair-se-ia do conteúdo da própria deliberação expressa: os termos desta seriam facta concludentia em que a tácita pudesse assentar. De acordo com esta posição, haveria, portanto, a possibilidade de conferir efeitos àquilo que se aceitaria ser uma deliberação tácita, a partir dos termos de uma deliberação expressa.
Este interessante assunto mereceu também a atenção de Pinto Furtado, que, na obra citada, aceitou a existência de deliberações tácitas, como sendo aquelas que, não tendo sido formalmente emitidas, se restrinjam ao mero conteúdo que se deduz do constante de uma deliberação formalmente adoptada, que com a toda a probabilidade o revele11. Ou seja, para este autor, a deliberação tácita pode colher-se ou deduzir-se, tal como num processo de enxertia, da estrutura de uma deliberação expressa, nunca de um silêncio (a menos que, nalgum caso pontual, a lei lhe conferisse algum valor declarativo tácito). Dito de outra maneira, até mesmo para o caso previsto no art. 236º, nº2, do CSC de Macau12 (onde pela única vez do articulado legal se fala em deliberação tácita), apenas se pode admitir a atribuição de efeitos a uma “deliberação implícita” inferível a partir do conteúdo de uma deliberação expressa e, mesmo assim, desde que estejam reunidos os necessários requisitos de validade desta13.
Ora, nada disto sucedeu na configuração do caso em mãos. Isto é, não teve lugar qualquer deliberação expressa de onde fosse possível extrair, concluir, deduzir ou inferir qualquer outra implícita determinação em matéria de atribuição remuneratória.
Deste modo, estamos ao lado da sentença recorrida que, quanto a este aspecto, não merece qualquer censura na afirmação que fez a respeito da ausência de deliberação atribuindo ao ora recorrente remuneração pelo exercício da função de gerente.
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Será que a dita declaração (al. E), dos factos) pode substituir a vontade dos sócios em deliberação?
O recorrente pensa que sim, em virtude de o seu autor, C, ser sócio da ré e representante da sócia maioritária da ré, “FPD B Group Limited”.
O que se veio até agora a dizer não permite acolher a tese do recorrente. Efectivamente, o assunto da remuneração do gerente teria que ser resolvido através de uma deliberação específica e expressa nesse sentido ou, de acordo com a doutrina acima citada, a partir do conteúdo de uma deliberação expressa sobre outro tema, mas da qual pudesse ser inferida uma deliberação (tácita/implícita) que permitisse a conclusão acerca da autorização sobre o quantum de remuneração a atribuir ao recorrente. Nesta segunda perspectiva, uma deliberação implícita de onde inclusive pudesse colher-se, por exemplo, uma delegação de poderes ao sócio-gerente C para fixar livremente o valor remuneratório da gerência do recorrente. Todavia, não existe nenhuma deliberação, nem expressa, nem tácita em qualquer dos sentidos.
Deste modo, se aquele documento não podia, em si mesmo, valer como declaração negocial remuneratória, nem ter efeito de suprimento de uma deliberação inexistente, uma vez que a lei a impunha, por maioria de razão também não podia ter o mesmo valor de uma deliberação tácita, nos termos acabados de referir.
E porque o afirmamos com tal vigor?
Porque, em matéria de remuneração do gerente a disciplina legal é imperativa, não sendo lícita a fixação de remunerações por outras vias que não as indicadas nos preceitos legais14, sob pena de nulidade15.
Não está em causa que o gerente seja remunerado, entenda-se. Mas, sendo-o, a intervenção dos sócios em assembleia torna-se necessária para definir o “quantum” da remuneração16. E compreende-se: Um sócio não deve poder atribuir a remuneração de um gerente, até para afastar o perigo de conluio entre ambos e, desse modo, evitar qualquer tentação de fraude salarial. Como já vimos escrito, numa posição similar à que acima tivemos oportunidade de expor a propósito da não contratualização da remuneração das funções da gerência, “…nem a gerência ou administração será, em geral, contratual, nem a remuneração dos gerentes é fixada por contrato, antes por acto unilateral da sociedade, por deliberação dos sócios”17.
Por conseguinte, o documento em causa não pode funcionar a se como fonte válida de fixação da remuneração do recorrente, se a lei para tomar esta como válida exige uma deliberação dos sócios.
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Não se pense, todavia, que o problema fica solucionado por esta via.
É que, não obstante o que se acaba de dizer, a nulidade que apontámos não é uma nulidade de conteúdo. Efectivamente, se o gerente pode ser remunerado, o que ao caso fazia falta era o instrumento formal adequado à materialização desse direito: a deliberação dos sócios. Estamos, assim, perante algo parecido com o caso subjacente ao Ac. da Relação de Coimbra de 7/04/1994 (CJ, 1994, II, pág. 24). Isto é, sendo verdade que a falta daquele meio deliberativo pode gerar uma nulidade, certo é, por outro lado, que se não trata de uma nulidade substancial, mas simplesmente procedimental.
Nulidade de itinere que, portanto, não torna nula a decisão final (a decisão sobre a remuneração que consta da referida declaração), mas simplesmente anulável. Neste sentido, tal decisão (contida naquela declaração) é simplesmente anulável, não nos termos do art. 229º do CCM (porque se reporta às deliberações anuláveis), mas nos termos gerais dos actos jurídicos anuláveis18.
Ora, se uma deliberação anulável é confirmável (convalidável, leia-se), nos termos do art. 229º, nº3, do CCM, por igualdade de razões pensamos que a anulabilidade de tal decisão remuneratória deverá estar sujeita, ao mesmo regime da sanação.
É claro que o Código Comercial vigente não dedica atenção a este tema específico. Todavia, não se vê motivo para divergir da solução em casos, como o presente, em que a sanação não versa sobre uma deliberação (nula por vício de procedimento ou anulável), mas sobre uma decisão singular de um sócio em matéria reservada à deliberação dos sócios.
Sendo assim, cremos que a confirmação a que acima aludimos também é possível por outra via nos termos gerais, nomeadamente por confirmação tácita nos termos do art. 281, nº3 do CC. É que os preceitos legais que tratam desta problemática remuneratória dos gerentes sociais são dispositivos com um claro sentido de favorecimento dos interesses da sociedade. Isto é, quando asseveram que a remuneração deve ser fixada por deliberação da assembleia-geral ou pelos sócios (reportando-se obviamente à deliberação dos sócios19) o que estipulam é uma garantia em favor da pessoa colectiva, com o propósito de proteger a sociedade contra eventuais atentados aos seus direitos e interesses (disponíveis) financeiros e patrimoniais por combinação entre um determinado sócio e o gerente.
Por conseguinte, nenhum obstáculo se divisa a que a sociedade viesse a confirmar tacitamente a atitude de um dos sócios quando unilateralmente atribui uma remuneração ao gerente. Confirmação que poderia surgir, por exemplo, com o pagamento desta remuneração mês a mês, ao longo de vários anos, com a aprovação das contas em cada exercício durante anos a fio e com o pagamento pelo mesmo período de tempo dos complementos remuneratórios a título de bónus pelo exercício da gerência.
E tendo sido isto que, na tese do recorrente, sucedeu, então, acha ele que o direito e a justiça estão do seu lado. E nesse caso, se como resulta dos autos, e a própria sentença o reconhece, o recorrente acabou sendo “destituído sem justa causa”, então acha-se com direito a dois anos de exercício a título de indemnização tal como consta do referido documento.
A doutrina e jurisprudência apresentam um entendimento unânime de que o gerente destituído sem justa causa tem direito ao pagamento de indemnização pelos danos sofridos20. E quando o art. 387º do Código Comercial estabelece uma indemnização automática21 em caso de “destituição sem justa causa” do gerente, essa será a indemnização a pagar.
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Só que tudo isto falece perante a factualidade provada.
Tudo o que o recorrente diz até estaria certo, mesmo com nuances de fundamentação nos moldes acima estudados, não fosse a circunstância de não estar provado que a remuneração que o recorrente auferiu fora fixada pela declaração/documento de fls. 73-76.
Se esse fosse o caso, impor-se-nos-ia, agora concluir o estudo que começámos a fazer no ponto anterior e dele extrair as devidas conclusões, porventura acolhendo a tese do recorrente. Nesse pressuposto, haveria que ponderar se essa “remuneração de gerente” tinha raiz formal legal e se ela, através do tempo e da atitude tácita da ré, ao longo da relação acabaria por ter sido sanada, caso se concluísse pela invalidade inicial.
Todavia, o tribunal “a quo” julgou que o salário que recebeu ao longo dos tempos não se radicou nesse documento (declaração), e antes que decorreu da relação laboral que ligava sociedade empregadora ao recorrente empregado. A resposta aos quesitos teve o cuidado de afastar o nexo das remunerações e actualizações ao documento em causa. Daí que não possamos nós fazer essa associação por falta de melhores dados de facto.
E se é assim, se as funções de gerência estavam reunidas na pessoa do empregado recorrente e se a remuneração que auferia, por mais alta que fosse, estava relacionada com essa relação laboral submetida ao regime do direito público laboral, então não é possível fazer apelo ao regime do Código Comercial, já que no art. 387º ele parte do pressuposto de haver uma remuneração gerencial, que aqui não se verificava de acordo com a prova produzida.
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O recorrente aduz ainda um outro argumento em favor da sua tese. Diz: a não ser assim, estaríamos perante abuso do direito na formulação venire contra factum proprium, por atentatório da boa fé e do princípio da confiança, tal como invocado pelo recorrente.
Face ao que se disse, não haveria necessidade de estudar o caso por este prisma; o conhecimento dele estaria prejudicado pela solução encontrada acima. Mesmo assim, não deixaremos de dedicar ao assunto alguma atenção.
Reza o art. 326º do Código Civil que é “ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económica desse direito”. Isto significa que o exercício de um direito é abusivo quando exceda manifesta, clamorosa e intoleravelmente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes e pelo fim social ou económico do direito, ou, o mesmo é dizer, quando esse direito seja exercido em termos clamorosamente ofensivos da justiça ou do sentimento jurídico socialmente dominante22. Trata-se da emanação do vulgarmente denominado de princípio da confiança, segundo o qual “as pessoas devem ter um comportamento honesto, correcto, leal, nomeadamente no exercício dos direitos e deveres, não defraudando a legítima confiança ou expectativa dos outros”23
Venire contra factum proprium, é, deste ponto de vista, um exemplo típico de exercício inadmissível de direito24, algo que consiste numa prática por alguma das partes que contrariaria a boa-fé, na medida em que, a par de indícios objectivos, dê a entender que esse direito não seria mais exercido25. Como se disse em Ac. STJ de 21/01/2003, 1ª secção (relator Azevedo Ramos), www.dgsi.pt/jstj, “A proibição da chamada conduta contraditória exige a conjugação de vários pressupostos reclamados pela tutela da confiança. Esta variante do abuso do direito equivale a dar o dito por não dito, radica numa conduta contraditória da mesma pessoa, pois pressupõe duas atitudes espaçadas no tempo, sendo a primeira (factum proprium) contraditada pela segunda atitude, o que constitui, atenta a reprobabilidade decorrente da violação dos deveres de lealdade e de correcção, uma manifesta violação dos limites impostos pela boa fé. A proibição de comportamentos contraditórios é de aceitar quando o venire contra factum proprium atinja proporções juridicamente intoleráveis, traduzido em chocante contradição com o comportamento anteriormente adoptado pelo titular do direito”.
Quer dizer, o abuso do direito manifestado no “venire contra factum proprium”, assenta numa estrutura que pressupõe duas condutas da mesma pessoa, ambas lícitas, ainda que assumidas em momentos distintos e distanciadas no tempo, em que a primeira (o “factum proprium”) é contraditada pela segunda (o “venire contra”). É essa relação de oposição entre as duas que justifica a invocação do princípio do abuso do direito26.
Mesmo não se desconhecendo a dissonância opinativa que a possibilidade da reunião no mesmo indivíduo das qualidades de gerente/administrador e trabalhador abre na doutrina e jurisprudência27, entendemos que isso agora não está em causa.
Pois bem. A verdade é esta: para se concluir favoravelmente pela tese do recorrente, seria necessário – uma vez mais o reafirmamos – que a remuneração percebida pelo recorrente fosse directamente relacionada com a gerência, fosse decorrência do documento/declaração de fls. 73-76. Valeria a pena, então sim, examinar se a sociedade recorrida, através do seu sócio Edward disse inicialmente uma coisa - que confirmou ao longo dos anos através das suas repetidas atitudes de aumento da carga remuneratória e dos bónus, da aprovação das contas dos balanços, criando no recorrente a confiança de estar a receber uma remuneração gerencial - e no fim acabar por contrariar essa atitude através de uma negação do pagamento da indemnização respectiva com o argumento de que o recorrente não auferia remuneração como gerente.
Todavia, como vimos, não é isso o que está provado. Temos que nos ater, por um lado, à matéria de facto (a qual, como também já dissemos, não foi impugnada no presente recurso nos termos e moldes impostos pelo art. 599º do CPC) e, por outro lado, à força da norma jurídica que concerne à necessidade de uma deliberação social nos moldes já vistos. E, neste pressuposto, não nos parece que se possa falar em excesso absurdo ou em clamor de excesso no exercício do direito, ao contrário do que o afirma o recorrente.
Quanto a este aspecto, ainda importa que se diga que a 1ª instância não fez recair no recorrente a culpa na falta de deliberação. Limitou-se a dizer que o recorrente, enquanto gerente e com largos anos de experiência e serviço, nessa qualidade com acesso a toda a documentação da ré, haveria de saber que a remuneração que recebia não se fundava em nenhuma forma válida de a fixar com esse atributo. Haveria de ter conhecimento que tudo decorria de uma simples declaração assinada por um sócio. E então, o que a sentença adiantou, num puro exercício de retórica explicativa ou de fundamentação do seu percurso decisório, nunca numa tarefa imputadora de culpa, foi que ele podia ou deveria ter suscitado uma intervenção deliberativa da sociedade posterior àquela declaração, como modo de exigir a fixação da remuneração como gerente nos termos legais (nós diríamos, como forma de convalidar e sanar pela confirmação a atribuição da sua remuneração gerencial). Efectivamente, tivesse-o feito o recorrente e talvez este problema não estivesse agora em discussão.
Consequentemente, não pode proceder o abuso de direito para caracterizar o comportamento da recorrida em não indemnizar o recorrente, se o pressuposto que ele invoca se não provou no caso concreto.
E tudo o que se vem de expor serve para concluir que:
a) Mesmo que se quisesse extrair efeitos da referida declaração como atribuição de uma remuneração gerencial, ela não era validamente constitutiva de direitos, face ao que dissemos;
b) Mas, até decorre da prova, por outro lado, que a remuneração do recorrente decorria simplesmente de uma relação laboral normal.
Em qualquer dos casos, não pode o recorrente servir-se das virtudes do art. 387º, nº2, do Cod. Comercial para peticionar uma indemnização correspondente às “…remunerações que receberia até ao termo do seu mandato ou, se este não tiver sido conferido por prazo certo, as correspondentes a dois exercícios”.
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Falta a questão do bónus relativo ao ano de 2008.
A sentença negou a atribuição desse bónus, com o fundamento de que o seu valor não está alicerçado em factos relativos aos critérios de fixação da percentagem de 30% invocada pelo autor. E concluiu que, por esse motivo, o concreto valor a atribuir naquele ano não estava apurado, dizendo: “esse valor depende de uma fixação segundo tais critérios que nem sequer foram alegados. Novamente cabe ao Autor o ónus de prova dos restantes factos para permitir que o montante exacto da bonificação possa ser fixado nesta instância. Não o tendo, nada resta senão julgar também improcedente este segundo pedido».
Ora bem. Se bem interpretamos aquelas palavras, o que o tribunal “a quo” terá querido dizer foi que, apesar de estar provado que o autor perceberia um bónus anual, não se saberia o modo de o quantificar.
Repare-se: No quesito 7º perguntava-se se «A ré não procedeu ao pagamento do bónus devido ao autor pelo exercício de 2008, correspondente a 30% da remuneração anual do autor». E a resposta foi simplesmente a de que «A Ré não procedeu ao pagamento do bónus ao devido ao autor pelo exercício de 2008».
Portanto, a sentença não o atribuiu por não ter elementos para o liquidar, uma vez que nem sequer deu por provada a percentagem quesitada.
O que dizer?
Bem, não ficou provada a percentagem, é verdade. E o documento a que se refere a alínea E), da especificação também nada esclarece sobre o assunto no ponto 9 (diz apenas que ele teria um bónus anual, pago por ocasião do ano novo lunar chinês de acordo com a sua pessoal performance nos resultados da empresa: ver declaração de fls. 73-76). Nada mais28. Neste sentido, tem razão a sentença: não há modo de saber como fixar a indemnização a este título, se a ela tiver realmente direito. Tendo-o, então cremos que a sentença deveria ter relegado a sua fixação para execução de sentença (art. 564º, do CPC).
E terá realmente direito a ela?
Nós já vimos que o recorrente não estava a ser remunerado como gerente, mas como empregado numa relação laboral comum. E assim, aquele bónus não pode ser considerado como acréscimo remuneratório de gerente. Se fosse, a solução para a reclamada indemnização teria desde logo o mesmo fim atrás preconizado.
Como encarar então aquela bonificação?
Se ela não tiver uma natureza remuneratória gerencial “stricto sensu”, mas algo mais próximo de uma “participação nos lucros”, então seria proibida em tal hipótese, uma vez que nem os arts. 31º da Lei das Sociedades por Quotas de 11 de Abril de 1901, nem o art. 177º do Cod. Comercial de 1888 a previam expressamente, assim como também os arts. arts. 177º e 178º do Cod. Comercial vigente (tb. art. 377º), unicamente a permitem aos “sócios” (qualidade que o recorrente não tinha) e, ainda assim, sempre condicionada à precedência de uma deliberação social destes (art. 199º, nº1).
Ora, se olharmos para a forma como o autor arquitectou a causa de pedir, logo veremos que toda a pretensão da acção assenta numa relação de gerência e tudo o que é reclamado pecuniariamente decorre unicamente dela. Quer dizer, não só a indemnização (dois anos de remuneração), como o pagamento da bonificação só são reclamados por causa da actividade de membro da gerência que o autor invoca.
Ora, nós já vimos que o salário não serviu para remunerar essa actividade (não é uma remuneração gerencial), mas sim como contraprestação de uma relação laboral comum. E, por isso, também o pedido formulado a propósito da bonificação não foge ao desenho dessa mesma causa de pedir: só é feito por causa da remuneração da gerência que o autor ilustra nos autos; isto é, o pedido de pagamento desse bónus compreender-se-ia no quadro da remuneração dessa gerência (seria uma remuneração acessória na tese do autor).
Só que, sendo assim, não tem o recorrente direito a ela no âmbito deste processo, tendo em consideração a “causa petendi”. Isto é, nunca tal valor pecuniário podia ser atribuído a título remuneratório acessório próprio de uma relação laboral comum numa acção em que tudo é exclusivamente fundado numa causa de pedir concernente a uma actividade gerencial.
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Imaginemos, porém, que essa bonificação tem o sentido de uma mera ”gratificação”. Podia a solução ser outra? Não. A solução não seria diferente. Com efeito, além de dever ser tida como “remuneração variável”, face à regularidade com que foi sendo atribuída, sempre além disso haveria de ter sido deliberada pelos sócios29, o que, como visto, não aconteceu.
Ora, não há matéria provada capaz de remeter aquela bonificação para uma participação nos lucros (isso não resulta da referida declaração, nem de quaisquer outros elementos dos autos) e também nos parece que não estamos perante uma gratificação isolada.
Logo, estamos convencidos que aquela bonificação tem carácter de remuneração acessória e variável que comungará da natureza da prestação principal (salário). Assim sendo, a razão que nos levou a não reconhecer o direito do autor ao pagamento da indemnização equivalente a dois anos de remuneração é a mesma que nos leva a não reconhecer o direito àquela bonificação respeitante ao ano de 2008.
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Assim, e sem mais delongas, o recurso não pode proceder.
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IV - Decidindo
Face ao exposto, acordam em negar provimento ao recurso, confirmando a sentença.
Custas pelo recorrente.
TSI, 20 de Fevereiro de 2014

_________________________
José Cândido de Pinho
(Relator)

_________________________
Tong Hio Fong
(Primeiro Juiz-Adjunto)

_________________________
Lai Kin Hong
(Segundo Juiz-Adjunto)



1 Sobre o assunto, ver Luis Brito Correia, Direito Comercial Deliberações dos Sócios, Vol. III, 3ª tiragem, pág.98 e sgs.
2 Autor e ob. cit., pág. 108; cfr. tb. Freitas do Amaral, in Curso de Direito Administrativo, Vol. II, pág. 276a propósito das deliberações dos órgãos administrativos.
3 Pinto Furtado, Deliberações dos sócios, Almedina, 1993, pág. 52.
4 Freitas do Amaral e outros, CPA anotado, 4ª ed., pág.77.
5 Luis Brito Correia, ob. cit., pág. 112.
6 Ob. cit., pág. 54.
7 Pinto Furtado, ob. cit., pág. 160.
8 Manuel de Andrade, Teoria Geral da Relação Jurídica, 1960, II, pág. 129-140; Mota Pinto, Teoria Geraldo Direito Civil, III, pág. 424-429. Não é, contudo o caso concreto, visto que nem a lei, nem convenção entre as partes dão ao silêncio qualquer valor específico.
9 Anulação de deliberação social e deliberações conexas, 1976, pág. 467.
10 Ob. cit., 467-468.
11 Ob. cit., pág. 165.
12 Cfr. art. 260º, nº2, do Cod. Com. Português
13 Autor e ob. cits. pág. 166.
14 Jorge Manuel Coutinho de Abreu, Governação das Sociedades Comerciais, 2ª ed., Almedina, pág. 84; Ver também, Alexandre Mota Pinto e outros, em Código das Sociedades Comerciais em Comentário, Vol. IV, Almedina, com coordenação de Jorge Manuel Coutinho de Abreu, pág. 106.
15 Na jurisprudência comparada, ver Ac. RC. de 7/04/21994, in CJ, ano XIX, 1994, 2º, pág. 24. No sentido da nulidade de deliberação que introduza no estatuto social a possibilidade de a gerência determinar a remuneração dos seus membros, ver ainda Alexandre Mota Pinto e outros, in Código das Sociedades Comerciais em Comentário, Vol. IV, Almedina, com coordenação de Jorge Manuel Coutinho de Abreu, pág. 106.
16 Ac. RL, de 12/06/1997, CJ, 1997, 2º, pág. 114-117.
17 Alexandre da Mota Pinto e outros, ob. cit., pág. 106.
18 O Ac. da RL, de 18/12/2002, in CJ, 2002, Vol. V, pág. 109, a propósito de uma deliberação que desrespeite o art. 399º do Código das Sociedades Comerciais sobre a competência para fixar remuneração até disse que ela era meramente anulável, por não violar norma imperativa.
19 Neste sentido, Vaz Serra, citado por Raul Ventura, na obra Sociedade por Quotas, Vol. III, Almedina, 2ª reimpressão, pág.68-60.
20 Cfr. Raul Ventura, Sociedades por Quotas, III, pág. 118; Luís Brito Correia, Os Administradores das Sociedades Anónimas pág. 705 e segs; João Labareda, A Cessação da Relação de Administração, Direito Societário Português, págs 72 e segs; A. Pereira de Almeida, Sociedades Comerciais, págs 122/123; Código das Sociedades Comerciais Anotado, coordenação de Menezes Cordeiro, pág. 675; Acórdãos do STJ de 15-2-00, BMJ 494º, pag 359; de 14/12/04, Revista nº 4701/04-6ª; de 11/7/06, Revista nº Revª1884/06-6ª e de 14/12/06, Revista nº 063803.
21 Coisa diferente do que estipula o art. 257º, nº7, do CSC de Portugal (neste sentido, Ac do STJ de 7/07/2010, Proc. nº 5416/07; tb. de 14/12/2006, Proc. nº 06ª3803
22 Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, I, 4ª ed., p. 299).
23 Coutinho de Abreu, Do Abuso de Direito, 1983, pág. 55.
24 Ac. STJ de 4.4.2002, Proc. 524/02, da 7ª secção
25 Menezes Cordeiro, “Da Boa Fé no Direito Civil”, Almedina (2ª Reimpressão), 2001, pág. 810-811.
26 Ac. STJ, de 16/11/2011, Proc. nº 203/2008
27 Com muito interesse, ver o Ac. do STJ, de 29/09/1999, Proc. nº 98S364
28 O documento nº 8, de fls. 79, apesar de fazer referência a essa percentagem de 30% foi adiantando que essa era simplesmente uma percentagem que serviria como meta, como objectivo. Dele não decorre que fosse necessariamente essa a percentagem a considerar obrigatoriamente. Talvez por isso, o TJB não tenha dado por provada a referida percentagem, apesar da existência desse documento.
29 Raul Ventura, Sociedades por Quotas, Vol. III, Almedina, pág. 74.
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