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Recurso nº 794/2011
Data: 20 de Fevereiro de 2014

Assuntos: - Princípio de caso julgado
- Princípio de ne bis in idem
- Jurisdições diferentes
- Desconto das penas cumpridas no estrangeiro.
- Crime de pirataria
- Crime de roubo
- Concurso real dos crimes
- Competência territorial
- Aplicação da lei penal no espaço
- Notificação edital do Despacho de pronuncia



SUMÁRIO
1. Em processo penal, como se consagrara no artigo 153° do Código de Processo Penal de 1929, pode dizer-se que existe caso julgado material quando a decisão se torna firme, impedindo a renovação da instância em qualquer processo que tenha por objecto a apreciação do mesmo ou dos mesmos factos ilícitos.
2. O caso julgado formal traduz-se em mera irrevogabilidade de acto ou decisão judicial que serve de continente a uma afirmação jurídica ou conteúdo e pensamento, isto é, em inalterabilidade da sentença por acto posterior no mesmo processo.
3. Quanto ao caso julgado quer material quer formal nunca se pode falar nas jurisdições nos diferentes países.
4. Mesmo no processo civil, sob forma especial, a força e a autoridade de caso julgado estrangeiro só pode desencadear-se na RAEM após obrigatório exame por órgão jurisdicional da RAEM - artigo 1199° n° 1 do Código de Processo Civil.
5. Não tem mínima razão invocar aqui que a sentença condenatória pelos Tribunais de REA de Hong Kong.
6. O princípio de ne bis in idem, traduz-se que ninguém pode responder, pela segunda vez, sobre o mesmo fato já julgado, ou ser duplamente punido pelo mesmo delito.
7. A regra de ne bis in idem não se aplica a processos por dois soberanos diferentes (a menos que o tratado de extradição relevante expressa uma proibição).
8. Não existe uma regra obrigatória de direito internacional (ius cogens) que institui um dever de respeitar a ne bis in idem entre os Estados.
9. O julgamento na RAEM do ora recorrente quem tinha sofrido a condenação e cumprido a pena condenada em Hong Kong não viola este princípio, já seria outra coisa a aplicação do disposto no artigo 117° do Código Penal de 1886 que se prevê quanto à medida processual ou pena sofrida fora de Macau, pela forma à descontar as penas cumpridas no estrangeiro.
10. O crime de pirataria, p. e p. pelo artigo 162º do Código Penal de 1886, permaneceu-se em vigor até a 19 de Dezembro de 1999, por força do disposto no artigo 9 n° 1 do D.L. n° 58/95/M, “não pressupõe necessariamente um desígnio político na sua comissão, porquanto o interesse protegido por este ilícito é um mero interesse do Estado em assegurar a navegação contra o perigo de violências ou ameaças de violências e o fim visado pelo respectivo agente é o de cometer roubos ou violências ou de atentar contra a segurança do Estado ou de nação amiga”, e essa infracção encontra-se em concurso aparente com a infracção p. e p. pelo artigo 275° do Código Penal de Macau.
11. Quanto ao crime de roubo, visa proteger essencialmente a propriedade das pessoas, bens jurídicos obviamente distintos dos protegidos pelo artigo 162° do Código Penal de 1886, não havendo lugar a consumação entre estes dois crimes.
12. Sempre que a lei de Macau seja aplicável às infracções cometidas, o Tribunal de Macau será competente para conhecer e julgar delas.
13. Como se sabe, entre Macau e Hong Kong, ou entre o Governo Britânico e Governo Português extensivo a Macau, não estava em vigor, até agora, qualquer acordo de auxílio em matéria criminal, nomeadamente para a notificação pela carta rogatória, não foi minimamente possível proceder a notificação nos alegados termos do artigo 83º, § 8º, do Código de Processo Penal.
14. O Tribunal de Macau não conseguiu notificar o réu em Macau, e neste caso concreto, só podia proceder à notificação do despacho em causa como se fosse o réu ausente.
O Relator,
Choi Mou Pan

Recurso n° 794/2011
(Aplicável ao CPP de 1929)

Recorrente: A






Acordam no Tribunal de Segunda Instância da R.A.E.M.:
   
   1. Relatório
   O réu A, respondeu, à revelia, com os outros réus B, C, D, E e F, todos devidamente identificados nos autos, em processo de querela, no anterior Tribunal de Competência Genérica, tendo sido declarada extinta a responsabilidade penal do arguido D, atento o disposto no art. 119° do Código Penal de Macau.
   Os restantes arguidos foram condenados cada um deles, por co-autoria material de um crime previsto e punido pelo art. 162° § 1°, 2° e 3° do Código Penal de 1886 na pena de dezassete anos de prisão em dois anos de multa à razão de 20 patacas diárias a que corresponde 480 dias de prisão alternativa e por co-autoria material de um crime previsto e punido pelo art. 204º, nos. 1 e 2 al, b), 198°, n.º 2 e 196º al. b) do Código Penal de Macau na pena de oito anos de prisão.
   Efectuado o cúmulo jurídico das penas aplicadas, ao abrigo do disposto no art. 71º do Código Penal, foi cada um dos arguidos condenado na pena única de dezoito anos e seis meses de prisão e em dois anos de multa à razão de 20 patacas diárias o que perfaz o montante de MOP$14.440,00, a que corresponde a alternativa de 480 dias de prisão.
   A título de indemnização por danos patrimoniais foram ainda os arguidos condenados solidariamente a pagar HKD$17.400,00, acrescida de juros vencidos e vincendos desde 13.6.95 e até integral pagamento à G e a quantia de HKD$l0.000.000,00 à empresa “H”, acrescida dos juros vencidos e vincendos à taxa legal desde 13.6.95 até integral pagamento, devendo nessa quantia ser deduzido todo o recuperado e respectivos juros até integral pagamento, ficando assim a cargo dos arguidos a diferença entre o total da indemnização e o que foi ou venha a ser recebido pela ofendida.
   Uma vez notificado do acórdão condenatório, com o qual não concordou, recorreu o réu A para esta instância. Admitido o recurso, o recorrente apresentou as suas alegações para concluir que:
1. O presente recurso vem interposto do douto acórdão de fls. 1415 e ss. proferido pelos Mmos. Juízes que integraram o Tribunal Colectivo de 1ª instância, então designado Tribunal de Competência Genérica de Macau, e que condenou o ora recorrente, por co-autoria material de um crime p. e p. pelo disposto no artigo 162º, § 1, 2 e 3 do C. Penal de 1886, na pena de dezassete anos de prisão e em dois anos de multa à razão de 20 patacas diárias a que corresponde 480 dias de prisão alternativa, e, por co-autoria material de um crime p. e p. pelo disposto nos artigos 204º, n.ºs 1 e 2 b), 198º, n.º 2 e 196º b) do C. Penal de Macau, na pena de oito anos de prisão.
2. Sendo que, efectuado o cúmulo jurídico das penas aplicadas, ao abrigo do disposto no artigo 71º do C. Penal de Macau, foi o recorrente condenado pelo Tribunal a quo na pena única de dezoito anos e seis meses de prisão e em dois anos de multa à razão de 20 patacas diárias, o que perfaz o montante de MOP$14,440.00, a que corresponde a alternativa de 480 dias de prisão.
3. Vem o recorrente impugnar o douto acórdão condenatório recorrido porquanto o mesmo já foi acusado, julgado e condenado, por decisão judicial anterior, pelos tribunais de Hong Kong, precisamente pelos mesmos factos que foram objecto da acusação de fls. 1274 e ss., da douta pronúncia de fls. 1282 e ss. e do referido acórdão proferido nestes autos, não podendo, desse modo, ser submetido a uma nova decisão condenatória pela prática daqueles factos.
4. Efectivamente, o recorrente foi acusado, julgado e, por fim, condenado, na pena de 20 (vinte) anos de prisão efectiva, pela prática daqueles factos, pelo Tribunal de 1ª instância de Hong Kong, por decisão judicial de 30/01/1996 (Proc. n.º 329/95), e, na sequência do recurso interposto por aquele para o High Court de Hong Kong, entendeu este tribunal reduzir a mesma pena para 16 (dezasseis) anos de prisão efectiva, por decisão proferida em 16/09/1997 (Proc. n.º 122/96), decisão judicial esta que transitou em julgado, i.e., tornou-se absolutamente definitiva, insusceptível de ser objecto de recurso (ordinário), nessa mesma data.
5. O fundamento do presente recurso reside assim no facto de que o recorrente já foi acusado, julgado e condenado pela mesma factualidade, por decisão judicial anterior (proferida pelos tribunais de Hong Kong) relativamente ao acórdão condenatório de Macau datado de 28/10/1997, ora posto em crise, situação essa que, pelos vistos, foi ignorada, de forma totalmente inexplicável, como veremos adiante, ao tempo da sua condenação neste processo.
6. Não se pode olvidar que a acusação (ou a pronúncia) define e fixa perante o Tribunal o objecto do processo penal, sendo que a actividade cognitória e decisória daquele órgão jurisdicional está naturalmente limitada pelo objecto da acusação (ou da pronúncia).
7. Por conseguinte, entende o recorrente que, no âmbito do caso julgado com referência ao caso em apreço, incluem-se todos os factos (e, bem assim, os correspondentes crimes de pirataria e de roubo) a que o mesmo foi acusado, pronunciado e condenado em Macau, sendo que o que releva ao preenchimento do mesmo instituto (do caso julgado) é, não a incriminação propriamente dita, mas sim a factualidade introduzida em juízo e objecto da acusação, da pronúncia (no caso de Macau) e do julgamento que teve efectivamente lugar nas duas juridições.
8. Para que a excepção do caso julgado funcione e produza o seu efeito impeditivo característico, a imputação tem que ser idêntica, e a imputação é idêntica quando tem por objecto o mesmo comportamento atribuído à mesma pessoa (identidade de objecto – eadem res). Trata-se da identidade fáctica, independentemente da qualificação legal (nomen iuris) atribuída.
9. E há unidade de facto punível quando os factos objecto do processo penal anterior devem ser os mesmos que são a base do novo processo penal, independentemente da qualificação jurídica que tiverem merecido em ambas causas.
10. O que importa, por conseguinte, é que se esteja perante uma identidade fáctica, o mesmo “recorte da vida”, para que possa operar o princípio “ne bis in idem”, impedindo desse modo a dupla perseguição penal sucessiva ou simultânea, afigurando-se irrelevante a distinta valoração jurídica dos mesmos factos.
11. Podemos assim concluir que para estabelecer a identidade fáctica para efeito de aplicar a excepção de caso julgado não interessa que os mesmos factos tenham sido qualificados ou subsumidos a distintos tipos penais, nem importa tão pouco o grau de participação imputado ao sujeito.
12. Por fim, o terceiro requisito de procedibilidade do instituto do caso julgado prende-se com a necessidade do primeiro processo estar findo, i.e., sem possibilidade de recurso a qualquer meio impugnatório, para que justamente se possa reclamar os efeitos de inalterabilidade que acompanha as decisões jurisdicionais que passam à autoridade de caso julgado.
13. Ora, uma análise comparativa da factualidade apurada - na sua essencialidade e na parte relativa ao recorrente - pelos tribunais que proferiram as sentenças condenatórias do recorrente em Macau e em Hong Kong, revela de forma absolutamente clara que o recorrente foi acusado e julgado naquelas duas jurisdições pelos mesmos factos, embora em Hong Kong apenas tenha sido acusado, julgado e condenado pelo crime de pirataria, o qual, em boa verdade, nos termos da lei penal de Hong Kong e no entendimento das autoridades judiciais daquela região vizinha, consumou o crime de roubo.
14. Sendo assim de entender que o crime de pirataria por que o recorrente foi condenado em Hong Kong é um crime complexo que consome, desse modo, o crime de roubo, como se irá explicar, de forma mais detalhada, um pouco mais adiante.
15. Ora, o caso julgado é uma exceptio judicati, impeditiva da renovação da apreciação judicial da mesma factualidade tendo como fundamento central uma concessão prática às necessidades de garantir a certeza e a segurança do direito e à prossecução da JUSTIÇA, sendo impeditivo de nova acção, de novo procedimento, sobre os mesmos factos, isto é, no caso ora em apreço, de nova decisão judicial condenatória sobre o mesmo objecto em qualquer fase ulterior.
16. A identidade do objecto da acusação (e da pronúncia, no caso desta existir) - ou seja, dos factos submetidos a julgamento - constitui, assim, o critério definidor do caso julgado.
17. Verifica-se assim, no caso sub judice, a excepção do caso julgado, emanação do princípio de que ninguém pode ser condenado duas vezes pelos mesmos factos, plasmado no artigo 40.º da Lei Básica da RAEM, por incorporação do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos.
18. Por outras palavras, o caso julgado tem natureza adjectiva, processual, sendo, como se disse, uma exceptio judicati, impeditiva da renovação da apreciação judicial da mesma factualidade.
19. Ora, tomando por base a factualidade apurada nas duas jurisdições, há que concluir necessariamente que o ora recorrente foi submetido a julgamento e condenado (quer em Macau quer em Hong Kong) pelos mesmos factos (integradores dos crimes de pirataria e de roubo no que concerne à jurisdição de Macau e integradores apenas do crime de pirataria no que concerne à de Hong Kong).
20. Violou assim o acórdão recorrido o referido princípio do caso julgado e, muito em particular, a norma do artigo 153° do CPP de 1929, aqui aplicável, que estipula expressamente que “A condenação definitiva proferida na acção penal constituirá caso julgado, quanto à existência e qualificação do facto punível e quanto à determinação dos seus agentes, mesmo nas acções não penais em que se discutam direitos de que dependem da existência da infracção” (sublinhado nosso).
21. Nesta linha de pensamento, haverá, pois, que respeitar o princípio de “ne bis in idem” que se traduz, ao fim ao cabo, na impossibilidade de um tribunal apreciar e julgar factos objecto de valoração e julgamento em decisão anterior já transitada.
22. Aqui chegados, cumpre observar que não se trata propriamente de se proceder à aplicação do artigo 117.º do C. Penal de 1886, norma que manda descontar na pena aplicada por tribunal de Macau a prisão que houver sido cumprida por sentença de tribunal estrangeiro proferida pelos mesmos factos.
23. A questão é distinta. Estamos perante um caso em que, em bom rigor, o então designado Tribunal de Competência Genérica de Macau estava impedido de proferir uma condenação na presente acção penal, não só quanto à existência e qualificação do facto punível mas sobretudo quanto à determinação do recorrente enquanto agente daquele facto, em virtude da existência de uma decisão anterior proferida pelos tribunais de Hong Kong que impedia a renovação da apreciação judicial da mesma factualidade.
24. E nem sequer se pode advogar que o Tribunal a quo desconhecia ou que, pelo menos, não tinha qualquer obrigação de saber que o ora recorrente estava preso (e que foi condenado) em Hong Kong pela prática dos factos ora em questão.
25. Na verdade, existe abundante documentação no processo, designadamente diversos oficiais enviados pelas autoridades de Hong Kong, a informar explicitamente que o recorrente estava preso em Hong Kong e que inclusivamente fora condenado em Hong Kong em face do caso de pirataria que envolveu o jacto planador “Guia” [cfr., entre outras, fls, 987 a 989,1134 a 1135, 1188 a 1189, 1200 a 1201 e 1305 dos autos).
26. Tendo inclusivamente um agente da Polícia Judiciária de Macau inquirido o ora recorrente, no dia 27/06/1995, no Centro de Detenção, em Hong Kong, sobre os factos objecto da acusação e da pronúncia, conforme se comprova pelo auto de inquirição de fls, 826 e 827 dos autos.
27. Sendo que o MP promoveu inclusivamente que fossem as entidades de Hong Kong informadas que a certidão da sentença do tribunal de Hong Kong, em tempo solicitada, se destinava à instrução dos presentes autos, em atenção ao disposto no artigo 76º do CPP, o que foi deferido pelo Mmo. Juiz a quo (v., fls.1198 a 1202 e verso).
28. De modo que o Tribunal a quo, no mínimo, sabia ou tinha obrigação de saber que o ora recorrente estava preso em Hong Kong e que inclusivamente foi condenado nessa região vizinha pela prática daqueles factos, objecto do acórdão ora em análise.
29. De modo que o acórdão recorrido é ilegal porquanto violou, de forma grosseira, o princípio do caso julgado consagrado no artigo 153º do CPP de 1929 e, bem assim, o princípio de “ne bis in idem” plasmado no artigo 14.º, n.º 7, do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos, aplicável em Macau por força do artigo 40.º da Lei Básica da R.AE.M., impondo ao recorrente uma pesada condenação em 28/10/1997 quando, em boa verdade, já tinha sido proferida nessa altura uma decisão judicial condenatória, proferida pelos tribunais de Hong Kong, já transitada em julgado aquando da prolação do acórdão recorrido.
30. Dando-se assim por verificada a excepção do caso julgado relativamente aos dois crimes pelos quais o recorrente foi condenado (crime de pirataria e crime de roubo), impõe-se que seja revogada a decisão recorrida, dando-se por extinto o presente procedimento criminal, a exemplo da decisão que foi outrora adoptada pelas autoridades policiais e judiciais da República Popular da China.
31. Ainda que se entendesse - por mera hipótese de raciocino – que ao preenchimento do conceito de caso julgado importa não a factualidade da acusação ou pronúncia introduzida em julgamento mas apenas e tão somente a incriminação feita na sentença com a integração dos respectivos crimes, seríamos sempre levados a concluir, como englobado no caso julgado, o crime de pirataria a que o recorrente foi condenado em Macau.
32. Sendo certo que, mesmo nessa hipótese, a solução jurídica atrás preconizada em nada se altera tomando em conta que o segundo crime (crime de roubo) é consumido pelo primeiro crime (crime de pirataria).
33. É que os factos dados como provados pelo tribunal recorrido são subsumíveis simultaneamente aos dois tipos de crimes em causa, em conformidade, aliás, com o próprio acórdão recorrido que afirma que o artigo 162º, § 1, 2 e 3 do C. Penal de 1886 “não pressupõe necessariamente um desígnio político para a sua comissão, já que o interesse protegido por este ilícito é um mero interesse do Estado em assegurar a navegação contra o perigo de violências e o fim visado pelo respectivo agente é o de cometer roubos (…), tal como resulta, aliás, do texto daquela disposição normativa.
34. Posto isso, cumpre dizer que estamos perante o chamado concurso de normas incriminadoras ou concurso aparente de crimes, em que as normas concorrentes se apresentam numa relação de especialidade, de subsidiariedade ou de consumpção - a previsão de uma engloba a da outra e a matéria de facto é subsumível a ambas as normas - prevalecendo a qualificação do crime punido com a pena mais grave sobre o da punição mais leve.
35. Existe, pois, no caso concreto, uma relação de concurso aparente (seja por uma relação de especialidade, de subsidiariedade ou de consumpção) entre o crime de pirataria, por um lado, e o crime de roubo, por outro.
36. Considerando que a conduta da recorrente preenche aqueles dois tipos legais de crime, o certo é que o concurso aparente de infracções pressupõe que sobre a mesma situação possa convergir mais do que uma norma, verificando-se entre elas uma relação de especialidade, de subsidiariedade ou de consumpção: uma delas prevalecerá então sobre a outra e excluí-la-á,
37. Em geral, não pode ser esquecido que o mecanismo da consumpção não branqueia nem elimina a tonalidade delituosa própria do tipo penal consumido. O que se entende é que basta a formulação de um juízo de censura único, não dissociado embora na sua (essência das infracções participantes - mas consumptoras ou as consumidas – mas mitigadas estas pela própria circunstância da sua aglutinação naquele dito juízo único.
38. Conclui-se assim que o conteúdo dessa conduta é exclusiva e totalmente abrangida por um só dos tipos violados, in casu, o crime de pirataria acima mencionado, pelo que o outro crime (crime de roubo) deve recuar, não sendo aplicável.
39. De modo que o preenchimento de um tipo legal (mais grave) inclui o preenchimento de outro tipo legal (menos grave), devendo a maior ou menor gravidade ser encontrada na especifidade do caso concreto, o que nos leva a concluir que o arguido, ora recorrente, deveria apenas ter sido condenado pelo crime de pirataria, excluindo-se ou consumindo-se assim o crime de roubo de que vinha também acusado e pronunciado, não fosse o facto do crime de pirataria ter já sido julgado em Hong Kong.
40. Doutra banda, o recorrente está, hoje em dia, totalmente reinsercido socialmente, trabalhando na China desde 2006 como piscicultor de peixe e preparando-se agora para se reunir definitivamente com a sua família, mulher e filhos, em Macau, sendo que a aplicação de uma pena superior a dois anos de prisão pelo crime de roubo iria afectar, quiçá, de modo irreparável, o processo de socialização do recorrente ora em curso.
41. Considerando o escasso envolvimento do recorrente na prática do crime de roubo, e por outro lado, a limitada culpa objectiva do mesmo, as suas condições pessoais e familiares de vida, julga-se, ajustada e adequada, por ser proporcionada, a pena unitária concreta de 2 anos de prisão pela prática daquele crime, previsto e punido actualmente pelos artigos 204º nº s 1 e 2 b), 198º, n.º 2 e 196º b) do C. Penal de Macau.
42. E nesta perspectiva, se for entendido, mal na nossa modesta opinião, que o recorrente foi julgado e condenado em Hong Kong apenas pelo crime de pirataria, haverá mesmo assim que operar o cúmulo jurídico das penas entre a punição de Hong Kong e a punição parcelar de Macau, esta cingida ao crime de roubo, tomando em consideração ainda a prisão que foi cumprida pelo recorrente em Hong Kong por sentença proferida nessa região vizinha.
43. Nenhumas das situações previstas no artigo 48º do C. Penal de 19291 se verificaram no presente caso: o crime foi praticado em mar alto mas não a bordo de um navio de Macau, i.e., não a bordo de um navio matriculado em Macau, sendo, que o agente não se dirigia ao porto de Macau nem aí desembarcou.
44. Pelo que, em bom rigor, a solução jurídica atrás preconizada em nada se altera tomando em conta que o segundo crime (crime de roubo) é consumido pelo primeiro crime (crime de pirataria) não existem quaisquer elementos de conexão a Macau, sendo que, como se sabe, a norma do artigo 48º do C. Penal de 1929 constitui um afloramento do princípio da territorialidade a que a lei prevalentemente manda atender na aplicação da lei penal no espaço.
45. Mesmo que se aplicássemos o regime do C. Penal de Macau, a resposta não seria diferente porquanto nenhumas das situações previstas nos artigos 4º e 5º daquele Código se verificaram no presente caso.
46. O Tribunal a quo mostra-se assim incompetente para conhecer e julgar a presente acção penal o que constitui uma excepção dilatória.
47. Na verdade, a incompetência do tribunal é um pressuposto processual, isto é, um requisito que condiciona o Tribunal de proferir uma decisão sobre a causa.
48. Não se verificando a existência deste requisito verifica-se a ocorrência de uma excepção dilatória que dá automaticamente lugar à absolvição do ora recorrente (artigos 61º, 412º, n.ºs 1 e 2,e 413º, alínea e), todos do CPC).
49. O Tribunal a quo ordenou a notificação do recorrente por éditos, nos termos do artigo 570.º do CPP de 1929, norma legal que se enquadra no processo especial de ausentes (artigos 562.º e ss, do CPP de 1929) - cfr. fls. 1313 dos autos.
50. Conforme decorre da lei, os termos especiais do processo de ausentes apenas poderão ser seguidos quando os arguidos acusados de qualquer infracção penal não sejam encontrados (artigo 562.º do CPP de 1929), após terem sido feitas todas as diligências nesse sentido.
51. Devendo, nesse caso, ser aplicado o artigo 83.º, § 8.º, do CPP, aplicável aos casos em que a notificação tenha de ser feita a pessoa ausente em parte incerta, sendo posteriormente aplicáveis os preceitos especiais do processo de ausentes, designadamente, o artigo 570.º do CPP.
52. Contudo, o Tribunal bem sabia que o arguido, ora recorrente, se encontrava preso em Hong Kong e, assim sendo, facilmente se conclui que o réu não se encontrava ausente em parte incerta.
53. Deste modo, não poderiam ter sido observados os termos do processo de ausentes (artigo 562.º e 570.º do CPP), como ocorreu in casu, uma vez que o Tribunal tinha conhecimento do local onde se encontrava o arguido, ora recorrente, o que obrigava a que o mesmo fosse notificado pessoalmente (e não por éditos ... ) não só do despacho de pronúncia (artigos 83.º e 370.º do CPP) como, por exemplo, da realização da audiência de julgamento.
54. O que não tendo sido feito constitui uma nulidade do processo penal que acarreta a anulação do acto, assim como dos actos posteriormente praticados (artigo 98.º, 5.º e § 1º, do CPP).
55. Ao que acresce o facto dos éditos respeitantes à pronúncia e à realização do julgamento terem sido afixados na porta da última residência do arguido em Macau (cfr., fls. 1313 a 1320 e 1386 a 1389 dos autos) – o que não era manifestamente possível porquanto o recorrente nunca residiu em Macau - o que configura uma nulidade absoluta daquele acto, nos termos do artigo 98.º, 8.º, do CPP, cominada com a anulação do acto e dos actos posteriores (artigo 98.º, § 1.º, do CPP), tal como foi decidido, em caso idêntico, pelo douto Acórdão do Tribunal de Segunda Instância da RAEM, no âmbito do processo n.º 240/2006.
Termos em que, face ao acima exposto, deverão ser dadas como verificadas as excepções deduzidas de caso julgado (impedindo desse modo a dupla perseguição e condenação penal) e de incompetência do tribunal, com todas as consequências jurídicas daí decorrentes, revogando-se o acórdão recorrido em conformidade.
Se se entender que o âmbito do caso julgado apenas abarca o crime de pirataria, o crime de roubo a que o recorrente foi condenado seria sempre excluído ou consumido por aquele crime de pirataria, devendo dar-se assim por extinto o presente procedimento criminal porquanto este crime encontra-se englobado, como vimos, no âmbito do caso julgado.
Subsidiariam ente, requer-se a anulação da citação edital da pronúncia no que respeita ao recorrente e de todos os actos processuais ulteriores, com todas as consequências jurídicas daí decorrentes.
Subsidiariamente, requer a V. Exas. que lhe seja aplicada a pena unitária concreta de 2 anos de prisão, pela prática do crime de roubo, previsto e punido actualmente pelos artigos 204º, n.º s 1 e 2 b), 198º, n.º 2 e 196º b) do C. Penal de Macau, operando-se assim o cúmulo jurídico das penas entre a punição de Hong Kong e a punição parcelar de Macau, esta cingida ao crime de roubo, tomando em consideração ainda a prisão que foi cumprida pelo recorrente em Hong Kong por sentença proferida nessa região vizinha.
   
   A este recurso, contra-alegou o Ministério Público:
1. No caso em apreço, não estamos perante uma violação do princípio “ne bis in idem”, mas sim um conflito positivo entre duas jurisdições;
2. Na verdade, só tem sentido em falar do princípio “ne bis in idem” dentro da mesma jurisdição;
3. E na falta de qualquer acordo na matéria de cooperação judiciária; cada uma delas pode exercer a sua acção penal em conformidade com a sua legislação interna;
4. O funcionamento do princípio “ne bis in idem” neste contexto é ridículo, uma vez se cria uma situação de auto-limitação da jurisdição de R.A.E.M.;
5. Até que o legislador previu o mecanismo de desconto da pena para aliviar o eventual efeito nefasto de cumprimento repetitivo da penas;
6. Assim, não procede a tese do recorrente no sentido de verificação de violação ao princípio “ne bis in idem”.
7. Mesmo que se proceda ao desconto da pena, verifica-se que falta uma parcela da pena ainda por cumprir pelo recorrente;
8. Quanto à questão de competência do tribunal de R.A.E.M., se reparamos os factos com cuidado, fica logo saber que todo o plano criminoso se partiu com um dos comparticipantes I (residente de R.A.E.M.), e é notório quo a execução do crime iniciou-se em Macau. (a partir do momento em que alguns dos arguidos se embarcaram no jacto planador) e atenta ainda a qualidade da sociedade ofendida que é uma sociedade registada em Macau;
9. Assim, para aferir a competência do tribunal, não se deve limitar a visão ao artº 48 do C.P.P. de 1929, pois, há outra norma que não deve ser omitida, que é o artº 46 do C.P.P. e segundo a sua estatuição, mostra-se claramente a competência dos tribunais de Macau em relação aos factos em causa, quer pela estatuto pessoal de algum compraticipante quer pela local de prática dos factos.
10. A falta de notificação pessoal ao réu sobre a pronúncia não comina com a nulidade processual;
11. Com efeito, segundo a norma artº 98 do C.P.P. de 1929,, só a preterição conjunta de notificação do réu e do seu defensor é que se determina a nulidade do acto;
12. Efectivamente, a defensora do réu foi regularmente notificada do despacho de pronúncia nos presentes autos.
13. No que se diz respeito ao emprego da forma especial do processo ausente, e dada a situação de prisão do recorrente no exterior, o que representa que o recorrente acabaria por faltar à audiência;
14. Acresce que o tribunal nada podia ser feito para obrigar a comparência do recorrente, pelo que o emprego da forma do processo ausente será forçosamente a única solução;
15. Relativamente à questão jurídica de consumpção entre o crime de pirataria e o crime de roubo, entendemos que esta se trata de uma falsa questão;
16. Pois, ambas as incriminações têm por trás a protecção dos bens jurídicos totalmente distintos;
17. Na verdade, o crime de pirataria não passa de um crime-meio para alcançar o crime-fim que é o roubo;
18. Acresce que materialmente falando, os crimes em implicam condutas diferentes cronologicamente;
19. Só quando o crime de pirataria se consumou é que se inicia os actos de execução do crime de roubo.
20. Assim, não se pode falar sequer de uma conduta preenche ao mesmo tempo, dois tipos incriminadores;
21. Pelo que falta, em absoluto, qualquer fundamento em estabelecer qualquer relação de consumpção entre eles.
22. A única solução jurídica certa e adequada para esta situação é o concurso real e efectivo de dois crimes.
23. No que se concerne à fixação da pena, ao contrário do entendimento do recorrente, não pensamos que a pena concreta encontrada pelo tribunal é excessiva;
24. Pois, são dois princípios fundamentais na determinação concreta da pena - a culpa do agente e a prevenção criminal - ;
25. Além disso, a lei delega ao julgador um espaço de actuação dentro da moldura abstracta.
26. Não se trata de uma actuação arbitrária mas sim vinculativa, pois, deve o julgador confrontar o caso concreto com as circunstâncias previstas no disposto do art° 65 do C.P.M., observando todos os factores favoráveis e desaforáveis, utilizando o seu prudente juízo de sensibilidade de acordo com as circunstâncias de cada caso concreto.
27. No caso em apreço, trata-se de um caso com grande impacto social, uma vez na altura dos factos, a via marítima constituía-se a única ligação do Território com o exterior (excepto a China Continental);
28. E pelas circunstâncias concretas do caso, mostra-se bem claro a imensa instabilidade causada para a comunidade;
29. Daí que se traduz uma necessidade premente em salvaguardara confiança comunitária na validade das normas preponderando o factor de prevenção geral.
30. Pelo que uma pena concreta, que ficou pouco acima da metade da moldura abstracta, não nós pareça excessiva nem exagerada.
31. De acordo com os elementos recolhidos, possui condição de fazer o desconto da pena, descontando todo o período de dezasseis (16) anos da pena (mesmo se inclua o período de liberdade; condicional);
32. Resta, portanto, ao recorrente o cumprimento de uma pena de dois (2) anos e seis (6) meses de prisão, e em dois (2) anos de multa à razão de 20 patacas diárias, o que perfaz o montante de Mop$14,440.00 a que corresponde a alternativa de 480 dias de prisão.
Termos em que o presente recurso não merece de provimento e de ser julgado improcedente na sua totalidade, contudo proceder ao respectivo desconto da pena em conformidade.
   
   Nesta Instância, o Digno Magistrado do Ministério Público limitou-se a manter a posição tomada na contra-alegações.
   
   Cumpre conhecer.
   Foram Colhidos vistos legais.
   
   À factualidade foram consignados por assentes os seguintes factos:
- O I, que em 13 de Junho de 1995, exercia as funções de investigador da polícia Judiciária, tinha exercido anteriormente, funções na PSP-UTIP.
- Onde efectuara vários transportes de quantias elevadas de dinheiro para Hong Kong.
- Ficando, por essa forma, a conhecer como a UTIP e as empresas de segurança privadas efectuavam os transportes de dinheiro para aquele Território.
- E, em Março de 1995, o I arquitectou um plano a fim de se apoderar daquelas quantias em dinheiro.
- Tendo contactado B (1º arguido) e C (2º arguido) que de imediato aderiram àquele plano.
- O qual consistia em introduzirem três indivíduos, que deveriam ser recrutados na RPC, no factoplanador que efectuasse o transporte de dinheiro.
- Os quais, munidos de armas que seriam entregues pelo I e pelo B (1° arguido), efectuariam o assalto cerca de 20 minutos após o barco sair de Macau.
- Devendo obrigar o comandante a navegar em direcção à Ilha de “Quiu Ou” onde se encontraria uma lancha rápida que transportaria os assaltantes e o dinheiro de que se apoderassem.
- Assim, e em cumprimento desse plano, o B (1º arguido) contactou A (30 arguido) o qualificou incumbido de arranjar uma lancha na RPC.
- Enquanto o I adquiriu, a indivíduos não identificadors uma pistola de calibre não apurado, com um carregador com sete balas, e um revólver de calibre não apurado, com um carregador de cinco balas.
- O A (3° arguido) recrutou, entretanto na RPC os D(4º arguido), E (5° arguido) e F (6° arguido) que ficaram incumbidos de praticarem o assalto.
- Enquanto o C (2° arguido) diligenciou pela obtenção de documentos falsos para os D (4° arguido), E (5° arguido) e F (6º arguido).
- Tendo logrado, por forma não apurada e mediante o pagamento de MoP$18.000,00, obter três B1RM falsificados para os D (4º arguido), E (5° arguido) e F (6º arguido).
- Os quais se introduziram no Território sem passarem por qualquer posto fronteiriço de controlo de pessoas, em inícios do mês de Junho de 1995.
- Altura em que foram distribuídas a D (4° arguido), E (5° arguido) e F (6º arguido) as armas referidas.
- Bem como telemóveis que o I comprara para assim poderem comunicar.
- E combinaram realizar o assalto no dia 5 de Junho de 1995, esperando que nesse dias, segunda feira, se realizassem transportes de dinheiro para Hong Kong.
- Contudo, como nesse dia não houve qualquer transporte de dinheiro para Hong Kong, acordaram que o assalto se deveria concretizar no dia 13 de Junho de 1995.
- Dia em que os C (2° arguido), D (4º arguido), E (5° arguido) e F (6° arguido), entraram no terminal do porto exterior, cerca dos 9 horas, onde aguardaram pelo contacto do I, que lhes indicaria o jactoplanador onde iria ser efectuado o transporte de dinheiro,
- Enquanto o I aguardava no exterior no parque destinado aos autocarros, pela chegada do carro da escolta de dinheiro.
- E os B (l° arguido) e A (3º arguido) aguardavam na lancha junto á Ilha de “Quiu Ou” na RPC.
- Tendo os D (4º arguido), E (5º arguido) e F (6º arguido) adquirido bilhetes para todas as carreiras abrangendo o horário compreendido entre as 9,45horas e as 11,30 horas.
- Cerca das 11,15 horas, o I avistou o carro de transporte de dinheiro da “H” e avisou o C (2º arguido) para que os 4º, 5° e 6° arguidos embarcassem no jactoplanador das 11,30 horas.
- O qual, após verificar que os D (4° arguido), E (5º arguido) e F (6º arguido) entraram naquele jactoplanador “Guia”, abandonou o terminal do Porto exterior reencontrando-se com o I.
- E ambos, de imediato, se dirigiram para a R.P.C..
- Enquanto os B (l° arguido) e A (3° arguido) eram avisados para se encontrarem com a lancha junto à Ilha de “Quiu Ou”.
- E cerca das 11,54 horas, já for a da zona de patrulha das vedetas da PMF, um dos D (4º arguido), E (5º arguido) e F (6° arguido) ordenou ao comandante do jacto planador “Guia” para parar os respectivos motores.
- Efectuando três disparos com uma das armas com que se haviam munido, contra a porta da cabine do comandante daquele jactoplanador.
- Causando, por essa forma, estragos naquele jactoplanador no montante de HKD$ 17.400,00.
- Logrando por essa forma que o comandante do “Guia” parasse os respectivos motores e lhe permtisse o acesso ao interior da cabine do comandante.
- Enquanto ordenavam aos mais de 120 passageiros e oito tripulantes do jacto planador para se manterem imobilizados.
- Ordenando, em seguida, ao comandante do “Guia” para se dirigir em direcção à Ilha de “Quiu Ou”, na R.P.C..
- Enquanto faziam seus, contra a vontade do legítimo dono, dez milhões de Hong Kong dólares do Banco da China que os elementos da “H” transportavam naquele jactoplanador.
- Após o que embarcaram, com o dinheiro, supra referido, na lancha, onde já se encontravam os B (1º arguido) e A (3º arguido), como inicialmente planeado.
- Tendo os cinco arguidos B (1º arguido), A (3º arguido), D (4º arguido), E (5º arguido) e F (6º arguido) abandonado, de imediato, aquele local, em direcção à R.P.C., locupletando-se com os referidos HKD$10.000.000,00.
- Após que os sete arguidos se reuniram, em local não apurado da R.P.C., e dividiram aquela quantia em dinheiro entre si e pela seguinte forma:
a) I – HKD$4.000.000,00;
b) HKD$l.000.000,00 para cada um dos arguidos B (1º arguido), C (2º arguido), A (3º arguido), D (4º arguido), E (5º arguido) e F (6ºarguido).
- Os arguidos agiram livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que as suas condutas não eram permitidas.
- Agiram, ainda, em conjunto e concertadamente, bem sabendo que o dinheiro de que se apoderaram não lhes pertencia e que contrariavam a vontade do respectivo dono.
- Não se inibindo de praticar tais factos numa embarcação que transportava mais de 120 passageiros além dos 8 elementos da tripulação.
- Quando a mesma se encontrava a navegar, usando armas proibidas e pondo em causa a segurança do navio e a integridade física dos seus passageiros e tripulantes.
- O produto do roubo foi recuperado quase na totalidade e entregue à ofendida “H”, faltando apenas uma quantia não apurada.
*
- O arguido B é operário auferindo mensalmente cerca de decorações auferindo mensalmente cerca de 10/15 mil patacas.
- Tem a seu cargo os pais, irmãos e filhos.
*
- Nada se apurou quanto à situação económica ou condição social dos restantes arguidos.
*
- Os arguidos D, E, F foram já julgados e condenados na RPC, por factos id6enticos aos dos autos, tendo o 1º sido condenado à pena de morte já executada (v. fls. 1177 a 1185 e 1341).
   O recorrente foi julgado e condenado em Hong Kong por factos idênticos aos dos autos, na pena de prisão de 16 anos pela prática do crime de “piracy”, pena essa que se encontra totalmente cumprida.
   
   Conhecendo.
   O recorrente que tinha sido julgado à revelia não optou pelo pedido de novo julgamento mas sim o meio de recurso para o Tribunal superior.
   No seu recurso, o recorrente levantou as seguintes questões:
   - imputou ao Tribunal a quo pela violação do princípio do caso julgado consagrado no artigo 153º do CPP de 1929 e, bem assim, o princípio de “ne bis in idem” plasmado no artigo 14.º, n.º 7, do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos, aplicável em Macau por força do artigo 40.º da Lei Básica da R.AE.M;
- a solução jurídica preconizada em nada se altera tomando em conta que o segundo crime (crime de roubo) é consumido pelo primeiro crime (crime de pirataria);
- não existem quaisquer elementos de conexão a Macau, sendo que, como se sabe, a norma do artigo 48º do C. Processual Penal de 1929 constitui um afloramento do princípio da territorialidade a que a lei prevalentemente manda atender na aplicação da lei penal no espaço;
- O Tribunal a quo ordenou indevidamente a notificação do recorrente por éditos, apesar de ter conhecimento de que o mesmo se encontrava em cumprimento da prisão em Hong Kong, tal como se certificou na fl. 1305 dos autos. Pelo que se encontra uma falta de notificação da pronúncia que conduz à nulidade processual nos termos do artigo 98º n° 5 do CPP de 1929.
   
   Vejamos então.
   
   1. Do princípio de caso julgado e de ne bis in idem
   Invocou-se esta questão preliminar de caso julgado e de ne bis in idem.
   De facto estes dois conceitos jurídicos dos princípios falam da mesma coisa, prendendo-se com a questão de uma pessoa não pode ser julgada e/ou condenada repetidamente pelos mesmos factos.
   Em processo penal, como se consagrara no artigo 153° do Código de Processo Penal de 1929, pode dizer-se que existe caso julgado material quando a decisão se torna firme, impedindo a renovação da instância em qualquer processo que tenha por objecto a apreciação do mesmo ou dos mesmos factos ilícitos.
   O caso julgado formal não assume semelhante função, nem contém, no essencial, dimensão substancial. O caso julgado formal traduz-se em mera irrevogabilidade de acto ou decisão judicial que serve de continente a uma afirmação jurídica ou conteúdo e pensamento, isto é, em inalterabilidade da sentença por acto posterior no mesmo processo.2
   De qualquer maneira, quanto ao caso julgado quer material quer formal nunca se pode falar nas jurisdições nos diferentes países. Mesmo no processo civil, sob forma especial, a força e a autoridade de caso julgado estrangeiro só pode desencadear-se na RAEM após obrigatório exame por órgão jurisdicional da RAEM - artigo 1199° n° 1 do Código de Processo Civil.
   A RAEM não assinou qualquer acordo com outro país ou região sobre reconhecimento recíproco das sentenças proferidos dos respectivos tribunais criminais, por isso, não tem mínima razão invocar aqui que a sentença condenatória pelos Tribunais de REA de Hong Kong, onde, ao lado da RAEM, ambas da RPC, se representa uma jurisdição diferente e goza o poder judicial independente e de julgamento de última instância (previsto nas Leis Básicas das ambas Regiões), constitui caso julgado para o Tribunal de RAEM.
   Nem o princípio de ne bis in idem. Se não vejamos.
   Este postulado jurídico traduz-se que ninguém pode responder, pela segunda vez, sobre o mesmo fato já julgado, ou ser duplamente punido pelo mesmo delito.
   O Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, aplicável à RAEM – artigo 40° da Lei Básica da RAEM - garante o direito de ser livre de dupla penalização, prevendo no n° 7 do seu artigo 14° nos seguintes termos: “Ninguém pode ser julgado ou punido novamente por motivo de uma infracção da qual já foi absolvido ou pela qual já foi condenado por sentença definitiva, em conformidade com a lei e o processo penal de cada país” (sub. Nosso).
   No entanto, esta regra não se aplica a processos por dois soberanos diferentes (a menos que o tratado de extradição relevante expressa uma proibição)3. Por exemplo, nos Estados Unidos, os governos estaduais e o governo federal são considerados soberanos separados. Assim, se alguém é acusado de um crime federal que também constitui um crime de Estado, então ele ou ela pode ser sujeito a processo no estado e tribunal federal pelo mesmo crime.
   Embora o Estatuto do Tribunal Penal Internacional de Roma cria uma forma diferente de ne bis in idem, esta não se encontra na mesma base para a sua aplicação, a nível das leis nacionais.
   Pois, o Estatuto de Roma que cria o Tribunal Penal Internacional (TPI) afirma que o princípio ne bis in idem tem um significado peculiar, especialmente se comparado ao direito supranacional europeu. A jurisdição do TPI é complementar à legislação nacional, e no artigo 20 do Estatuto de Roma determina que, mesmo que a princípio subsiste em termos gerais, isso não pode ser levado em consideração no caso de uma das duas condições (má vontade e incapacidade) de existência de jurisdição do tribunal supranacional ocorre. O artigo 10° do Estatuto do Tribunal Internacional Criminal para o antigo Yugoslavia e artigo 9º o Estatuto do Tribunal Internacional Criminal para Ruanda prevêem respectivamente que ne bis in idem pode ser aplicada principalmente para esclarecer que as sentenças do tribunal ad hoc são "mais forte" do que os de tribunais nacionais. Em outras palavras, os tribunais nacionais não podem agir contra os responsáveis ​​de crimes caem na jurisdição do tribunal, se o tribunal internacional já se pronunciou a sentença para os mesmos crimes. No entanto, o ICTY e ICTR pode julgar supostos criminosos já condenados pelos tribunais nacionais se:
   - a sentença definiu os crimes como "comum" , e
   - o Poder Judiciário do Estado não é considerado imparcial, o julgamento interno é considerado um pretexto para proteger os acusados ​​da acção legal da justiça internacional, ou o julgamento interno é considerado como não é justo em alguma base jurídica fundamental.
   É de reconhecer que não existe uma regra obrigatória de direito internacional (ius cogens) que institui um dever de respeitar a ne bis in idem entre os Estados. A aplicação do princípio, depende do conteúdo de tratados internacionais. Nós encontramos este princípio decorrente das disposições dos tratados, tanto em tratados de direitos humanos como em tratados bilaterais ou multilaterais que tratam dos assuntos respeitantes à cooperação judiciária em matéria penal.4
   Concluindo, não se aplica este princípio de ne bis in idem dentro das duas jurisdições diferentes. O julgamento na RAEM do ora recorrente quem tinha sofrido a condenação e cumprido a pena condenada em Hong Kong não viola este princípio, apesar de ter natureza constitucional.
   Já seria outra coisa a aplicação do disposto no artigo 117° do Código Penal de 1886 que se prevê quanto à medida processual ou pena sofrida fora de Macau:
   “Na duração das penas e medidas de segurança privativas de liberdade levar-se-á em conta por inteiro:
   1° …
   2° A prisão que houver sido cumprido em execução de condenação por tribunal estrangeiro pelo mesmo crime;
   … .”
   E no Código Penal de 1997, no seu artigo 76°, p revês que: “É descontada, nos termos dos artigos anteriores, qualquer medida processual ou pena que o agente tenha sofrido, pelo mesmo ou pelos mesmos factos, fora de Macau”.
   Esta previsão traduz-se que as medidas de coacção e as penas sofridas no estrangeiro também são descontadas na pena sofridas em Macau, desde que digam respeito ao mesmo facto pelo qual o agente é julgado em Macau. Mesmo a medida processual ou a pena sofrida no estrangeiro não existem na ordem jurídica de Macau, o tribunal de Macau pode proceder o desconto que achar equitativo.5
   Como resulta dos autos, o recorrente foi julgado e condenado em Hong Kong por factos idênticos aos dos autos, na pena de prisão de 16 anos pela prática do crime de “piracy”, pena essa que se encontra totalmente cumprida.
   E na RAEM, o recorrente foi condenado:
   1 – Por co-autoria material de um crime previsto e punido pelo art. 162° § 1°, 2° e 3° do Código Penal de 1886 na pena de dezassete anos de prisão e dois anos de multa à razão de 20 patacas diárias a que corresponde 480 dias de prisão alternativa e
   2 – Por co-autoria material de um crime previsto e punido pelo art. 204º, nos. 1 e 2 al, b), 198°, n.º 2 e 196º al. b) do Código Penal de Macau na pena de oito anos de prisão.
   Em cúmulo jurídico das penas, condenou os mesmos na única de dezoito anos e seis meses de prisão e em dois anos de multa à razão de 20 patacas diárias o que perfaz o montante de MOP$14.440,00, a que corresponde a alternativa de 480 dias de prisão.
   - A título de indemnização por danos patrimoniais foram ainda os arguidos condenados solidariamente a pagar HKD$17.400,00, acrescida de juros vencidos e vincendos desde 13.6.95 e até integral pagamento à G e a quantia de HKD$l0.000.000,00 à empresa “H”, acrescida dos juros vencidos e vincendos à taxa legal desde 13.6.95 até integral pagamento, devendo nessa quantia ser deduzido todo o recuperado e respectivos juros até integral pagamento, ficando assim a cargo dos arguidos a diferença entre o total da indemnização e o que foi ou venha a ser recebido pela ofendida.
   Na parte penal, com o devido desconto da pena já sofrida em Hong Kong, o recorrente ainda tem que cumprir mais 2 anos e 6 meses da pena de prisão e a pena de multa.
   E na parte da indemnização cível, contra o recorrente a condenação ainda se constitui o título executivo, caso o titular ainda não tenha ser pago totalmente.
   
   3. Concurso dos crimes
   Invocou subsidiariamente a questão de consumação do crime de roubo pelo crime de pirataria.
   A qualificação jurídica dos factos encontra-se resolvida nos acórdãos proferidos pelo antigo Tribunal Superior de Justiça no processo n° 531 em 30 de Outubro de 1996 e no processo n° 799 de 18 de Março de 1998 respectivamente relacionado a outros co-autores I e B, qualificação essas que devem ser mantidas no presentes autos.
   O crime de pirataria, p. e p. pelo artigo 162 do Código Penal de 1886, permaneceu-se em vigor até a 19 de Dezembro de 1999, por força do disposto no artigo 9 n° 1 do D.L. n° 58/95/M, como consignou o acórdão do processo 531 de 30 de Outubro de 1996, “não pressupõe necessariamente um desígnio político na sua comissão, porquanto o interesse protegido por este ilícito é um mero interesse do Estado em assegurar a navegação contra o perigo de violências ou ameaças de violências e o fim visado pelo respectivo agente é o de cometer roubos ou violências ou de atentar contra a segurança do Estado ou de nação amiga”, e essa infracção encontra-se em concurso aparente com a infracção p. e p. pelo artigo 275° do Código Penal de Macau.
   Quanto ao crime de roubo, visa proteger essencialmente a propriedade das pessoas, bens jurídicos obviamente distintos dos protegidos pelo artigo 162° do Código Penal de 1886, não havendo lugar a consumação entre estes dois crimes.
   Resolvida a questão em causa, dá-se assim improcedente este fundamento recursório.
   
   4. Incompetência territorial da RAEM
   Passou o recorrente invocar a incompetência do tribunal de Macau, afirmando que “nenhumas das situações previstas no artigo 48º do Código de Processo Penal de 1929 se verificaram no presente caso: o crime foi praticado em mar alto mas não a bordo de um navio de Macau, i.e., não a bordo de um navio matriculado em Macau, sendo, que o agente não se dirigia ao porto de Macau nem aí desembarcou”.
   Previa este citado artigo 48° que:
   “É competente para conhecer das infracções a que seja aplicável a lei penal portuguesa cometidas a bordo de navio português no mar alto ou surto em porto estrangeiro ou de aeronave portuguesa na zona livre do ar ou em território estrangeiro o juízo da comarca a que pertencer o porto nacional para onde o agente se dirigir ou onde desembarcar; e, não se dirigindo para porto algum português, ou fazendo parte da tripulação, o da comarca do lugar da matrícula.”
   Não tem mínima razão o recorrente.
   Em primeiro lugar, não podemos deixar de dizer que não está correcta a afirmação do recorrente ao dizer “não a bordo de um navio matriculado em Macau”, porque essa afirmação não tinha qualquer suporte fáctico.
   Por outro lado, o que é essencial neste artigo, que foi esquecido pelo recorrente, “É competente para conhecer das infracções a que seja aplicável a lei penal portuguesa (leia-se Macau) ”. Quer dizer, sempre que a lei de Macau seja aplicável às infracções cometidas, o Tribunal de Macau será competente para conhecer e julgar delas.
   Sem necessidade de transcrever o artigo 53° do Código Penal de 1886 que regulava a aplicação da lei penal do espaço, sabemos logo o tribunal de Macau é competente. Tais como os outros processos em que eram réus e co-autores do presente caso, I e B, o Tribunal exerceu a sua competência não só pela conexão da sua execução na nave, mas sim pelas outras, tais como o lugar de planeamento, alguns co-autores vindo do interior da China entraram em Macau pelos postos alfandegados, o facto ilícito foi executado contra a companhia matriculada em Macau, contra o dono da nave que é pessoa colectiva de Macau, etc.
   Improcede o recurso nesta parte.
   
   5. Invalidade da notificação do despacho de pronúncia
   Sendo certo, como resultou dos autos, dada a certidão negativa da notificação do despacho de pronúncia, o funcionário judicial informou aos autos (fl. 1305) que o mesmo arguido se encontra preso em Hong Kong a cumprir a prisão condenada pelo crime de pirataria. O Mm° Juiz titular do processo ordenou a notificação por éditos do arguido.
   Como se sabe, entre Macau e Hong Kong, ou entre o Governo Britânico e Governo Português extensivo a Macau, não estava em vigor, até agora, qualquer acordo de auxílio em matéria criminal, nomeadamente para a notificação pela carta rogatória, não foi minimamente possível proceder a notificação nos alegados termos do artigo 83º, § 8º, do Código de Processo Penal.
   Ao invocar esta questão, o recorrente nunca pensou neste obstáculo política-judicial. O que é mais importante, o Tribunal de Macau não conseguir notificar o réu em Macau, e neste caso concreto, só podia proceder à notificação do despacho em causa como se fosse o réu ausente.
   Não se verifica qualquer vício na notificação edital do despacho de pronúncia, improcedendo o recurso nesta parte.
   
   Ponderado resta decidir.
   
   Pelo exposto, acordam neste Tribunal de Segunda Instância em negar provimento ao recurso interposto pelo réu A, mantendo-se a decisão recorrida, pela forma a proceder o desconto da pena cumprida em Hong Kong, tão só na contagem da pena.
Custas pelo recorrente.
RAEM, aos 20 de Fevereiro de 2014

Choi Mou Pan
Chan Kuong Seng
Tam Hio Wa

1 Devendo ser por lapso no escrito, aqui devia ser Código de Processo Penal de 1929 e não Código Penal.
2 Cfr. Castro Mendes, “Limites Objectivos do Caso Julgado em Processo Civil”, p. 16.
3 Por exemplo, vide o caso de “A.P. v Italy”, UN HRC CCPR/C/31/D/204/ 1986.
4 John A.E. Vervaele, “The transnational ne bis in idem principle in the EU Mutual recognition and equivalent protection of human rights”, publicado no 《Utrecht Law Review》de Utrecht University, School of Law, in Volume 1, Issue 2 (December) 2005. (http://www.utrechtlawreview.org)
5 Germano Marques da Silva, 1993, p. 179; Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal, Universidade Católica Editora, p. 252.
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