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Processo nº 483/2009
(Autos de recurso civil e laboral)

Data: 20/Fevereiro/2014

Assunto: Erro-vício
  Artigos 240º, 241º do Código Civil

SUMÁRIO

  - Para que um negócio seja anulado com fundamento em erro-vício, é necessário o seguinte:
・ ser o erro essencial (subjectiva e objectivamente) e cognoscível pelo declaratário ou tenha sido causado ou induzido por este; ou
・ se o erro não for objectivamente essencial, existir acordo sobre a essencialidade do motivo, ou o conhecimento da essencialidade subjectiva por parte do declaratário ou um dever de não ignorância dessa essencialidade subjectiva.
       
O Relator,

________________
Tong Hio Fong

Processo nº 483/2009
(Autos de recurso civil e laboral)

Data: 20/Fevereiro/2014

Recorrentes:
- A (Réu)
- B (Ré)

Recorrida:
- C (Autora)

Acordam os Juízes do Tribunal de Segunda Instância da RAEM:

I) RELATÓRIO
A e B, Réus nos autos da acção ordinária a correr termos no Tribunal Judicial de Base da RAEM, inconformados com a sentença que anulou o contrato de compra e venda celebrado entre eles e a Autora C, e que condenou os Réus a restituir e pagar determinadas quantias, vêm interpor o presente recurso ordinário, em cujas alegações formulou as seguintes conclusões:
- O erro que recaia sobre motivo determinante da vontade, como, no caso, o relativo ao objecto mediato do negócio, em que alegadamente a A. julgou autorizado pelas autoridades competentes um compartimento/arrecadação, coberto a cimento e zinco, na varanda da fracção autónoma que havia prometido comprar e comprou, para ser causa de anulabilidade da declaração negocial: a) tem de ser essencial – i.e. tem de recair sobre os motivos determinantes da vontade do errante, de tal modo que este, caso tivesse tido conhecimento da verdade, não teria celebrado o negócio ou, a celebrá-lo, só o teria feito em termos substancialmente distintos (n.º 2, a) – pressuposto da essencialidade subjectiva), e o mesmo aconteceria com uma pessoa razoável colocada na posição do errante que tivesse conhecimento da verdade (n.º 2, b) – pressuposto da essencialidade objectiva), e; b) cognoscível pelo declaratário, determinando-se tal cognoscibilidade pela possibilidade de uma pessoa de diligência normal, face ao conteúdo e circunstâncias do negócio e à situação das partes, se aperceber dele; ou c) causado por informações prestadas pelo declaratário – interpretação diversa faz indevida aplicação do art.º 240º do C.C.;
- Provado que “a A. nunca teria adquirido a fracção aos RR. se soubesse, ou estes lhe tivessem dado conhecimento, dos problemas que afectavam a fracção”, está provado o requisito da essencialidade subjectiva do erro, mas é impossível configurar que tal erro tivesse a mesma essencialidade para pessoa razoável colocada na posição da errante, dada a notoriedade para qualquer pessoa de que um compartimento/arrecadação, coberto a cimento e zinco, na varanda da fracção autónoma, não podia ter sido autorizado pelas autoridades competentes, e ser de conhecimento generalizado que os compradores de fracções autónomas em Macau as compram e querem comprar ainda que as mesmas tenham construção ilegal similar – ou, seja o erro em que incorreu a A. não se reveste de essencialidade objectiva – interpretação diversa faz indevida aplicação do art.º 240º, n.º 2 a) e b) do C.C.;
- Dado que nos autos não se encontra provado que os RR. conheciam a vontade real da A. ou declarante como pretendendo comprar uma fracção livre de construções não autorizadas pelas entidades competentes, haveria que alegar e provar (o que não foi feito) que pessoa de diligência normal poderia ter apreendido ser tal elemento do negócio essencial à formação da sua vontade de comprar a fracção dos termos da sua declaração negocial, das circunstâncias em que foi emitida, do conteúdo e circunstâncias do negócio ou ainda, da situação das partes – interpretação diversa faz indevida aplicação do art.º 240º, n.º 3 do C.C.;
- Ainda que se dessem por verificados os pressupostos da essencialidade subjectiva e cognoscibilidade, teriam ainda que existir factos que pudessem ser subsumidos na provisão legal que impõe o reconhecimento da essencialidade do motivo por acordo das partes, ou o conhecimento ou a obrigação de conhecimento por parte dos RR. da essencialidade para a A. de que a fracção não tivesse qualquer construção ilegal, conhecimento, que não foi alegado e provado, e obrigação de conhecimento, cujo fundamento legal a A. e a sentença recorrida não identificam e os RR. não conseguem descortinar dada a realidade do mercado imobiliário de Macau – interpretação diversa faz indevida aplicação do art.º 241º, do C.C.;
- No caso “sub judice” qualquer pessoa de diligência normal se aperceberia de que existindo “na varanda da referida fracção autónoma um compartimento/arrecadação, coberto a cimento e zinco”, tal construção não podia estar autorizada pelas entidades competentes, seja pelo material de construção utilização “zinco”, quer pela localização do compartimento/arrecadação na “varanda da referida fracção”, há pois que entender que o risco da verificação do erro foi aceite pela A. declarante ou, em face das circunstâncias, deveria tê-lo sido, ou ainda, que o erro foi devido a sua culpa grosseira, o que não permite a invalidação do negócio-interpretação diversa faz indevida aplicação do art.º 240º, n.º 4, do C.C.;
- Se se entender que o erro não decorreu do facto de existir uma construção ilegal, mas sim do facto de haver sido ordenada a sua demolição sem que de tal houvesse sido dado conhecimento à A., ou seja, que a A. comprou a fracção autónoma na convicção errónea de que sobre a mesma não existia qualquer processo de transgressão pela construção ilegal existente na varanda – os designados problemas – então a A. estava em erro sobre a base do negócio, i.e. se nenhuns problemas com as autoridades existissem à altura da aquisição, não obstante haver-se apercebido da ilegalidade da referida construção, ainda assim, compraria a fracção nos termos em que a comprou – interpretação diversa faz indevida interpretação e aplicação do art.º 245º do C.C.;
- A anulação do negócio só obriga à restituição de tudo o que tiver sido prestado, ou seja, à restituição do preço pago pela compra da fracção aos RR., que foi a única coisa prestada pela A. aos RR. em virtude do negócio – interpretação diversa faz indevida aplicação do art.º 282º do C.C.;
- A eventual violação por parte dos RR. da obrigação que lhes é legalmente imposta de negociar tanto nos preliminares como na formação de um contrato segundo as regras da boa fé, adstringindo-os, pois os deveres de informação a prestar todos os esclarecimentos necessários à conclusão honesta do contrato, só os constitui na obrigação de repor a A. na situação que teria se o contrato não tivesse sido sequer celebrado-interpretação diversa faz indevida aplicação do art.º 219º, n.º 1 do C.C.;
- Provados somente os seguintes factos nos autos: “o preço da propriedade imobiliária em Macau continuou em fase ascendente até inícios de 2008, tornando mais onerosa a aquisição de nova fracção”, “sendo muito difícil encontrar uma fracção que reúna as condições que a fracção exibe, nomeadamente, preço, área e localização do prédio em que está inserida” e que “para adquirir hoje uma fracção semelhante a A. teria que gastar cerca de mais HKD$250.000,00 do que aquilo que despendeu na compra que fez aos RR.”, não podem os RR. ser condenados a pagar à A. a quantia de HKD$250.000,00 ou qualquer outra até esse limite, por tal não se destinar a reconstituir a situação em que a A. hoje estaria se não tivesse celebrado o contrato – o designado interesse contratual negativo ou de confiança da parte lesada-, mas a reconstituir situação semelhante àquela em que a A. estaria no presente se o contrato de compra e venda não fosse anulado – o designado interesse contratual positivo-, cuja reposição só seria viável em caso de preservação do negócio- interpretação diversa faz indevida aplicação do art.º 557º do C.C.;
- O princípio geral quanto à indemnização, é o dever de reconstituir a situação anterior à lesão, isto é, o dever de reposição das coisas no estado em que estariam não fora o acto lesivo – no caso dos autos a celebração do contrato com violação dos deveres impostos pela boa fé, nos preliminares e formação do contrato-interpretação diversa faz indevida aplicação dos artigos 2019º, n.º 1, e 557º do C.C.
- Sendo assim, deve a sentença recorrida ser revogada e substituída por outra que dê acolhimento às conclusões dos recorrentes, i.e., que considera totalmente improcedentes os pedidos formulados pela Autora, ou se assim se não entender, procedentes os pedidos de anulação do negócio e de restituição do preço prestado, ou, se assim não entender esses dois pedidos e o pedido de ressarcimento dos danos decorrentes do dispêndio de MOP$25.275,00 com as despesas decorrentes da escritura de compra e venda e honorários de notário, considerando-se os demais totalmente improcedentes.
A recorrida apresentou as suas contra-alegações, pugnando pela improcedência do recurso.
Cumpre decidir.
***
II) FUNDAMENTOS DE FACTO E DE DIREITO
A sentença deu por assente a seguinte factualidade:
A 6 de Maio de 2005, os ora Réus A e B declararam prometer vender a D e C, que declararam prometer comprar, a fracção autónoma para habitação designada por “A1” do 1º andar “A”, do prédio urbano sito na Rua XX, n.ºs XX, em Macau, tudo nos termos constantes do documento junto aos autos a fls. 38 dos autos, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido e cuja tradução se encontra a fls. 49 v e 50. (A)
A 9 de Maio de 2005, os ora Réus A e B declararam prometer vender a C, que declarou prometer comprar, a fracção autónoma para habitação designada por “A1” do 1º andar “A”, do prédio urbano sito na Rua XX, nos XX, em Macau, tudo nos termos constantes do documento junto aos autos a fls. 20 dos autos, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido e cuja tradução se encontra a fls. 47. (B)
A 18 de Maio de 2005, os ora Réus A e B declararam vender a C, que declarou comprar, a fracção autónoma para habitação designada por “A1” do 1º andar “A”, do prédio urbano sito na Rua XX, nos XX, em Macau, descrito na Conservatória do Registo Predial de Macau sob o n.º 1XXX9, a fls. 118 YO do tivro B-38, tudo nos termos constantes do documento junto aos autos a fls. 58 a 60 dos autos, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido. (C)
Uma primeira prestação, no valor de HKD$50.000,00 (cinquenta mil dólares de Hong Kong), foi paga através do cheque n.º CXXXX48, sacado sobre o Banco Tai Fung com a data de 6 de Maio de 2005, e foi recebida pela 2ª Ré, B. (D)
O segundo pagamento, no valor de HKD$150.000,00 (cento e cinquenta mil dólares de Hong Kong), teve lugar em 9 de Maio de 2005 e foi efectuado através do cheque na CXXXX50, sacado sobre o Banco Tai Fung, tendo sido recebido por ambos os Réus, A e B. (E)
O pagamento remanescente ocorreu no acto da outorga da escritura de compra e venda, em 18 de Maio de 2005, e foi realizado através do cheque na CXXXX53, sacado sobre o Banco Tai Fung, no valor de HKD$510.000,00 (quinhentos e dez mil dólares de Hong Kong), tendo sido recebido pelo 1º Réu, A. (F)
Encontrava-se nessa altura em curso, na Direcção dos Serviços de Solos, Obras Públicas e Transportes, um processo de transgressão com o n.º 285/2005/F, por infracção ao Decreto-Lei n.º 79/85/M, de 21 de Agosto. (G)
Os Réus não procederam à demolição ordenada. (I)
A 10 de Março de 2005, E declarou prometer vender a A, que declarou prometer comprar, pelo preço total de HKD$610.000,00 (seiscentos e dez mil dólares de Hong Kong), a fracção autónoma para habitação designada por “A1” do 1º andar “A”, do prédio urbano sito na Rua XX, n.ºs XX, em Macau, nos termos constantes do documento junto aos autos a fls. 37, cujo teor se da por integralmente reproduzido, e cuja tradução se encontra a fls. 48-49. (J)
Ficando sujeito a condição suspensiva de rescisão de um contrato promessa de compra e venda previamente celebrado pelos proprietários com F e G. (L)
Resolvido tal contrato, os Réus pagaram no dia 17/03/2005 à “Companhia de Fomento Predial H”, a título de comissão na intermediação pela compra que fizeram do imóvel, a quantia de HKD$6.000,00 (seis mil dólares de Hong Kong). (M)
A 8 de Abril de 2005 foi registada na Conservatória do Registo Predial, sob a inscrição n.º 1XXXX9G, a aquisição a favor de A, da fracção autónoma para habitação designada por “A1” do 1º andar “A”, do prédio urbano sito na Rua XX, n.ºs XX, em Macau. (N)
Na data da escritura de compra, 06/04/2005, os Réus procederam ao pagamento do remanescente preço em dívida ao vendedor, receberam as chaves e lhes foi feita entrega da fracção pelo procurador dos vendedores. (O)
A Autora suportou o pagamento das despesas decorrentes da escritura, nelas se incluindo os honorários do Notário, tudo no valor de MOP$25.275,00 (vinte e cinco mil duzentas e setenta e cinco patacas). (1º)
Na varanda da referida fracção autónoma existe um compartimento/arrecadação, coberto a cimento e zinco. (2º)
Estrutura que não tinha sido autorizada pelas competentes autoridades. (3º)
Tendo omitido tais factos à Autora (4º)
O Réu omitiu à Autora os factos referidos em G). (5º)
A Autora nunca teria adquirido a fracção aos Réus se soubesse, ou estes lhe tivessem dado conhecimento, dos problemas que afectavam a fracção. (6º)
Era intenção da Autora, ao adquirir a fracção referida em C), arrendá-la. (7º)
A Autora esperava tirar um rendimento mensal de MOP$3.500,00. (8º)
O preço da propriedade imobiliária em Macau continuou em fase ascendente até inícios de 2008, tornando mais onerosa a aquisição de nova fracção. (11º)
Sendo muito difícil encontrar uma fracção que reúna as condições que a fracção adquirida exibe, nomeadamente preço, área, e localização do prédio em que está inserida. (12º)
Para adquirir hoje uma fracção semelhante a Autora teria que gastar cerca de mais HKD$250.000,00 do que aquilo que despendeu na compra que fez aos Réus (13º)
A Autora e os Réus não conseguiram chegar a uma resolução negocial. (14º)
Os Autores aceitaram comprar a mesma após visita à fracção, acompanhados do funcionário da agência de intermediação. (15º)
*
    É perante a matéria de facto acima descrita que se vai conhecer do recurso, tendo em conta as respectivas conclusões que delimitam o seu âmbito.
    Prevê-se no artigo 589º, nº 3 do Código de Processo Civil de Macau, “nas conclusões da alegação, pode o recorrente restringir, expressa ou tacitamente, o objecto inicial do recurso”.
Com fundamento nesta norma tem-se entendido que se o recorrente não leva às conclusões da alegação uma questão que tenha versado na alegação, o tribunal de recurso não deve conhecer da mesma, por se entender que o recorrente restringiu tacitamente o objecto do recurso.1
    No caso vertente, o tribunal a quo anulou o contrato de compra e venda celebrado entre a Autora e os Réus sobre a fracção autónoma referida nos autos, por entender que aquela tinha celebrado o tal negócio jurídico com erro sobre o objecto do negócio.
    Mais foram os Réus condenados na douta decisão recorrida a pagar à Autora, em consequência da anulação da compra e venda, o preço da compra e venda no montante de HKD$710.000,00 e as despesas gastas pela Autora nesse negócio no valor de MOP$25.275,00, ambos acrescidos de juros, bem como a quantia de MOP$258.000,00 a título de indemnização do interesse contratual negativo.
    A questão que se coloca neste recurso é saber se estão verificados os requisitos do erro-vício, e em afirmativo, quais são os respectivos efeitos jurídicos.
Ao abrigo do artigo 240º do Código Civil de Macau dispõe-se o seguinte:
“1. A declaração negocial é anulável por erro essencial do declarante, desde que o erro fosse cognoscível pelo declaratário ou tenha sido causado por informações prestadas por este.
2. O erro é essencial quando: a) Tenha recaído sobre os motivos determinantes da vontade do errante, de tal modo que este, caso tivesse tido conhecimento da verdade, não teria celebrado o negócio, ou, a celebrá-lo, só o teria feito em termos substancialmente distintos; e b) Uma pessoa razoável colocada na posição do errante, caso tivesse tido conhecimento da verdade, não teria celebrado o negócio ou, a celebrá-lo, só o teria feito em termos substancialmente distintos.
3. O erro considera-se cognoscível quando, face ao conteúdo e circunstâncias do negócio e à situação das partes, uma pessoa de normal diligência colocada na posição do declaratário se podia ter apercebido dele.
4. Contudo, o negócio não pode ser invalidado se o risco da verificação do erro foi aceite pelo declarante ou, em face das circunstâncias, o deveria ter sido, ou ainda quando o erro tenha sido devido a culpa grosseira do declarante.”
Resulta dessa norma que para que um negócio possa ser anulado, é necessária a verificação cumulativa dos seguintes pressupostos:
- ser o erro do declarante essencial; e
- ser o erro cognoscível pelo declaratário ou ter sido causado por informações prestadas por este.
No que respeita à essencialidade, o erro é essencial se, sem ele, se não celebraria qualquer negócio ou se celebraria um negócio com outro objecto ou de outro tipo ou com outra pessoa.2
Trata-se aqui da chamada essencialidade subjectiva, no sentido de que a essencialidade do erro está encarada sob o aspecto subjectivo do errante.
Resulta da matéria dada como provada que a Autora nunca teria adquirido a fracção aos Réus se soubesse, ou estes lhe tivessem dado conhecimento, dos problemas que afectavam a fracção, daí que, sem necessidade de grande esforço, entendemos estar verificado o requisito da essencialidade prevista na alínea a) do nº 2 do artigo 240º do Código Civil.
Além disso, o nosso legislador vai ainda mais longe no respeitante à questão da essencialmente do erro, isto é, para além da essencialidade, digamos subjectiva, do erro prevista na alínea a), exige ainda a chamada essencialidade objectiva, no sentido de que qualquer pessoa, colocada na posição do errante, teria agido da mesma maneira, ou seja, caso qualquer pessoa normal tivesse tido conhecimento da verdade, também não teria celebrado o negócio ou só o teria feito em termos substancialmente distintos.
No presente caso, ficou provado que por contrato-promessa de 9 de Maio de 2005, os Réus prometeram vender e a Autora prometeu comprar a fracção autónoma para habitação devidamente identificada nos autos, tendo ambas as partes outorgado a escritura pública de compra e venda em 18 de Maio de 2005.
Provado ainda que na fracção em causa existia um compartimento ou arrecadação coberto a cimento e zinco, cuja construção nunca tinha sido autorizada pelas autoridades competentes, bem como encontrava-se em curso nessa altura, na Direcção dos Serviços de Solos, Obras Públicas e Transportes, um processo de transgressão por infracção administrativa.
Para a Autora, a sua posição foi clara, pois provado está que se soubesse ou lhe tivesse dado conhecimento daqueles problemas, nunca teria adquirido a referida fracção.
Mas para uma pessoa normal, terá necessariamente a mesma atitude da Autora?
Salvo o devido respeito por melhor entendimento, entendemos que a resposta não deixa de ser negativa.
Pode ser verdade que há pessoas que não estão interessadas em comprar casas com obras ilegais ou não legalizadas, mas também há pessoas que não interessam se a casa tenha ou não aquele tipo de obras.
De facto, é de conhecimento generalizado que uma boa parte das fracções autónomas de Macau têm obras ou construções não legalizadas, designadamente varandas fechadas, grades de ferro nas paredes exteriores, divisões interiores, etc.
Muitas vezes, de acordo com as regras de experiência comum verificadas em Macau, os compradores nem sempre interessam saber se as obras estão devidamente legalizadas, ou porque acham que são situações de facto comuns e generalizadas em Macau, ou porque mesmo que saibam serem obras ilegais ou não legalizadas, aceitam o risco de virem ser punidos administrativamente se as obras forem descobertas.
Daí que, por não se ter logrado a prova de que o erro incorrido pela Autora é objectivamente essencial, o negócio celebrado entre a Autora e os Réus deixa de ser anulável com fundamento no disposto no artigo 240º do Código Civil de Macau.
*
Vejamos a seguir se, ainda que o erro não preencha as condições da alínea b) do nº 2 do artigo 240º, o negócio é ainda anulável nos termos do artigo 241º do mesmo diploma legal.
Consagra-se nessa disposição legal que:
“Ainda que o erro não preencha as condições da alínea b) do nº 2 do artigo anterior, o mesmo é ainda causa de anulação do negócio:
a) Se as partes houverem reconhecido, por acordo, a essencialidade do motivo; ou
b) Se, verificando-se os demais pressupostos constantes do artigo anterior, o declaratário conhecia ou não devia ignorar a essencialidade para o declarante do elemento sobre que incidiu o erro.”
De acordo com a referida norma, prevê-se que mesmo que não se encontre verificada a situação prevista na alínea b) do nº 2 do artigo 240º, ou seja, se o erro não for objectivamente essencial, o negócio não deixará de ser anulável se, das duas uma, ou as partes do negócio houverem reconhecido, por acordo, a essencialidade do motivo, ou o declaratário conhecia ou não devia ignorar a essencialidade para o declarante do elemento sobre que incidiu o erro.
Sobre a questão em apreço, este TSI já teve oportunidade de se pronunciar, designadamente no Processo 443/2009, nos seguintes termos:
“A disciplina do erro no novo Código teve uma mexida mais unitária, talvez das mais profundas e menos estudadas. Agora, para que o negócio seja anulado importa que o erro essencial seja cognoscível pelo declaratário, ou tenha sido causado ou induzido por este, exigindo-se ainda nos casos de erro não objectivamente essencial acordo sobre a essencialidade do motivo ou o conhecimento da essencialidade subjectiva (para o declarante), por parte do declaratário ou um dever de não ignorância dessa essencialidade subjectiva - art. 241º.
Tudo isto resultante de uma formulação mais esclarecedora, ainda que algo rebuscada, dos artigos 240º e 241º do CC, manifestamente mais protectora do declaratário e do comércio jurídico, onde se define o que seja o erro essencial e a cognoscibilidade.”
No vertente caso, salvo o devido respeito, verificamos que nem uma nem outra situação se retiram da matéria de facto provada.
Em primeiro lugar, no tocante ao erro que recai sobre os motivos determinantes da vontade, aquele não se refiram à pessoa do declaratário nem ao objecto do negócio (podendo, todavia, referir-se à pessoa de terceiro). É o caso, por exemplo, de se arrendar uma casa na convicção errónea, por parte do arrendatário, de que ia ser transferido para certa localidade. Nesse exemplo, seria necessário que, por acordo, se tivesse aceitado que o arrendamento era feito pelo facto de o arrendatário ser transferido para aquela localidade.3
Ora bem, nos presentes autos recursórios, não se logrou alegar nem provar que as partes tenham chegado a algum acordo sobre aquele aspecto, daí que, sem necessidade de delongas considerações, não se verifica o requisito previsto na alínea a) do artigo 241º.
Em segundo lugar, no que concerne à condição prevista na alínea b), também não resulta da matéria provada que o declaratário conhecia ou não devia ignorar a essencialidade para o declarante do elemento sobre que incidiu o erro.
Segundo esta alínea, a anulabilidade do negócio depende de o destinatário da declaração conhecer ou dever conhecer a essencialidade para o declarante do elemento sobre que incidiu o erro. Por exemplo, seria anulável a declaração se o destinatário conhecesse ou devesse conhecer que o declarante só por 10 e não por 20 realizaria a compra.4
Não obstante que os Réus conheciam da existência de obras ilegais na fracção autónoma em causa, mas nenhuma prova foi no sentido de que os Réus, aquando da escritura pública de compra e venda, conheciam ou deviam conhecer que a Autora só compraria a fracção se nenhuma obra ilegal tivesse sido feita nessa mesma fracção.
Uma vez que não se encontrando verificados todos os requisitos necessários legalmente previstos, o negócio não pode ser anulado.
Assim sendo, e não podendo o contrato da compra e venda da fracção autónoma ser anulado, prejudicado fica o conhecimento das restantes questões suscitadas pelos recorrentes.
*
Antes de terminar, temos ainda a questão de eventual litigância de má fé suscitada pelos Réus no incidente de habilitação de cessionário, a qual foi relegada para ser decidida a final, alegando os mesmos que a Autora foi vender o objecto do negócio de compra e venda, cuja anulação havia pedido, a uma pessoa de sua família, nada comunicando no processo ou aos outros sujeitos da acção, omitindo assim de forma grave o dever de cooperação.
Salvo o devido respeito, entendemos sem razão os Réus.
Em primeiro lugar, salvo excepções legais, entendemos que a venda de coisa ou direito litigioso é legalmente admissível (artigo 867º do Código Civil).
Em segundo lugar, realizada a venda de coisa ou direito em litígio, a habilitação pode ser promovida tanto pelo transmitente ou cedente, como pelo adquirente ou cessionário, ou pela parte contrária, ao abrigo do artigo 306º, nº 2 do Código de Processo Civil de Macau, assim ninguém está obrigado a efectuar comunicação de venda à parte contrária, pois enquanto não for feita a habilitação, o transmitente continua a ter legitimidade para a causa, conforme se estatui no nº 1 do artigo 215º do mesmo Código.
Nestes termos, dificilmente poderia afirmar que a Autora litigou de má fé ao proceder a venda do imóvel em litígio a pessoa terceira.
***
III) DECISÃO
Face ao exposto, acordam em conceder provimento ao recurso, revogando a sentença recorrida, e em consequência, julgar improcedente a acção intentada pela Autora C contra os Réus A e B.
Julga-se improcedente o pedido de condenação da Autora como litigante de má fé, fixando-se a taxa de justiça em 4 U.C. a suportar pelos Réus.
Custas pela recorrida em ambas as instâncias.
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Macau, 20 de Fevereiro de 2014




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Tong Hio Fong
(Relator)

_________________________
Lai Kin Hong
(Primeiro Juiz-Adjunto)

_________________________
João Augusto Gonçalves Gil de Oliveira
(Segundo Juiz-Adjunto)

1 Viriato Manuel Pinheiro de Lima, in Manual de Direito Processual Civil, CFJJ, 2005, página 663
2 Carlos Alberto da Mota Pinto, in Teoria Geral do Facto Jurídico, 4ª edição, pág. 507
3 Pires de Lima e Antunes Varela, in Código Civil Anotado Volume I, 4ª edição, pág.252
4 Pires de Lima e Antunes Varela, in Código Civil Anotado Volume I, 4ª edição, pág.232
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Processo 483/2009 Página 21