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Processo nº 51/2014 Data: 13.02.2014
(Autos de recurso penal)

Assuntos : Crime de “falsificação de documentos”.
Falsificação.
Uso.

SUMÁRIO

Comete o crime de “falsificação de documentos” p. e p. pelo art. 18°, n.° 2 da Lei n.° 6/2004 – e não o de “uso de documento falso” do n.° 3 do mesmo art. 18° – o arguido que, para efeitos de obtenção do estatuto de residente da R.A.E.M. de uma menor, apresenta documentos, declarando falsamente ser pai (biológico) daquela.

O relator,

______________________
José Maria Dias Azedo

Processo nº 51/2014
(Autos de recurso penal)






ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:





Relatório

1. Por Acórdão do T.J.B. decidiu-se condenar A (XX), com os sinais dos autos, como autor de 1 crime de “falsificação de documentos”, p. e p. pelo art. 18°, n.° 3, da Lei n.° 6/2004, na pena de 9 meses de prisão, suspensa na sua execução por 2 anos, na condição de pagar a indemnização de MOP$10.000,00 à R.A.E.M. no prazo de 10 dias; (cfr., fl.s 94 a 98 que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).

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Inconformado, o Ministério Público recorreu.
Motivou para, em síntese, pedir que se decidisse no sentido de que o crime cometido era o de “falsificação de documentos” do n.° 2 (e não – o de mero “uso de documento falso” do – n.° 3) do art. 18° da mesma Lei n.° 6/2004, alterando-se também a pena fixada em conformidade e condenando-se o arguido em pena de prisão não superior a 3 anos, igualmente suspensa na sua execução, na condição do pagamento de uma indemnização de montante não inferior a MOP$10.000,00 à R.A.E.M.; (cfr., fls. 105 a 107).

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Respondendo, diz o arguido que deve ser negado provimento ao recurso; (cfr., fls. 110 a 119).

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Neste T.S.I., e em sede de vista, juntou o Ilustre Procurador Adjunto douto Parecer com o teor seguinte:

“Resulta dos factos apurados, no que reputamos de essencial, que o recorrido, residente permanente de Macau, pretendendo obter para a menor em causa a residência na Região e tomando-se necessário, para tal, apresentar prova da existência da sua relação de paternidade com a mesma, não correspondente à verdade, apresentou na DSI certificado médico de nascimento comprovativo daquela relação de filiação falsa, preenchendo, assinando e juntando também "Certificado de Confirmação de Direito de Residência ", onde se declara como pai biológico da menor.
Nestes parâmetros, não vemos como a situação não seja subsumível à previsão da 2ª parte do n° 2 do art° 18° da Lei 6/2004, isto é, "…falsas declarações sobre elementos de identificação do agente ou de terceiro, com intenção de obter qualquer dos documentos exigidos para a entrada, permanência ou autorização de residência na RAEM", não se nos afigurando que para essa subsunção se exija como objectivo o agente obter para si próprio aqueles documentos, parecendo-nos, até, que a formulação do preceito, ao prever expressamente as falsas declarações sobre elementos de identificação de "terceiro" tende a inculcar precisamente a ideia de que o propósito, o objectivo, poderá passar pela obtenção daqueles documentos, reportados a terceiros.
De todo o modo, em nosso critério, a solução a adoptar não poderá deixar de se reportar ao diploma legal em questão, já que ligado especial e explicitamente à imigração ilegal, razão por que entendendo-se a pretensão (subordinada) do Exmo Colega junto do tribunal "a quo" relativamente à aplicação subsidiária dos preceitos legais contidos nos art°s 244° e 245°, CPM (na medida em que, contemplando a Lei 6/2004 medidas mais gravosas relativamente aos delitos em causa, mal se perceberia, face a documento considerado de especial valor, a aplicação do n° 3 do art° 18° da Lei 6/2004, em detrimento do art° 245°, CP), com ela não poderemos concordar, quedando-nos, pois, pela efectiva aplicação ao caso do disposto no n° 2 do art° 18° do diploma referenciado, sendo que, a existir consunção legal, a mesma não poderá deixar de ser a do uso pela falsificação.
É claro que, quedando-nos perante medida abstracta bastante mais gravosa (2 a 8 anos, comparativamente com prisão até 3 anos), não poderá a medida concreta da pena a aplicar deixar de reflectir essa alteração.
Sendo certo que as condições materiais precisas, pessoais e de prognose relativamente ao recorrido, de que o douto aresto sob escrutínio dá conta, e que conduziram à suspensão da execução da pena, não desaparecem ou sofrem qualquer alteração por força da mudança da moldura penal abstracta proposta e que, de todo o modo, entre a pena concretamente aplicada (9 meses de prisão) e o limite formal passível de manter a suspensão (3 anos) existe "almofada ", existe dimensão bastante, para, em nosso critério "acolher" o reflexo daquela alteração, atrevemo-nos, face a todo o circunstancialismo apurado, mormente a motivação do ilícito, a propor a aplicação de nova medida concreta da pena que, situando-se pouco acima do limite mínimo previsto no já citado n" 2 do art° 18° da Lei 6/2004, mantenha a suspensão da execução da pena, dando-se, assim, parcial provimento ao recurso.
Este, o nosso entendimento”; (cfr., fls. 131 a 133).

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Passa-se a decidir.

Fundamentação

Dos factos

2. Estão provados e não provados os factos como tal elencados no Acórdão recorrido a fls. 95 a 95-v, e que aqui se dão como integralmente reproduzidos.

Do direito

3. Vem o Ministério Público recorrer do Acórdão do T.J.B. que condenou o arguido dos autos como autor de 1 crime de “falsificação de documentos”, p. e p. pelo art. 18°, n.° 3, da Lei n.° 6/2004, na pena de 9 meses de prisão, suspensa na sua execução por 2 anos, na condição de pagar a indemnização de MOP$10.000,00 à R.A.E.M. no prazo de 10 dias.

Pede, como atrás já se deixou relatado que se decida no sentido de que o crime cometido é o de “falsificação de documentos” do n.° 2 e não n.° 3 do dito art. 18° da Lei n.° 6/2004, devendo-se também alterar a pena fixada.

Vejamos.

Preceitua o art. 18° da referida Lei n.° 6/2004 que:

“1. Quem, com a intenção de frustrar os efeitos da presente lei, por qualquer dos meios previstos nas alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 244.º do Código Penal, falsificar bilhete de identidade ou outro documento autêntico que sirva para certificar a identidade, passaporte ou outros documentos de viagem e respectivos vistos, bem como qualquer dos documentos legalmente exigidos para a entrada e permanência ou os que certificam a autorização de residência na RAEM, é punido com pena de prisão de 2 a 8 anos.
2. A mesma pena é aplicada à falsificação, pelos meios referidos no número anterior, de documento autêntico, autenticado ou particular, bem como às falsas declarações sobre elementos de identificação do agente ou de terceiro, com intenção de obter qualquer dos documentos legalmente exigidos para a entrada, permanência ou autorização de residência na RAEM.
3. Quem usar ou possuir qualquer dos documentos falsos referidos nos números anteriores, é punido com pena de prisão até 3 anos”.

E, atento o assim estatuído, mostra-se de concluir que adequado é o entendimento do Exmo. Magistrado recorrente, pois a conduta do arguido integra efectivamente o estatuído no n.° 2 do art. 18° ora em questão.

Com efeito, e como acertadamente se salienta no transcrito Parecer, provado está que o arguido dos autos, apresentou documentos, “declarando falsamente” ser pai (biológico) de uma menor a fim de esta poder obter o estatuto de residente de Macau, evidente sendo assim que prestou “falsas declarações sobre elementos de identificação do agente ou de terceiro, com intenção de obter qualquer dos documentos exigidos para a entrada, permanência ou autorização de residência na RAEM”.

Integrando assim a conduta em causa a prática do crime p. e p. pelo art. 18°, n.° 2 da Lei n.° 6/2004 com uma pena de 2 a 8 anos de prisão, dúvidas não pode haver que adequada não é a pena de 9 meses de prisão fixada pelo T.J.B., nada impedindo este T.S.I. de a alterar em conformidade, já que, em audiência de julgamento no T.J.B., foi o arguido advertido da possibilidade de a sua conduta poder ser qualificada como supra se deixou consignado, nada tendo dito ou requerido; (cfr., fls. 52-v).

Assim, atenta a nova moldura penal agora aplicável, os critérios dos art°s 40° e 65° do C.P.M., e sendo o arguido primário, crê-se justa e adequada uma pena de 2 anos e 9 meses de prisão.

Mantendo-se, por sua vez, válidos os pressupostos que levaram à decisão de suspensão da execução da pena, sua condição e termos, e tendo também presente o peticionado pelo Exmo. Magistrado recorrente assim como o estatuído no art. 399° do C.P.P.M., confirma-se o nesta parte decidido, julgando-se procedente o recurso.

Decisão

4. Nos termos que se deixam expostos, acordam conceder provimento ao recurso.

Custas pelo arguido com 6 UCs de taxa de justiça.

Honorários ao Exm° Defensor no montante de MOP$1.500,00.

Macau, aos 13 de Fevereiro de 2014
José Maria Dias Azedo
Tam Hio Wa
   Chan Kuong Seng (vencido parcialmente na decisão e na respectiva fundamentação, nos termos melhor expostos na declaração de voto ora junta).

Declaração de voto ao Acórdão de 13 de Fevereiro de 2014 do
Tribunal de Segunda Instância no Processo n.º 51/2014
Discorda o ora signatário da decisão feita no Acórdão hoje proferido por este Tribunal de Segunda Instância (TSI) nos presentes autos recursórios n.o 51/2014, na parte respeitante ao período da suspensão da pena de prisão e à condição dessa suspensão, por seguintes considerações:
– desde já, é de observar que em termos algo diversamente relatados na página 2 desse Acórdão, o Ministério Público, na sua motivação de recurso na parte atinente à medida da pena, não chegou a pedir a aplicação ao arguido de pena de prisão não superior a três anos, mas sim começou por pedir a nova medida da pena dentro da moldura penal do crime do n.º 2 do art.º 18.º da Lei n.º 6/2004 (sem ter proposto qualquer tecto na medida concreta da nova pena), e afirmou, finalmente, que se a pena aplicada de novo não fosse superior a três anos de prisão, então rogaria que se suspendesse a execução da nova pena, com condenação do arguido na prestação de contribuição pecuniária a favor da Região Administrativa Especial de Macau (RAEM) em montante não inferior a dez mil patacas (cfr. a seguinte redacção, orginalmente em chinês, do pedido formulado na parte final da motivação do recurso:
  “……檢察院請求中級法院法官 閣下裁定上訴理由成立,以及
- 改判嫌犯A以直接正犯和既遂方式觸犯第6/2004號法律第18條第2款規定和處罰的一項偽造文件罪及以該罪的刑幅對嫌犯重新量刑;
- 又或改判嫌犯A以直接正犯和既遂方式觸犯《刑法典》第245條結合第244條第1款c)項所規定的(使用)偽造具特別價值文件罪及以該罪的刑幅對嫌犯重新量刑。
- 倘重新量刑後判處嫌犯不超逾三年之徒刑,請求根據《刑法典》第48條的規定,將對嫌犯所科處之徒刑暫緩執行,但為著彌補其犯罪行為對社會造成的不良影響,請求根據《刑法典》第49條第1款c)項的規定,判處嫌犯向澳門特區捐獻不少於澳門幣一萬元作為緩刑義務。”);
– no caso, é nítido que o Ministério Público não estava a recorrer da decisão final condenatória da Primeira Instância no exclusivo interesse do arguido, mas sim em defesa da legalidade, visto que para além de pedir primeiro a condenação deste como autor do crime, bem muito mais grave, de falsificação de documento do n.º 2 do art.º 18.º da Lei n.º 6/2004, pediu também a nova medida da pena dentro da correspondente moldura de dois a oito anos de prisão, e não chegou a pedir a manutenção do período de dois anos de pena suspensa fixado no acórdão recorrido. Daí que não pode vigorar na presente lide recursória o princípio da proibição de reformatio in pejus consagrado no n.º 1 do art.º 399.º do Código de Processo Penal;
– e seja como for, e em tese jurídica falando, o período da suspensão da pena de prisão (a que alude o art.º 48.º, n.º 5, do Código Penal) não pode ser inferior à própria duração da pena de prisão fixada, sob pena de contrasenso. Na verdade, quer do facto de o período mínimo da suspensão da pena de prisão ser de um ano, em confronto com a hipótese legal de aplicação de pena de prisão inferior a um ano (cfr. nomeadamente o disposto no n.º 1 do art.º 41.º do Código Penal), quer do facto de o período máximo da pena suspensa ser de cinco anos, em confronto com o facto de só a pena de prisão aplicada em medida não superior a três anos é que poder ser objecto de eventual suspensão da sua execução, resulta já bem constatada a lógica jurídica de o período da pena suspensa não poder ser inferior à própria duração da pena de prisão objecto da suspensão;
– razões por que entende o signatário que a pena de dois anos e nove meses de prisão aplicada ao arguido pela autoria do crime de falsificação de documento do n.º 2 do art.º 18.º da Lei n.º 6/2004 não deve ser suspensa na sua execução por dois anos, mas sim por quatro anos, sob condição de prestar, dentro de seis meses, cinquenta mil patacas de contribuição pecuniária a favor da RAEM. E isto tudo porque a despeito de o arguido ser um delinquente primário, o crime por que ele acaba por ser condenado na presente sede recursória é de natureza muito mais grave do que a do crime tido por verificado no acórdão recorrido (para ilustrar isto, basta comparar as molduras penais dos dois delitos), pelo que entrando também em conta as elevadas exigências da prevenção geral do crime, o período da suspensão da pena de prisão e o montante da contribuição pecuniária como condição dessa suspensão têm que reflectir bem a gravidade do mesmo crime grave e acautelar bem as referidas necessidades da prevenção geral do crime, sendo certo que está provado em primeira instância que o arguido trabalha como gerente de relações públicas, o que representa que ele não vive em situação económica difícil.
Macau, 13 de Fevereiro de 2014.
O primeiro juiz-adjunto,
Chan Kuong Seng




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