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Processo n.º 785/2013 Data do acórdão: 2014-2-27 (Autos em recurso penal)
Assuntos:
– erro notório na apreciação da prova
– tráfico de estupefacientes
– medida da pena
– atenuação especial da pena
– menoridade civil do agente
S U M Á R I O
1. Como depois de vistos todos os elementos probatórios referidos na fundamentação probatória do acórdão recorrido, não realiza o tribunal de recurso que o tribunal recorrido tenha, aquando da formação da sua livre convicção sobre os factos julgados, violado alguma regra jurídica sobre o valor da prova, ou alguma regra da experiência da vida humana em normalidade de situações, ou quaisquer legis artis a observar na tarefa jurisdicional de julgamento da matéria de facto, é infundada a tese, exposta pelo arguido condenado, de existência do vício de erro notório na apreciação da prova aludido no art.º 400.º, n.º 2, alínea c), do Código de Processo Penal.
2. Não há nenhuma presunção da lei de aplicação do regime de atenuação especial da pena em face da menoridade civil do agente.
3. Na medida da pena do crime de tráfico de estupefacientes, há que ponderar que são muito prementes as necessidades da prevenção geral deste delito.
O relator,
Chan Kuong Seng

Processo n.º 785/2013
(Autos de recurso penal)
Recorrentes:
1.º arguido A
2.º arguido B





ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU
I – RELATÓRIO
Por acórdão proferido a fls. 691 a 701v dos autos de Processo Comum Colectivo n.° CR3-13-0092-PCC do 3.o Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base, os 1.º e 2.º arguidos desse processo, chamados A e B, foram condenados como co-autores materiais de um crime consumado de tráfico ilícito de estupefacientes, p. e p. pelo art.º 8.º, n.º 1, da Lei n.º 17/2009, de 10 de Agosto (doravante abreviada como Lei de droga) (crime este entendido pelo Tribunal sentenciador como já absorvente do crime de tráfico de menor gravidade do art.º 11.º, n.º 1, alínea 1), da mesma Lei, então também imputado aos mesmos arguidos a título de co-autoria material), em sete anos e cinco meses de prisão e sete anos e onze meses de prisão, respectivamente, e também como co-autores materiais de um crime consumado de detenção indevida de utensílio do art.º 15.º da dita Lei, igualmente em dois meses de prisão, e, em cúmulo jurídico, nas penas únicas de sete anos e seis meses e de oito anos, respectivamente.
Inconformados, vieram recorrer para este Tribunal de Segunda Instância (TSI).
Apontou o 1.º arguido A (na sua motivação de fls. 724v a 730 dos presentes autos correspondentes) ao Tribunal recorrido primeiramente o vício de “erro notório na apreciação da prova” no respeitante aos crimes de tráfico e de detenção de utensílio dos art.os 8.º, n.º 1, e 15.º da Lei de droga, por defender ele, na essência, que: como aquando da sua captura no dia 31 de Maio de 2013, não se tinha descoberto nenhuma droga na sua posse, e ele não estava presente aquando da descoberta de drogas na fracção autónoma dos autos sita no Bairro da Areia Preta, e também não havia prova pericial sobre o eventual tacto dele nessas drogas ou nos objectos contentores das mesmas, e a testemunha de defesa dele já depôs na audiência de julgamento em primeira instância que ele chegou a comparecer na dita fracção autónoma, apenas porque foi lá, a pedido da própria testemunha, para receber a dívida de dinheiro de um amigo, assim, nunca pôde o Tribunal recorrido ter confiado somente no depoimento da testemunha de acusação de apelido D (segundo o qual ele o 1.º arguido recorrente, depois de capturado em 10 de Maio de 2013, chegou a fazer vender, por meio dessa testemunha, a droga a pessoas consumidoras de droga) para dar por provado que as drogas descobertas em 31 de Maio de 2013 tinham a ver com ele o recorrente ou que ele participou no tráfico dessas mesmas drogas, razão por que ele só devia ser condenado pela prática, em 10 de Maio de 2013, de um crime de tráfico de menor gravidade; e, fosse como fosse, não deixou este recorrente de pedir a redução da sua pena de prisão do crime do art.º 8.º, n.º 1, da Lei de droga, para tão-só cinco anos de prisão.
Ao passo que o 2.º arguido B já fez concentrar o seu recurso na problemática da medida da pena, afirmando, a montante, que o Tribunal recorrido não cumpriu o dever da fundamentação da decisão da medida da pena (sobretudo por não ter explicado por quê é que se afastou a presunção, à luz do art.º 66.º, n.º 2, alínea f), do Código Penal (CP), da aplicação do benefício de atenuação especial da pena ao arguido menor de 18 anos de idade), e, a jusante, que o seu crime de tráfico de estupefacientes deveria ser concretamente punido com cerca de quatro anos de prisão, e o crime de detenção de utensílio com uma pena de multa, o que levaria a que a sua pena única devesse ser fixada em quatro anos de prisão (cfr. a motivação do recurso a fls. 732 a 739 dos autos).
Aos recursos respondeu a Digna Delegada do Procurador junto do Tribunal a quo no sentido igual de improcedência da argumentação dos dois recorrentes (cfr. as respostas de fls. 751 a 753v e de fls. 754 a 756v).
Subidos os autos, emitiu a Digna Procuradora-Adjunta parecer (a fls. 778 a 780v), pugnando também pela improcedência dos recursos.
Feito o exame preliminar, corridos os vistos, e com audiência feita nesta Segunda Instância, cumpre decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICA
Do exame dos autos, sabe-se que:
1. O 1.º arguido ora recorrente chegou a confessar parte dos factos imputados (cfr. o teor da sessão de audiência de julgamento de 9 de Outubro de 2013, lavrada a fls. 687 a 688v).
2. No julgamento então feito perante o Tribunal recorrido, foram ouvidos, para além dos dois arguidos ora recorrentes e o 3.º arguido ora não recorrente, sete testemunhas, ao total, duas das quais eram os menores de apelidos C e D, aliás já referidos na matéria de facto provada descrita no acórdão recorrido, outras duas das quais eram investigadores da Polícia Judiciária, e uma outra das quais era a testemunha de defesa do 1.º arguido (cfr. o teor das duas actas da audiência de julgamento, a fls. 687 a 688v e a fls. 689 a 690).
3. O Tribunal Colectivo recorrido teceu a fundamentação probatória da sua livre convicção sobre os factos julgados em termos essencialmente seguintes (cfr. a página 14 do texto do acórdão recorrido, originalmente redigido em chinês, a fl. 697v):
– o 1.º arguido prestou declarações na audiência de julgamento, admitindo a prática dos factos reportados até antes de 10 de Maio de 2012 inclusive, e negando ter detido as drogas e os utensílios de consumo de droga descobertos em 31 de Maio na fracção autónoma dos autos, ou ter participado no tráfico dessas drogas;
– os 2.º e 3.º arguidos prestaram declarações na audiência de julgamento, negando a prática dos factos acusados;
– cinco testemunhas, de apelidos C, D, E, F e G, prestaram declarações na audiência de julgamento, depondo acerca dos factos de conhecimento pessoal;
– os investigadores da Polícia Judiciária prestaram declarações na audiência de julgamento, falando com clareza e objectividade sobre a droga descoberta no corpo do 1.º arguido, as drogas e utensílios de consumo de droga descobertos na residência dos 1.º e 2.º arguidos, e o pau policial descoberto no quarto do 3.º arguido;
– os relatórios sociais dos 1.º e 2.º arguidos descreveram, com análise, a situação de vida e a personalidade dos dois arguidos;
– os relatórios de exame laboratorial nos autos comprovaram a natureza e as quantidades das substâncias estupefacientes apreendidas;
– o relatório de exame nos autos evidenciou as caractéristicas do pau policial;
– o Tribunal Colectivo dá por provados os factos acima referidos depois de analisados de modo objectivo e na globalidade as declarações prestadas pelos três arguidos e pelas testemunhas na audiência de julgamento, em conjugação com a prova documental, a prova por objectos apreendidos e outros elementos probatórios nos autos, examinados no decurso da audiência de julgamento.
4. Por outro lado, em sede da medida da pena, o Tribunal recorrido teceu inclusivamente as seguintes considerações no último parágrafo da página 16 e no primeiro parágrafo da página 17 do acórdão, a fls. 698v a 699 (para além de ter escrito também a fundamentação da decisão final de fixação das penas na restante parte da página 17 ao 6.º parágrafo da página 19 desse aresto):
– embora os 1.º e 2.º arguidos não tenham tido 18 anos completos de idade à data da prática dos actos criminais, ambos não apresentaram atitude sincera de confissão dos crimes, nem tiveram remorso sincero vindo do coração, e tendo em conta a inexistência de circunstâncias consideravelmente diminuidoras da ilicitude dos factos ou a culpa dos agentes e da necessidade da pena, assim sendo, os actos dos 1.º e 2.º arguidos não têm a circunstância de atenuação especial da pena do art.º 66.º do CP.
5. Segundo a matéria de facto descrita como provada no acórdão recorrido, na parte que ora interessa mais à solução dos dois recursos:
– desde Novembro de 2011, os 2.º e 3.º arguidos tomaram conjuntamente de arrendamento, para habitação, a fracção autónoma dos autos, sita no Bairro da Areia Preta;
– no período de Fevereiro a Março de 2012, o 2.º arguido conheceu sucessivamente o menor de apelido C, o 1.º arguido e o menor de apelido D, e os quatro dedicaram-se às actividades de tráfico de droga na fracção acima referida, com divisão das tarefas entre si: incumbindo ao 2.º arguido facultar dinheiro, organizar os trabalhos, dividir e empacotar a droga; ao 1.º arguido e ao menor de apelido C ir ao Interior da China para comprar e transportar a droga para Macau e para depois entregar ao 2.º arguido para as dividir e empacotar; ao 1.º arguido e ao menor de apelido D guardar as drogas assim empacotadas num sítio do Bloco 6 do mesmo prédio, a fim de estes dois, no caso de haver clientes a comprar, voltarem a levantá-las para proceder à venda numa discoteca, num restaurante McDonald ou na entrada do Hotel Vitória, etc., sendo o dinheiro assim obtido a ser entregue ao 2.º arguido;
– o 2.º arguido entregava, semanalmente, dinheiro aos menores de apelidos C e D e ao 1.º arguido como recompensa do tráfico de droga;
– em 10 de Maio de 2012, cerca das 19:15 horas, o pessoal da Polícia Judiciária interceptou o 1.º arguido para investigação, e acabou por encontrar no bolso esquerdo das calças dele um total de 0,959 grama líquido de Ketamina;
– às 21:30 horas do mesmo dia, o 1.º arguido disse ao pessoal da Polícia Judiciária que havia ainda drogas guardadas num sítio do Bloco 6 do prédio acima referido, na sequência do que a Polícia Judiciária acabou por descobrir nesse sítio dois sacos transparentes com vestígios de Ketamina, Metanfetamina e Cocaína;
– em 31 de Maio de 2012, cerca das 20:25 horas, o pessoal da Polícia Judiciária interceptou o 1.º arguido, e de seguida, o pessoal da Polícia Judiciária levou o 1.º arguido para ir à residência deste (ou seja, à fracção autónoma dos autos) para efectuar busca, na sequência da qual acabaram por ser descobertos:
– em cima da cama do quarto do 1.º arguido um total de 42 pequenos sacos transparentes;
– em cima da cadeira de madeira da sala de estar, um total de 47,16 gramas (3,605+30,723+12,832) líquidos de Ketamina e um total de 1,188 gramas líquidos de Cocaína, produtos todos esses adquiridos pelos 1.º e 2.º arguidos a indíviduos de identidade não apurada para serem guardados na dita residência, a fim de os vender em Macau para obter lucros;
– na mesma sala de estar, um isqueiro, um frasco plástico contentor de algumas dezenas de pequenos troços de tubos de ingestão, objectos estes destinados pelos 1.º e 2.º arguidos ao consumo de droga;
– o 1.º arguido não tem antecedente criminal;
– em 8 de Julho de 2013, no Processo n.º CR1-13-0059-PCC, o 2.º arguido foi condenado pelo Tribunal Judicial de Base na pena de um ano e seis meses de prisão, pela prática, em 8 de Julho de 2012, de um crime de receptação, suspensa na sua execução por dois anos e seis meses, decisão judicial essa ainda não transitada em julgado;
– o 1.º arguido declarou ter por nível de instrução o 1.º ano do ensino secundário elementar, estar desempregado, sem família nem encargos económicos;
– o 2.º arguido declarou ter por nível de instrução o 1.º ano do ensino secundário elementar, trabalhar como empregado de venda, com cerca de doze mil patacas de rendimento mensal, com os pais a seu cargo e um irmão mais pequeno a precisar da sua ajuda financeira.
III – FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
De antemão, cumpre notar que mesmo em processo penal, e com excepção da matéria de conhecimento oficioso, ao tribunal de recurso cumpre resolver só as questões material e concretamente alegadas na motivação do recurso e ao mesmo tempo devidamente delimitadas nas conclusões da mesma, e já não responder a toda e qualquer razão aduzida pela parte recorrente para sustentar a procedência das suas questões colocadas (nesse sentido, cfr., de entre muitos outros, os acórdãos do TSI, de 7 de Dezembro de 2000 no Processo n.o 130/2000, de 3 de Maio de 2001 no Processo n.o 18/2001, e de 17 de Maio de 2001 no Processo n.o 63/2001).
Quanto ao vício de erro notório na apreciação da prova primeiramente esgrimido pelo 1.º arguido, o presente Tribunal ad quem, depois de vistos todos os elementos probatórios já referidos na fundamentação probatória do acórdão recorrido, não realiza que o Tribunal recorrido tenha, aquando da formação da sua livre convicção sobre os factos julgados, violado alguma regra jurídica sobre o valor da prova, ou alguma regra da experiência da vida humana em normalidade de situações, ou quaisquer legis artis a observar na tarefa jurisdicional de julgamento da matéria de facto, pelo que é realmente infundada a tese argumentativa exposta por este arguido recorrente a propósito do vício do art.º 400.º, n.º 2, alínea c), do Código de Processo Penal (CPP).
No fundo, tudo se resume numa questão de livre apreciação da prova, nos termos consentidos pelo art.º 114.º do CPP, pelo que não pode este recorrente fazer impor, gratuitamente, a sua visão pessoal sobre as provas produzidas na audiência da Primeira Instância, para pretender a alteração do julgado feito pelo Tribunal setenciador a nível de factos.
Por outra banda, é também infundada a tese do 2.º arguido recorrente à volta da alegada nulidade do acórdão recorrido por “falta de fundamentação da decisão da medida da pena” (art.º 355.º, n.º 2, do CPP). De facto, dos dados pertinentes já acima coligidos dos autos e referidos na parte II do presente acórdão de recurso, resulta nítido que o Tribunal sentenciador já cumpriu o seu dever processual, imposto pelo art.º 65.º, n.º 3, do CP, de fundamentar a sua decisão tomada em matéria da medida da pena, tendo explicado inclusivamente os motivos da não concessão da atenuação especial da pena aos dois arguidos ora recorrentes, a despeito de estes não terem 18 anos de idade à data dos factos criminais.
E quanto ao mérito da decisão de não atenuação especial da pena, é evidente o mesmo, porquanto a postura de não confissão, pelo menos, do crime de tráfico de droga pelos dois arguidos recorrentes já é um dos obstáculos à activação do mecanismo de atenuação especial da pena, sendo certo que as prementes necessidades de prevenção geral deste tipo legal de crime também reclamam a necessidade da aplicação da pena na sua moldura legal normal (cfr. o critério material para atenuação especial, ou não, da pena, plasmado no art.º 66.º, n.º 1, do CP), não havendo, aliás, nenhuma presunção da lei, falada pelo 2.º arguido, de aplicação do regime de atenuação especial da pena, em face da menoridade civil do agente.
Finalmente, no tocante ao excesso da pena simultaneamente alegado pelos dois recorrentes, é óptica deste Tribunal de recurso que aos padrões da medida da pena vertidos nos art.os 40.º, n.os 1 e 2, e 65.º, n.os 1 e 2, do CP, as penas parcelares e únicas de prisão fixadas no aresto recorrido, em face de todas as circunstâncias fácticas aí descritas como provadas, não admitem mais margem para redução, tendo também em ponderação sobretudo as mui prementes necessidades da prevenção geral do delito de tráfico de droga, sendo de notar, a final, que visto o pano de fundo da sua prática, e também para prevenir mais eficazmente o cometimento do mesmo crime por outras pessoas no futuro (cfr. o critério material exigido no art.º 64.º do CP), o crime de detenção de utensílio está bem punido no aresto recorrido com pena de prisão.
IV – DECISÃO
Dest’arte, acordam em julgar improcedentes os recursos.
Pagarão os dois arguidos recorrentes as custas dos seus recursos, com oito UC de taxa de justiça individuais.
Macau, 27 de Fevereiro de 2014.
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Chan Kuong Seng
(Relator)
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Tam Hio Wa
(Primeira Juíza-Adjunta)
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Choi Mou Pan
(Segundo Juiz-Adjunto)



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