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Processo nº 234/2010
(Autos de Recurso Civil e Laboral)

Data: 27 de Fevereiro de 2014

ASSUNTO
- Autoridade do caso julgado

SUMÁRIO
- O caso julgado, perspectivado na vertente que se reporta à sua força e autoridade, tem como finalidade de evitar que a relação jurídica material, já definida por decisão anteriormente transitada, possa ser apreciada de modo diferente por decisão posterior.
- Pois, face às exigências da coerência lógico-jurídica ou prática, bem como às da segurança e certeza jurídica, não deveria coexistir de duas decisões judiciais contraditórias sobre a mesma questão jurídica.
- Assim, se o contrato de arrendamento que serviu como base para a condenação do Réu foi considerado nulo por sentença já transitada em julgado, jamais pode ser fonte geradora da obrigação de pagamento por parte do Réu, tanto a título de rendas vencidas e não pagas como a respectiva indemnização legal na mora do pagamento, quer no período anterior à data da aquisição dos imóveis pela Autora, quer no posterior.
Relator,
Ho Wai Neng

Processo nº 234/2010
(Autos de Recurso Civil e Laboral)

Data: 27 de Fevereiro de 2014
Recorrente: A (Réu)
Recorrida: B, Limitada (Autora)

ACORDAM OS JUÍZES NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:

I – Relatório
Por sentença de 13/10/2009, foi decidido os seguintes:
- absolveu-se o Réu do pedido de resolução dos contratos de arrendamento a que se reportam os autos;
- condenou-se o Réu a pagar à Autora a quantia de MOP$64.800,00 a titulo de rendas vencidas e não pagas e respectiva indemnização;
- julgou-se a reconvenção improcedente; e
- ordenou-se a entrega à Autora dos depósitos efectuados nos autos a fls. 73-75.
Dessa decisão vem recorrer o Réu, alegando, em sede de conclusão, o seguinte:
1. A Autora-Recorrida não tem direito às rendas vencidas em data anterior à aquisição dos imóveis aqui em causa, pois carece de legitimidade para as reclamar.
2. O direito às rendas por parte do locador é um direito de crédito, autónomo, que não se transmite ao adquirente com a alienação do imóvel locado.
3. O qual não integra os direitos e obrigação referidos no artigo 1004º do Código Civil.
4. O direito de crédito às rendas vendidas anteriormente à venda pertencia à anterior proprietária e locadora dos imóveis.
5. As rendas em causa reportam-se a um lapso temporal em que o direito de propriedade lhe pertencia, tendo-se vencido e consolidado na sua esfera jurídica.
6. A aquisição da propriedade dos imóveis pela Recorrida não a investiu no direito às rendas vencidas (e não pagas) em dada anterior à compra.
7. Não tendo obtido, fosse a que título fosse, a cessão do direito de crédito às rendas vencida anteriormente, direito esse pertencente à anterior proprietária, a Autora – Recorrida não pode exigir, o seu pagamento ao Recorrente.
8. A Autora-Recorrida, enquando adquirente dos imóveis locados, apenas poderia exigir o pagamento no caso da anterior proprietária, no próprio título de transmissão dos prédios, lhe ter cedido o direito de receber as rendas vencidas à datada da aquisição e não pagos.
9. A cessão do direito de crédito era imprescindível e não aconteceu, não estando dada como provada.
10. A Autora-Recorrida apenas tem direito a receber as rendas que se venceram depois da transmissão.
11. Face à falta de legitimidade da Autora-Recorrida, o Réu-Recorrente não podia ser condenado no pagamento das rendas vencidas em data anterior à da aquisição e não pagas.
12. Como não podia ser condenado no pagamento da indemnização legal.
13. A douta sentença recorrida violou o disposto nos artigos 205º, nº 2, e 1004º e 1005º, todos do Código Civil.
14. Pela mesma ordem de razões, devia ter sido julgado provado e procedente o pedido reconvencional deduzido, e a Autora-Recorrida condenada à restituição da quantia de MOP$16.650,00.
15. A matéria constante da carta datada de 7 de Julho de 2008 enviada ao Réu-Recorrente tem de se considerar assente, pois a Autora-Recorrida não impugnou o documento, não questionou o conteúdo, a sua autenticidade ou o valor probatório.
16. Há de considerar, pois, que a Autor Autora-Recorrida não comunicou ao Réu-Recorrente, de foram válida, inteligível, adequada e completa, a aquisição dos imóveis arrendados, nem informou o procedimento a adoptar para o pagamento da renda.
17. O procedimento da Autora-Recorrida reveste a natureza de mora creditícia.
18. O que obsta a que se possa considerar que o Réu-Recorrente incorreu em mora no pagamento das rendas vencidas após a alienação dos imóveis arrendados.
19. A falta de pagamento atempado das rendas vencidas depois da venda dos imóveis não é imputável ao arrendatário, o Recorrente, mas antes à senhoria, a Recorrida.
20. Não tendo incorrido em mora, ao Recorrido tem de ser restituída a quantia de MOP$5.850,00, depositada com referência às rendas vencidas no período posterior à outorga da escritura, ou seja, a partir de Junho até Dezembro de 2008, inclusive.
21. A douta sentença recorrida, quanto apreciou a reconvenção, não considerou assente matéria não impugnada pela Autor-Recorrida.
22. E omitiu por completo a apreciação do pedido reconvencional respeitante à alegação de inexistência de mora par parte do Réu-Recorrente no pagamento das rendas vencidas depois da escritura de venda dos imóveis locados.
23. A douta sentença recorrida violou o disposto no artigo 562º, nº 2 e nº 3, do Código de Processo Civil.
24. Pelo que é nula – artigo 571º, nº 1, alínea d), do mesmo Código.
Pedindo no final que seja revogada a sentença recorrida, substituída por outra que:
   “a) absolve o Recorrente do pedido de pagamento do valor das rendas vencidas (e não pagas) em data anterior à da aquisição pela Autora – 03/06/2008 – dos imóveis locados aqui em causa; e
   b) julgue provado e procedente o pedido deduzido na alínea a) da reconvenção, condenando a Autora-Recorrida a restituir ao Recorrente a quantia de MOP$16.650,00, respeitante às rendas dos meses de Dezembro de 2007 a Maio de 2008, e à mora alegadamente decorrente da invocada falta do pagamento da renda referente aos meses entre Dezembro de 2007 e Dezembro de 2008.”
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A Autora respondeu à motivação do recurso do Réu, nos termos constantes a fls. 234 a 238 dos autos, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, pugnando pela improcedência do recurso interposto.
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Foram colhidos os vistos legais.
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II – Factos
Foi considerada como provada a seguinte factualidade pelo Tribunal a quo:
1. Na competente Conservatória do Registo Predial pela inscrição nº 173047 do Livro G, está inscrito a favor da Autora a aquisição por compra em 03.06.2008 do prédio urbano sito em Macau com o nº 19 do Pátio do Mungo, inscrito na matriz predial sob o nº 020892 e descrito sob o nº 7671 do Livro B25 – cf. fls. 12 a 15;
2. Na competente Conservatória do Registo Predial pela inscrição nº 173047 do Livro G, está inscrito a favor da Autora a aquisição por compra em 03.06.2008 do prédio urbano sito em Macau com o nº 21 do Pátio do Mungo, inscrito na matriz predial sob o nº 020893 e descrito sob o nº 7672 do Livro B25 – cf. fls. 16 a 19;
3. Entre a anterior dona do imóvel e o aqui Réu foi celebrado um contrato de acordo com o qual aquela cedia ao Réu o gozo dos prédios descritos em a) e b) por um período determinado de tempo mediante o pagamento deste àquela da quantia mensal de MOP$500,00 quanto ao nº 19 e MOP$400,00 quanto ao nº 21;
4. O Réu, não paga os valores referidos em c) desde Dezembro de 2004 inclusive.
5. Em 15.12.2008 o Réu efectuou o depósito de MOP$12.150,00 cujo documento consta de fls. 73 e aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.
6. Em 16.12.2008 o Réu efectuou o depósito de MOP$9.000,00 cujo documento consta de fls. 74 e aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.
7. Em 18.12.2008 o Réu efectuou o depósito de MOP$1.800,00 cujo documento consta de fls. 75 e aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.
Outros factos provados com interesse ao presente recurso:
- Na acção nº CV1-11-0002-CAS, em que as partes são as mesmas dos presentes autos, a Autora pediu que fosse declarada como a única e legítima proprietária dos prédios acima identificados e que, em consequência, fosse o Réu condenado a desocupar e restituir os prédios em causa.
- Por sentença de 06/06/2012, a referida acção foi julgada totalmente procedente.
- Na acção nº CV1-10-145-CPE, instaurada em 14/09/2010, sendo partes as mesmas dos presentes autos, a Autora peticionou a caducidade do aludido contrato de arrendamento e a condenação do Réu no pagamento de indemnização, tendo a causa sido decidida por sentença de 27/10/2011, julgando a causa improcedente com fundamento na nulidade do respectivo contrato de arrendamento, por inobservância da forma legal.
- Ambas as sentenças transitaram em julgado.
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III – Fundamentação:
1. Das rendas vencidas e não pagas em data anterior à da aquisição dos imóveis pela Autora:
Vem o Réu recorrer da sentença na parte em que o condenou no pagamento à Autora da quantia de MOP$64.800,00, a título de rendas vencidas e não pagas e da respectiva indemnização legal, bem como na parte em que julgou improcedente a sua reconvenção.
Salvo o devido respeito, não nos parece que a condenação do Réu no pagamento da quantia de MOP$64.800,00 possa subsistir por uma razão simples: violação da força e autoridade do caso julgado.
De acordo os factos assentes e provados, o contrato de arrendamento que serviu como base para a condenação do Réu no pagamento da quantia em referência foi considerado nulo por sentença já transitada em julgado no âmbito do Proc. nº CV1-10-145-CPE.
O caso julgado, aqui perspectivado na vertente que se reporta à sua força e autoridade, tem como finalidade de evitar que a relação jurídica material, já definida por decisão anteriormente transitada, possa ser apreciada de modo diferente por decisão posterior.
Pois, face às exigências da coerência lógico-jurídica ou prática1, bem como às da segurança e certeza jurídica, não deveria coexistir de duas decisões judiciais contraditórias sobre a mesma questão jurídica.
Assim, não obstante ter ficado provado que :“Entre a anterior dona do imóvel e o aqui Réu foi celebrado um contrato de acordo com o qual aquela cedia ao Réu o gozo dos prédios descritos em a) e b) por um período determinado de tempo mediante o pagamento deste àquela da quantia mensal de MOP$500,00 quanto ao nº 19 e MOP$400,00 quanto ao nº 21”, o certo é que tal contrato de arrendamento foi considerado oficiosamente nulo por falta de forma legal por sentença já transitada em julgado no âmbito do Proc. nº CV1-10-145-CPE.
Nesta conformidade e por força do regime legal da nulidade, o mesmo contrato jamais pode ser fonte geradora da obrigação de pagamento por parte do Réu, tanto a título de rendas vencidas e não pagas como a respectiva indemnização legal na mora do pagamento, quer no período anterior à data da aquisição dos imóveis pela Autora, quer no posterior.
No entanto, como o Réu no presente recurso se limitou a formular o pedido de absolvição do pagamento das rendas vencidas e não pagas, bem como da respectiva indemnização legal pela mora do pagamento, em data anterior à da aquisição pela Autora (03/06/2008), fica a nossa decisão assim restringida a este pedido.
Ou seja, o Réu não deixa de ser condenado no pagamento das “rendas” dos meses de Junho a Novembro de 2008, inclusivé, que corresponde ao valor de MOP$5.400,00 ($900,00 x 6), acrescida da respectiva indemnização resultante da mora do pagamento na mesma quantia (MOP$5.400,00).
2. Do recurso do pedido reconvencional:
O Réu formulou o pedido reconvencional, peticionando que fosse condenada a Autora lhe restituir a quantia de MOP$16.650,00, respeitante aos depósitos feitos por ele para pagamento das rendas dos meses de Dezembro de 2007 a Maio de 2008, e à alegada mora resultante da falta de pagamento atempado das rendas referente aos meses de Dezembro de 2007 a Dezembro de 2008.
Este pedido reconvencional foi julgado improcedente.
Ora, tendo em conta o valor do mesmo e o disposto do nº 1 do artº 583º do CPCM, não nos parece que o recurso seja admissível nesta parte, o que implica a sua rejeição2.
Tudo visto, resta decidir.
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IV – Decisão
Nos termos e fundamentos acima expostos, acordam em:
- conceder provimento parcial ao recurso interposto;
- revogar a sentença recorrida na parte em que condenou o Réu no pagamento da quantia de MOP$64.800,00, passando a condená-lo a pagar à Autora o montante de MOP$10.800,00; e
- rejeitar o recurso na parte que diz respeito ao pedido reconvencional.
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Custas pelas partes na proporção do decaímento.
Notifique e registe.
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RAEM, aos 27 de Fevereiro de 2014.
Ho Wai Neng
José Cândido de Pinho
Tong Hio Fong
1 LIMITES OBJECTIVOS DO CASO JULGADO EM PROCESSO CIVIL, João de Castro Mendes, Edições Ática,
2 Mesmo que fosse legalmente admissível, nunca poderia ser julgado como procedente, já que as quantias em causa dizem respeito aos depósitos liberatórios efectuados pelo Réu no âmbito do processo, à ordem do Tribunal, visando simplesmente obstar à procedência da acção de resolução do contrato de arrendamento com base na falta de pagamento das rendas.
A Autora nunca procedeu ao levantamento dos mesmos, pelo que nunca pode ser condenada na sua restituição.
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