打印全文
Processo n.º 734/2013 Data do acórdão: 2014-2-27 (Autos em recurso penal)
Assuntos:
– confissão integral e sem reserva dos factos
– erro notório na apreciação da prova
– art.o 8.o, n.o 1, da Lei n.o 17/2009
– art.o 11.o da Lei n.o 17/2009
– tráfico ilícito de estupefacientes
– tráfico de menor gravidade
– pequena parte da droga para consumo
– medida da pena
S U M Á R I O
1. Tendo o arguido confessado integralmente e sem reserva os factos imputados, finalmente dados como provados no acórdão recorrido, não pode ele ter interesse processual para vir defender no recurso desse aresto, que o tribunal recorrido errou na apreciação da prova.
2. Estando provado que o arguido destinou a pequena parte das drogas detidas para consumo próprio e toda a remanescente parte para fornecimento ou venda a outrem, e mesmo que se considere que o termo “pequena parte” pode, na melhor hipótese possível em favor do arguido, equivaler, ao máximo, a 49,99…% das quantidades de substâncias estupefacientes descobertas na sua posse, é de observar que no caso dos autos, a restante parte, destinada ao fornecimento ou à venda a outrem, já está muito superior ao quíntuplo das quantidades de referência de uso diário da Ketamina e da Metanfetamina, respectivamente fixadas 0,6 grama e 0,2 grama, no mapa da quantidade de referência de uso diário constante da Lei n.º 17/2009, de 10 de Agosto, pelo que o arguido está legalmente bem condenado em primeira instância como autor material de um crime consumado de tráfico ilícito de estupefacientes do art.º 8.º, n.º 1, desta Lei, já que não lhe é aplicável o tipo legal, mais leve, de tráfico de menor gravidade do art.º 11.º da mesma Lei.
3. Na medida da pena do crime de tráfico ilícito de estupefacientes, há que ponderar que são muito prementes as necessidades da prevenção geral deste delito, especialmente quando cometido por pessoa vinda do exterior de Macau.
O relator,
Chan Kuong Seng

Processo n.º 734/2013
(Autos de recurso penal)
Recorrente (arguido): A




ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU
I – RELATÓRIO
Inconformado com o acórdão proferido a fls. 165 a 176 dos autos de Processo Comum Colectivo n.° CR2-13-0081-PCC do 2.o Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base, na concreta parte em que se decidiu condená-lo na pena de seis anos e três meses de prisão pela autoria material de um crime consumado de tráfico ilícito de estupefacientes, p. e p. pelo art.º 8.º, n.º 1, da Lei n.º 17/2009, de 10 de Agosto, com circunstância agravante (de ser imigrante clandestino) do art.º 22.º da Lei n.º 6/2004, de 2 de Agosto, veio o arguido A, aí já melhor identificado, recorrer para este Tribunal de Segunda Instância (TSI), para imputar primeiro a esse Tribunal “erro notório na apreciação da prova” no respeitante ao dito crime (devido à falta da indagação de qual a quantidade concreta da droga por si detida destinada ao fornecimento a outrem e de qual a quantidade concreta destinada ao seu consumo próprio), e depois apontar à mesma decisão condenatória o excesso na medida da pena do delito de tráfico, a fim de pedir a redução da pena de prisão deste crime para menos do que cinco anos e seis meses (cfr. a motivação do recurso apresentada a fls. 185 a 188 dos presentes autos correspondentes).
Ao recurso respondeu a Digna Delegada do Procurador junto do Tribunal a quo no sentido de improcedência da argumentação do recorrente (cfr. a resposta de fls. 190 a 192v).
Subidos os autos, emitiu a Digna Procuradora-Adjunta parecer (a fls. 203 a 204v), pugnando também pela improcedência do recurso.
Feito o exame preliminar, corridos os vistos, e com audiência feita nesta Segunda Instância, cumpre decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICA
Do exame dos autos, sabe-se que:
1. O arguido ora recorrente chegou a confessar, de livre vontade e sem reserva, todos os factos imputados (cfr. o teor da acta da audiência de julgamento lavrada a fls. 163 a 164v).
2. Segundo a fundamentação fáctica do acórdão recorrido, todos os factos imputados ao arguido já se encontram provados, de acordo com os quais, na parte que ora interessa à solução do recurso em causa:
– em data não apurada, o arguido entrou clandestinamente em Macau, e começou a dedicar-se aqui ao tráfico de droga;
– em 31 de Outubro de 2012, o arguido foi interceptado em via pública pelo pessoal da Polícia de Segurança Pública, na sequência do que foram descobertos na posse dele diversos produtos de droga, os quais, após feito o exame laboratorial, consistiam essencialmente no seguinte: um total de 7,565 gramas (0,692+0,326+0,316+6,231) líquidos de Metanfetamina e um total de 8,312 gramas (5,695+2,617) líquidos de Ketamina;
– produtos esses que tinham sido adquiridos pelo arguido a indivíduo de identidade não apurada, para serem destinados, na pequena parte dos mesmos, ao consumo próprio, e em toda a remanescente parte ao fornecimento ou à venda a outrem;
– o arguido trabalhava como contabilista, com cerca de RMB$15.000,00 de rendimento mensal, é delinquente primário, tem por habilitações académicas um curso de instituto politécnico, e precisa de sustentar os pais.
3. O Tribunal recorrido condenou o arguido como autor material de um crime de tráfico ilícito de estupefacientes, na pena de seis anos e três meses de prisão, de um crime de consumo ilícito de estupefacientes, na pena de um mês e dez dias de prisão, de um crime de detenção indevida de utensílio (no caso, consistente em tubos de ingestão e papel de estanho), na pena de um mês e dez dias de prisão, e de um crime de reentrada ilegal, na pena de três meses de prisão, e, em cúmulo, na pena única de seis anos e cinco meses de prisão.
III – FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
De antemão, cumpre notar que mesmo em processo penal, e com excepção da matéria de conhecimento oficioso, ao tribunal de recurso cumpre resolver só as questões material e concretamente alegadas na motivação do recurso e ao mesmo tempo devidamente delimitadas nas conclusões da mesma, e já não responder a toda e qualquer razão aduzida pela parte recorrente para sustentar a procedência das suas questões colocadas (nesse sentido, cfr., de entre muitos outros, os acórdãos do TSI, de 7 de Dezembro de 2000 no Processo n.o 130/2000, de 3 de Maio de 2001 no Processo n.o 18/2001, e de 17 de Maio de 2001 no Processo n.o 63/2001).
Quanto ao “erro notório na apreciação da prova” primeiramente esgrimido pelo arguido, tendo ele confessado integralmente e sem reserva os factos imputados, finalmente dados como provados no acórdão recorrido, como pôde ter agora interesse processual para vir defender, à moda de venire contra factum proprium, que o Tribunal recorrido errou na apreciação da prova?
E seja como for, o argumento concretamente usado para sustentar a existência desse vício também não tem nada a ver com o erro notório na apreciação da prova.
No caso, estando provado que o arguido destinou a pequena parte das drogas detidas para consumo próprio e toda a remanescente parte para fornecimento ou venda a outrem, e mesmo que se considere que o termo “pequena parte” pode, na melhor hipótese possível em favor do arguido, equivaler, ao máximo, a 49,99…% das quantidades de substâncias estupefacientes descobertas na sua posse no dia 31 de Outubro de 2012 em Macau, é de observar que a restante parte, destinada ao fornecimento ou à venda a outrem, já está muito superior ao quíntuplo das quantidades de referência de uso diário da Ketamina e da Metanfetamina (respectivamente fixadas 0,6 grama e 0,2 grama, no mapa da quantidade de referência de uso diário constante da Lei n.º 17/2009), pelo que o arguido está legalmente bem condenado em primeira instância como autor material de um crime consumado de tráfico do art.º 8.º, n.º 1, da Lei n.º 17/2009, já que não lhe é aplicável o tipo legal, mais leve, de tráfico de menor gravidade do art.º 11.º da mesma Lei.
Sendo o crime do art.º 8.º, n.º 1, da Lei n.º 17/2009 punível com pena de três a quinze anos de prisão, com a agravante de que o arguido o praticou na qualidade de imigrante clandestino em Macau (cfr. a circunstância agravante prevista no art.º 22.º da Lei n.º 6/2004), a pena de seis anos e três meses de prisão achada pelo Tribunal recorrido para este crime já não pode, aos padrões da medida da pena vertidos nos art.os 40.º, n.os 1 e 2, e 65.º, n.os 1 e 2, do Código Penal (CP), admitir mais margem para redução, ainda que o arguido tenha confessado integralmente e sem reserva os factos imputados (circunstância esta que não tem grande valor atenuativo, por ele ter sido apanhado em flagrante delito) e não tenha antecedentes criminais em Macau, posto que são, por outro lado, muito prementes as necessidades da prevenção geral dos delitos de tráfico de droga, especialmente quando cometidos por pessoas vindas do exterior de Macau.
Há, pois, que naufragar o recurso.
Entretanto, e oficiosamente conhecendo, é de absolver o arguido do imputado crime de detenção indevida de utensílio, quer pela tese jurídica de absorção deste delito pelo crime de consumo ilícito de estupefacientes, quer pela outra tese segundo a qual os tubos de ingestão e papel de estanho em causa no presente caso concreto, como não têm carácter duradouro, não devem ser considerados como utensílio ou equipamento para os efeitos incriminatórios do art.º 15.º da Lei n.º 17/2009. Daí que em sede de novo cúmulo jurídico das penas, operado nos termos do art.º 71.º, n.os 1 e 2, do CP, depois de vistos os factos provados na globalidade e considerada a personalidade do agente reflectida nos mesmos, este deverá ser punido apenas com seis anos, quatro meses e quinze dias de prisão.
IV – DECISÃO
Dest’arte, acordam em julgar improcedente o recurso, e passar a absolver oficiosamente o recorrente do imputado crime de detenção indevida de utensílio, com o que este fica punido apenas com seis anos, quatro meses e quinze dias de prisão única.
Custas pelo arguido recorrente, com seis UC de taxa de justiça e mil e quinhentas patacas de honorários a favor do seu Ex.mo Defensor Oficioso.
Macau, 27 de Fevereiro de 2014.
___________________________
Chan Kuong Seng
(Relator) (com a declaração de que deve ser mantido o julgado da Primeira Instância na totalidade)
___________________________
Tam Hio Wa
(Primeira Juíza-Adjunta) (subscrevo por fundamento de que os objectos não têm carácter duradouro)
___________________________
Choi Mou Pan
(Segundo Juiz-Adjunto) (subscrevo a decisão no sentido de concurso aparente dos crime de consumo e de detenção de instrumento)



Processo n.º 734/2013 Pág. 1/9