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Processo nº 106/2014 Data: 06.03.2014
(Autos de recurso penal)

Assuntos : Acidente de viação.
Crime de “ofensa à integridade física por negligência”.
Danos não patrimoniais.
Indemnização.



SUMÁRIO

1. A indemnização por danos não patrimoniais tem como objectivo proporcionar um conforto ao ofendido a fim de lhe aliviar os sofrimentos que a lesão lhe provocou ou, se possível, lhos fazer esquecer.
Visa, pois, proporcionar ao lesado momentos de prazer ou de alegria, em termos de neutralizar, na medida do possível, o sofrimento moral de que padeceu, sendo também que em matérias como as em questão, inadequados são “montantes simbólicos ou miserabilistas”, não sendo igualmente de se proporcionar “enriquecimentos ilegítimos ou injustificados”.

2. A mesma indemnização não permite uma “reparação directa” dos males causados e sofridos, tratando-se apenas de (tentar) “pagar a dor com prazer”, através da satisfação de outras necessidades com o dinheiro atribuído para compensar os danos sofridos.

3. A indemnização em questão deve constituir uma (verdadeira) “possibilidade compensatória”, devendo o montante de indemnização ser proporcionado à gravidade do dano, ponderando-se, na sua fixação, todas as regras de prudência, de bom senso prático, de justa medida das coisas, da criteriosa ponderação das realidades da vida.

O relator,

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Processo nº 106/2014
(Autos de recurso penal)






ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:





Relatório

1. Por Acórdão do T.J.B. decidiu-se condenar A, arguido com os sinais dos autos, como autor da prática de 1 crime de “ofensa grave à integridade física por negligência”, p. e p. pelos art°s 142°, n.° 3 e 138°, al. b) e d) do C.P.M., na pena de 1 ano e 6 meses de prisão suspensa na sua execução por 2 anos; (…).

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Em relação ao pedido de indemnização civil pela ofendida B deduzido, foi o mesmo julgado parcialmente procedente, condenando-se a demandada civil “COMPANHIA DE SEGUROS C, S.A.R.L. (C保險有限公司)” a pagar àquela um total de MOP$586,216.00 a título de indemnização, sendo MOP$500.000,00 a título de danos não patrimoniais; (cfr., fls. 191 a 204-v que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).

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Inconformada, veio a referida demandada recorrer, motivando para, a final, extrair as conclusões seguintes:

“1ª
A Decisão recorrida, pelas razões que a seguir se explanam, não colhe a aquiescência da ora recorrente relativamente ao quantum indemnizatário arbitrado a favor da ofendida a título de danos não patrimoniais.

Salvo o devido respeito, ao arbitrar a quantia de MOP$500.000,00 a título de danos não patrimoniais, o Distinto Colectivo a quo não associou à sua decisão a prática de um "prudente arbítrio", posto que as lesões da demandante se limitam a uma contusão e hemopneumotoráx nos dois lados do pulmão, fractura da clavícula direita e da 1ª a 3ª costela do lado direito, fractura da 5ª e 7ª vertebra da coluna torácica e contusão do couro cabeludo.

Não tendo sido submetida a nenhuma intervenção cirúrgica, a nenhuma anestesia geral, e bem assim, das lesões não resultou provado nenhuma I.P.P. (Incapacidade Parcial Permanente).
4ª
No caso subjudice não se verifica a existência de qualquer incapacidade, sendo que a recorrida tinha 65 anos de idade e não exercia qualquer actividade profissional.

Apenas a título comparativo, lembrar-se-á que esse Venerando Tribunal, no Processo n° 57/2010, no seu Acórdão de 10 de Março de 2011 considerou não ser excessivo o mesmo montante de MOP$300.000,00 fixado a título de danos não patrimoniais por "lesões que (…) originaram [ao ofendido] 194 dias de doença e outros 10 fixados como período para recuperação de uma operação a que vai ser submetido, que durante o período em questão, teve o ofendido que suportar muitas dores e inconvenientes, e que ficará com duas cicatrizes, uma de 13 cm e outra de 6 cm na perna direi ta, que provavelmente padecerá de disfunção na dita perna e que em virtude do acidente perdeu parte da memória".

Ainda outro exemplo, no processo CR3-08-0308-PCC do mesmo Tribunal Judicial de Base, no qual a ofendida foi vítima de um acidente de viação em que esteve em estado de coma, correndo perigo de vida, sofrido fractura na face e na mão direita, tendo estado internada pelo período de 25 dias e que necessitou de 270 dias para recuperar foi arbitrado pelo mesmo colectivo o montante global de MOP$250.000.00.

Assim, tomando por referência estes dois exemplos, o quantum indemnizatório adequado deveria situar-se algures entre os valores de MOP$200.000,00 e MOP$250.000,00, em montante mais próximo do segundo exemplo (MOP$250. 000,00) , atentas as suas maiores similaridades com o caso vertente.

Reflectindo nos dados supra relatados e salvo melhor opinião, o montante indemnizatório no qual foi condenada a ora recorrente é manifestamente excessivo quando comparado com os valores arbitrados pelo fora de Macau em casos semelhantes, estando estes montantes reservados para os casos mais graves, que requerem maior lapso de tempo de recuperação.
9a
Neste último plano (danos não patrimoniais), ao decidir como decidiu, a douta sentença recorrida violou de forma clara e intensa, o disposto no artigo 487° e no n° 3 do artigo 489°, ambos do Código Civil”; (cfr., fls. 213 a 221).

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Oportunamente, veio também a ofendida demandante interpor “recurso subordinado”, pedindo que o quantum da indemnização pelos seus danos não patrimoniais fosse fixado em valor não inferior a MOP$1.000,000,00; (cfr., fls. 228 a 233).

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Nada parecendo obstar, passa-se a decidir.

Fundamentação

Dos factos

2. Estão provados e não provados os factos como tal elencados no Acórdão recorrido a fls. 199 a 201-v, e que aqui se dão como integralmente reproduzidos.

Do direito

3. Como resulta do que até aqui se deixou relatado, dois são os recursos trazidos à apreciação deste T.S.I..

Certo sendo que o âmbito do(s) recurso(s) é dado pelas conclusões pelo recorrente extraídas da respectiva motivação, e que são apenas as questões pelo recorrente suscitadas e sumariadas nas conclusões que o Tribunal de recurso tem de apreciar – cfr., v.g., G. Marques da Silva in “C.P.P.” III, pág. 355 – sem prejuízo das de conhecimento oficioso, que no caso também não ocorrem, vejamos.

In casu, fixou o Colectivo a quo o quantum de MOP$500.000,00 como indemnização pelos “danos não patrimoniais” pela ofendida (demandante) sofridos.

E, em síntese, diz a recorrente demandada seguradora que excessivo é este montante, devendo ser objecto de redução, considerando, por sua vez, a ofendida demandante, (no seu recurso subordinado), que “curto” é o mesmo montante, pedindo o seu aumento para outro que não deve ser inferior a MOP$1.000.000,00.

–– Sendo assim, este T.S.I. chamado a decidir (tão só) a questão do montante a fixar a título de “indemnização pelos danos não patrimoniais” da ofendida, continuemos, começando-se, como é lógico, pelo “recurso (principal) da demandada”.
Pois bem, em sede de “danos não patrimoniais”, firme tem sido o entendimento deste T.S.I. no sentido de que “a indemnização por danos não patrimoniais tem como objectivo proporcionar um conforto ao ofendido a fim de lhe aliviar os sofrimentos que a lesão lhe provocou ou, se possível, lhos fazer esquecer.
Visa, pois, proporcionar ao lesado momentos de prazer ou de alegria, em termos de neutralizar, na medida do possível, o sofrimento moral de que padeceu”, (cfr., v.g., o Ac. de 03.03.2011, Proc. n° 535/2010), sendo também de considerar que em matérias como as em questão, inadequados são “montantes simbólicos ou miserabilistas”, não sendo igualmente de se proporcionar “enriquecimentos ilegítimos ou injustificados”; (cfr., v.g., o Ac. de 27.06.2013, Proc. n.° 324/2013).

Com efeito, a indemnização em questão deve constituir uma (verdadeira) “possibilidade compensatória”, devendo o montante de indemnização ser proporcionado à gravidade do dano, ponderando-se, na sua fixação, todas as regras de prudência, de bom senso prático, de justa medida das coisas, da criteriosa ponderação das realidades da vida.

Por sua vez, não se pode olvidar que, nos termos do art. 487° do C.C.M.: “quando a responsabilidade se fundar na mera culpa, pode a indemnização ser fixada, equitativamente, em montante inferior ao que corresponderia aos danos causados, desde que o grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso o justifiquem”.

Dito isto, vejamos.

In casu, está provado que:

“No dia 23 de Outubro de 2011, por volta das 5h10 da madrugada, o arguido A que desempenhava funções de motorista conduzia o autocarro de viagens de matrícula MJ-XX-XX pertencente à Companhia de viagens “D”, limitada (veículo pesado), circulando em Macau, pela Avenida XX, em direcção à Rua XX, transportando como passageiros E e F.
O arguido conduzia o seu veículo numa via recta, com duas faixas de rodagem, seguindo-se na altura pela faixa de rodagem direita.
Ao chegar perto do poste de iluminação n°032E07, o arguido conseguiu avistar perfeitamente que existia uma passadeira (zebra) pouco à sua frente.
No entanto, o arguido não regulou a velocidade do seu veículo perante a essa situação especial da existência de uma zebra à sua frente, nem chegou a observar cautelosamente se havia transeunte a utilizar a respectiva zebra.
Nessa altura, uma transeunte (ou seja a ofendida B) estava a atravessar a rua pela zebra do lado esquerdo para o lado direito atendendo o sentido da marcha do veículo do arguido, estando num sítio perfeitamente dentro do campo de visão do arguido.
Quando o veículo do arguido chegou a uma distância de 13.9m verticalmente em relação a acima referida zebra, é que avistou que B estava a atravessar a via pela zebra e que já caminhou até à faixa de rodagem em que se encontrava o veículo do arguido e já próxima da berma da estrada.
No entanto, uma vez que o arguido ao conduzir o seu veículo não prestou atenção se havia alguém a utilizar a respectiva zebra e não tinha regulado previamente a velocidade do seu veículo, como conseguinte, não conseguiu travar atempadamente o seu veículo, indo embater com o autocarro de viagens na pessoa de B que estava na zebra, tendo a mesma caído ao chão em resultado do embate.
Após o referido embate, a parte dianteira direita do seu autocarro de viagens foi embater na barreira metálica instalada no lado direito da referida via rodoviária e só parou depois de embater na referida barreira perto da acima referida zebra, causando consequentemente danos na referida barreira metálica com um metro de comprimento. A referida barreira metálica é bem público gerido pelo Instituto de Assuntos Cívicos, tendo causado, em resultado do referido embate, um prejuízo de MOP$1600.
Feita uma inspecção ao local pela Polícia, constatou-se a existência de um rasto de travagem no sentido vertical com um comprimento de cerca 5.5 metros provocado pelo veículo conduzido pelo arguido localizado a uma distância de 8.4 metros da acima referida zebra.
Após a ocorrência do acidente, B foi transportada ao Hospital Conde São Januário para receber tratamento, e, ficou hospitalizada, desde o próprio dia até 13 de Dezembro de 2011, tendo despendido uma quantia de$28.416 como despesas decorrentes de tratamento médico. Feito o diagnóstico pelo hospital, apurou-se que o acima referido embate causou directamente a B contusões e hemopneumotórax nos dois lados do pulmão b) fracturas da clavícula direita e das 1ª, 2ª e 3ª costelas do lado direito; c) fracturas por compressão na 5ª e 7ª vértebras da coluna torácica; 6) contusão do couro cabeludo.
Feita a peritagem da medicina clínica legal, as características das acima referidas lesões de B correspondem a ferimentos provocadas por objectos contundentes ou materiais semelhantes, e quando ao período de convalescência foi calculado com base nos dias de doença passados pelo médico assistente, lesões essas que provocaram perigo para a vida de B em virtude de hemopneumotórax sofrida e da fractura por compressão na coluna torácica, fazendo com que a mesma, mesmo depois da cura, sofreria de problemas de compressão do nervo e dores recorrentes, afectando-lhe gravemente quanto à capacidade de trabalho e capacidade funcional do corpo, como conseguinte, causaram-lhe ofensa grave à sua integridade física.
Na altura da ocorrência do acidente, o tempo estava bom, com bom estado de iluminação durante a noite, o pavimento estava seco e com pouca intensidade de tráfego.
O arguido que era motorista de profissão, ao conduzir o seu veículo na via pública, e, quando chegou até as proximidades de uma passadeira para peões sinalizada, não reduziu previamente a velocidade, a fim de, se necessário, fazer parar o seu veículo, perante uma circunstância especial da existência na sua frente de uma passadeira destinada para travessia de peões, tendo por isso violado o dever de condução com prudência, tendo em consequência, causado o embate no peão que estava a fazer a travessia ao longo da passadeira.
A acima referida conduta negligente deu origem ao presente acidente, causando lesões graves ao peão.
O arguido teve a referida conduta negligente de forma livre e consciente, sabendo que a mesma era ilegal.
À data da ocorrência dos factos a demandante cível tinha sessenta e cinco anos de idade.
Desde 11 de Julho de 2012 as lesões da demandante cível já se apresentavam como clinicamente curadas.
O arguido é condutor de uma agência de viagens e aufere mensalmente cerca de treze mil a quinze mil patacas (MOP$13,000- MOP$15,000).
Tem como habilitações académicas o ensino primário e tem a mãe e um filho a seu cargo.

Conforme o CRC, o arguido não é primário.
No âmbito dos autos CR1-12-0330-PCS, por sentença de 07 de Dezembro de 2012 e por factos praticados em 26 de Setembro de 2011, o arguido foi condenado por prática de um crime de fuga à responsabilidade p.p. pelo art°89°da Lei n°3/2007 («Lei do Trânsito Rodoviário»), na pena de noventa (90) dias de multa à razão de cento e vinte patacas (MOP$120.00) por dia, o que perfaz o montante de dez mil e oitocentas patacas (MOP$10,800.00), que não sendo paga nem substituída por trabalho cumprirá sessenta (60) dias de prisão subsidiária e na pena acessória de proibição de condução por um período de seis meses, suspensa na sua execução por um período de um ano e três meses. O arguido pagou a multa em 25/01/2013.
A demandante cível despendeu em despesas médicas, medicamentosas ou hospitalares o montante de MOP$28,416.00.
Pela aquisição de uma máquina de marca COSMO DR. IO 9000 para facilitar a circulação de sangue, a demandante cível despendeu o montante de MOP$54,800.00”; (cfr., fls. 199 a 201-v, com sub. nosso).

Nesta conformidade, ponderando na transcrita factualidade dada como provada, tendo presente o que se consignou em relação à indemnização por danos não patrimoniais, e considerando-se (nomeadamente) as lesões pela demandante sofridas, o tempo que precisou para delas se recuperar, as consequências que as mesmas tiveram e terão no seu dia a dia, o evidente sofrimento, inconvenientes e desgostos que sofreu e irá ter que suportar, e a culpa – “negligência grosseira” – exclusiva do arguido na génese do acidente, cremos pois que excessivo não é o quantum de MOP$500.000,00 arbitrado.

Como se deixou dito, a indemnização não permite uma “reparação directa” dos males causados e sofridos, tratando-se apenas de (tentar) “pagar a dor com prazer”, através da satisfação de outras necessidades com o dinheiro atribuído para compensar os danos sofridos, devendo, como já se referiu, constituir uma verdadeira possibilidade compensatória, inadequados sendo montantes meramente “simbólicos” ou “miserabilistas”.

Dest’arte, e nos termos do exposto, nega-se provimento ao recurso da demandada seguradora.

*

–– No que toca ao pedido (inverso) pela demandante deduzido no seu recurso subordinado, crê-se que a mesma deve ser a solução.

Com efeito, o quantum de MOP$500.000,00, (atento o que se expôs), mostra-se ser um montante com o qual se pode viabilizar momentos de prazer que permitem “compensar” os danos pela demandante sofridos, não sendo de esquecer – como já se consignou – que se a indemnização não deve ser “miserabilista” ou “simbólica”, também não deve proporcionar um “enriquecimento ilegítimo e injustificado”.

Tudo visto, e outra questão não havendo a apreciar, resta decidir.

Decisão

4. Em face do exposto, acordam negar provimento aos recursos.

Custas (civis) pelos recorrentes, na proporção dos seus decaimentos.

Macau, aos 06 de Março de 2014


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José Maria Dias Azedo
(Relator)

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Chan Kuong Seng
(Primeiro Juiz-Adjunto)

_________________________
Tam Hio Wa
(Segundo Juiz-Adjunto)

Proc. 106/2014 Pág. 18

Proc. 106/2014 Pág. 19