打印全文
Processo nº 141/2013
(Autos de recurso civil e laboral)

Data: 6/Março/2014

Assunto: Fundamentação da matéria de facto
Oposição entre os fundamentos e a decisão
Impugnação da matéria de facto

SUMÁRIO
- A fundamentação da matéria de facto feita por simples referência às provas em que se baseou a convicção, razão da ciência e a forma como as testemunhas depuseram, embora não seja a forma mais perfeita, mostra-se conforme aos ditames unanimemente adoptados pelos nossos Tribunais.
- A sentença só é nula quando os fundamentos que serviram para fundamentar a decisão estejam em oposição com esta própria (artigo 571º, nº 1, alínea c) do CPC).
- O Tribunal de Segunda Instância repondera a prova produzida em que assentou a decisão impugnada, para tal será de atender ao conteúdo das alegações do recorrente e do recorrido, que têm o ónus de identificar os depoimentos, ou parte deles, que invocam para infirmar ou sustentar a decisão de 1ª instância.
- Reapreciada e valorada a prova de acordo com o princípio da livre convicção, se não conseguir chegar à conclusão de que a prova carreada aos autos pela Autora, a quem compete o ónus de prova, ser suficiente para permitir a alteração das respostas dadas aos quesitos, deve ser negado provimento ao recurso quanto a esta parte.


O Relator,

________________
Tong Hio Fong

Processo nº 141/2013
(Autos de recurso civil e laboral)

Data: 6/Março/2014

Recorrente:
- A Lda. (Autora)

Recorrida:
- B, Macau (Ré)

Acordam os Juízes do Tribunal de Segunda Instância da RAEM:

I) RELATÓRIO
A Lda intentou contra o Instituto para o Desenvolvimento e Qualidade Macau acção ordinária junto do Tribunal Judicial de Base da RAEM, pedindo que se condene a Ré a pagar MOP$714.000,00 a título de indemnização por danos emergentes e MOP$286.000,00 a título de lucros cessantes.
Realizado o julgamento, a acção foi julgada improcedente, tendo a Ré sido absolvida do pedido.
Inconformada com a sentença, dela vem a Autora interpor recurso ordinário, em cujas alegações formularam as seguintes conclusões:
A) O Tribunal a quo, salvo o devido respeito violou o disposto no n.º 2, art.º 556º do CPC, pois que o mesmo deve ser interpretado no sentido de que sobre o julgador impende o dever de fundamentar todo o seu iter cognoscitivo a fim de permitir que os destinatários da sentença compreendam as razões que levaram o julgador a formar uma determinada convicção, formação essa baseada em factos históricos, entre si conectados, sujeitos a uma interpretação racional própria de um bónus pater-familias;
B) In concreto, o Tribunal a quo não fundamentou os juízos e conclusões a que chegou não mencionando um único depoimento uma única prova documental, assim, violando o supra normativo;
C) Por outro lado, o Tribunal a quo também violou a alínea c) do n.º 1 do art.º 571º do CPC porquanto certos fundamentos insertos na douta sentença estão em oposição com a decisão, vejamos:
“Conforme o alegado pela própria Ré, os relatórios em questão foram elaborados na sequência de duas encomendas feitas à Ré…” (segundo parágrafo da douta sentença, in fls. 6 da mesma).
Contudo, mais à frente afirmou-se que a A. “nem sequer logrou provar a alegada relação contratual”;
D) Uma relação contratual não se prova meramente através de documento mas através de quaisquer factos que permitam alicerçar um tal juízo sobre a sua existência;
E) A. cumpriu o seu ónus probandi através da produção de prova testemunhal e documental do A. pelo que, salvo o devido respeito por opinião contrária, todos os pontos da Base Instrutória deveriam ter sido dados como provados, em síntese, o seguinte:
1. Que o A. encomendou os Relatórios 2006FRT93 e 2007FRT02 ao IDQ;
2. Que o IDQ comercializou os supra Relatórios a troco de um preço;
3. Que a XXX de Hong Kong nunca se arrogou à propriedade dos Relatórios 2006FRT93 e 2007FRT02;
4. Que os XXX, XXX, XXX, XXX, XXX e Lote U tem cortinas de fumo cuja instalação só foi possível através de licenciamento administrativo;
5. Que o licenciamento administrativo passa pela posse e exibição dos Relatórios 2006FRT93 e 2007FRT02 (true-copies);
6. Que a Empresa XXX de Hong Kong se reuniu com o A. a fim de negociar indemnização;
7. Que 2006FRT93 e 2007FRT02 andaram a ser comercializados, nomeadamente aos XXX, XXX, XXX, XXX, XXX e Lote U;
8. Que a A. pretendeu usar os Relatórios 2006FRT93 e 2007FRT02 para o seu comércio;
9. Que a venda das true-copies dos Relatórios 2006FRT93 e 2007FRT02 lhe causou prejuízos em razão dos outros empresários não precisarem de adquirir directamente estes documentos ao Autor.
Conclui, pedindo a procedência do recurso, com a consequente revogação da sentença, para que seja substituída por outra na qual se declare a acção provada e procedente condenando-se a Ré no pedido.
*
Notificado, pela Ré foi apresentada resposta, pugnando pela improcedência do recurso interposto pela Autora.
Cumpre decidir.
***
II) FUNDAMENTOS DE FACTO E DE DIREITO
A sentença deu por assente a seguinte factualidade:
A Autora tem por objecto social a prestação de serviços na área da prevenção e combate ao fogo (alínea A) dos factos assentes).
A Ré elaborou o relatório número 2006 FRT93 e o relatório número 2007 FRT02 (resposta ao quesito 1º da base instrutória).
A Autora pretendia usar os relatórios números 2006 FRT93 e 2007 FRT02 no exercício do seu comércio (resposta ao quesito 6º da base instrutória).
A Autora havia acordado com a XXX Limited que só a Autora poderia comercializar em Macau os produtos a que se reportam os relatórios (resposta ao quesito 9º da base instrutória).
*
É perante a matéria de facto acima descrita que se vai conhecer do recurso, tendo em conta as respectivas conclusões que delimitam o seu âmbito.
Prevê-se no artigo 589º, nº 3 do Código de Processo Civil de Macau que “nas conclusões da alegação, pode o recorrente restringir, expressa ou tacitamente, o objecto inicial do recurso”.
Com fundamento nesta norma tem-se entendido que se o recorrente não leva às conclusões da alegação uma questão que tenha versado na alegação, o tribunal de recurso não deve conhecer da mesma, por se entender que o recorrente restringiu tacitamente o objecto do recurso.1
*
São três as questões que carecem de resolução.
- Falta de fundamentação da decisão sobre a matéria de facto;
- Oposição entre os fundamentos e a decisão;
- Impugnação da decisão sobre a matéria de facto dada pelo Tribunal a quo, alegando ter havido erro na apreciação da prova, pedindo que se dê como provada uma série de factos da Base Instrutória.
Quanto à primeira questão, a motivação constante do acórdão sobre a matéria de facto é o seguinte:
“A convicção do Tribunal baseou-se nos documentos juntos aos autos, nomeadamente os de fls. 16 a 96, 190 a 244, 265 a 294 dos autos, nos documentos juntos aos autos de providência cautelar apensados aos presentes autos, no depoimento das testemunhas ouvidas em audiência que depuseram sobre os quesitos da base instrutória, cujo tor se dá por reproduzido aqui para todos os efeitos legais, o que permitiu formar uma síntese quanto à veracidade dos apontados factos.”
Salvo o devido respeito por melhor opinião, entendemos que, embora a forma como se explicita a motivação das respostas aos quesitos não seja a mais perfeita, mas o modo como o Tribunal motivou as suas respostas é minimamente ilustrativo da exteriorização da razão em que se assenta a convicção.
No mesmo sentido, cita-se o Acórdão deste TSI, proferido no âmbito do Processo 413/2006, louvando-se o seguinte:
“Esta fundamentação foi levada ao Acórdão do julgamento da matéria de facto, em conformidade com o disposto no artigo 556º, nº 2 do Código de Processo Civil.
O conteúdo dessa fundamentação mostra-se conforme aos ditames unanimemente adoptados pelos nossos Tribunais, daí se alcançando quais as provas em que se baseou a convicção, razão de ciência e a forma como as testemunhas depuseram.”
Improcedem, pois, as conclusões vertidas nas alíneas A) e B) das alegações.
*
Em segundo lugar, alega a Autora que a decisão recorrida está ferida de nulidade prevista no artigo 571º, nº 1, alínea c) do Código de Processo Civil de Macau, porquanto certos fundamentos estão em oposição com a decisão.
No que concerne à nulidade prevista na alínea c) (oposição entre os fundamentos e a decisão), tal só existe quando se verifica contradição lógica entre os fundamentos e a decisão.2
Por outras palavras, a sentença só enferma de nulidade quando os fundamentos que serviram para fundamentar a decisão estão em oposição com esta própria.
Salvo o devido respeito por melhor entendimento, não julgamos assistir razão à recorrente, uma vez que os fundamentos adoptados pelo Tribunal a quo conduzem logicamente à decisão constante da sentença, melhor dizendo, não logrando a Autora provar a existência da pretensa relação contratual estabelecida entre ela e a Ré, nem do facto de este ter vendido os relatórios a terceiros, outra solução não resta senão julgar improcedente a acção por si intentada.
De facto, a afirmação inserida na sentença e invocada pela recorrente, em que se diz que “Conforme o alegado pela própria Ré, os relatórios em questão foram elaborados na sequência de duas encomendas feitas à Ré para esta proceder a dois testes de resistência ao fogo a determinadas cortinas”, não constitui fundamento para poder concluir pela existência de alguma oposição entre os fundamentos e a decisão, dado que nunca de forma alguma se afirmou na sentença que os relatórios teriam sido elaborados a pedido da Autora, antes pelo contrário, consta do último parágrafo da página 3 da sentença a afirmação no sentido de que “defende a Ré que realizou os referidos testes e elaborou os relatórios não a pedido da Autora mas sim por incumbência de uma outra empresa”, daí que, manifestamente, nenhuma contradição, muito menos nulidade da sentença aqui está em causa.
Improcede, assim, a conclusão vertida na alínea C) das alegações.
*
Por último, insurge-se a Autora ora recorrente contra a decisão sobre a matéria de facto dada pelo Tribunal a quo, alegando ter havido erro na apreciação da prova, entendendo que outra deveria ter sido a decisão do Tribunal face aos elementos de prova produzidos e constantes dos autos, pedindo, para o efeito, que se dê como provada uma série de factos da Base Instrutória.
Dispõe o artigo 629º, nº 1, alínea a) do Código de Processo Civil que a decisão do tribunal de primeira instância sobre a matéria de facto pode ser alterada pelo Tribunal de Segunda Instância se, entre outros casos, do processo constarem todos os elementos de prova que serviram de base à decisão sobre os pontos da matéria de facto em causa ou se, tendo ocorrido gravação dos depoimentos prestados, tiver sido impugnada a decisão com base neles proferida.
Quando exista gravação dos depoimentos prestados em audiência, nos termos do nº 2, a Relação vai, na sua veste de tribunal de apelação, reponderar a prova produzida em que assentou a decisão impugnada, valorando-a de acordo com o princípio da livre apreciação, para tal atendendo ao conteúdo das alegações do recorrente e do recorrido, que têm o ónus de identificar os depoimentos, ou parte deles, que invocam para infirmar ou sustentar a decisão de 1ª instância.(…), na verdade, o alegado erro de julgamento normalmente não inquinará toda a decisão proferida sobre a existência, inexistência ou configuração essencial de certo facto, mas apenas sobre determinado e específico aspecto ou circunstância do mesmo, que cumpre à parte concretizar e delimitar claramente.3
Vejamos.
Nos presentes autos, imputa a recorrente à Ré ter esta vendido cópias dos dois relatórios de testes encomendados por aquela, vendas essas que teriam sido feitas aos concorrentes da Autora, fazendo com que esta viesse a sofrer prejuízos patrimoniais.
Reapreciada a prova produzida, nomeadamente o depoimento das testemunhas indicadas pelas recorrente e recorrida, devidamente inquiridas na audiência, bem como a prova documental junta aos autos, salvo o devido respeito por melhor entendimento, estamos convictos de que, efectivamente, não logrou a Autora fazer prova dos factos que lhe dizem respeito.
Em primeiro lugar, nada se retira dos depoimentos gravados no sentido de que entre a Autora e a Ré foi alguma vez estabelecida qualquer relação contratual.
Pelo depoimento das testemunhas da Autora, a saber, XXX e XXX, ambos afirmaram que os testes de resistência ao fogo e respectivos relatórios foram elaborados pela Ré a pedido de uma empresa chamada XXX Limited, enquanto a Autora era apenas agente de vendas exclusiva daquela empresa em Macau.
Também de acordo com o depoimento das testemunhas da Autora, constata-se que nenhuma delas conseguiram afirmar com toda a certeza que os relatórios daqueles testes teriam sido comercializados pela Ré. Algumas referiram apenas que ouviram dizer do seu patrão que este teria visto pessoas terceiras munidas de cópias dos mesmos relatórios, mas não souberam responder se eram exactamente os mesmos documentos, nem se foram fornecidos pela Ré, muito menos conseguiram identificar os tais alegados indivíduos.
Ainda por cima, atento o depoimento prestado pela testemunha XXX, na qualidade de Vice-Reitor da Universidade de Macau, negou peremptoriamente ter vendido os relatórios elaborados pela Ré a quem quer que fosse, os quais só são entregues, após realizado o exame, à entidade que a contratou para fazer esse projecto.
Mais, também conforme o depoimento da testemunha XXX, ora Comandante do Corpo de Bombeiros, afirmou que, aquando da fiscalização do material utilizado numa construção, se o material já tinha sido objecto de exame, o Corpo de Bombeiros não exigia o relatório de novo, bastava indicar qual o produto e identificar o relatório. Daí que, não se justificaria qual a necessidade da alegada venda de cópias dos relatórios.
Desta forma, valorando os depoimentos de acordo com o princípio da livre convicção, somos a entender que a prova carreada aos autos pela Autora, a quem compete o ónus de prova, não é suficiente para permitir a alteração das respostas dadas aos quesitos.
Destarte, vão improcedentes as conclusões vertidas nas alíneas D) e E) das mesmas alegações.
***
III) DECISÃO
Face ao exposto, acordam em negar provimento ao recurso interposto pela Autora A Lda. contra a Ré B, Macau, confirmando a decisão recorrida.
Custas pela recorrente.
Registe e notifique.
***
Macau, 6 de Março de 2014
Tong Hio Fong
Lai Kin Hong
João A. G. Gil de Oliveira
1 Viriato Manuel Pinheiro de Lima, in Manual de Direito Processual Civil, CFJJ, 2005, página 663
2 Viriato Manuel Pinheiro de Lima, obra citada, página 548
3 José Lebre de Freitas e Armindo Ribeiro Mendes, in Código de Processo Civil Anotado, Vol. 3º, pág. 96 e 97
---------------

------------------------------------------------------------

---------------

------------------------------------------------------------




Processo 141/2013 Página 12