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Processo n.º 500/2011
(Recurso Civil)

Relator: João Gil de Oliveira
Data: .20/Fevereiro/2014
   
   
   Assuntos:

- Compensação com o depósito; resolução do arrendamento
-Massa falida: pagamento de rendas em dívida
- Dedução com o depósito feito pelo inquilino
    
    SUMÁRIO :
    
    1. É legítimo o abatimento, no caso de resolução do arrendamento, ao montante das rendas em dívida pela massa falida, do montante do depósito feito adiantadamente pelo inquilino aquando da celebração do contrato.
    
    2. Não há qualquer compensação nem, não se verificando os respectivos requisitos, se o inquilino pretende abater ao montante em dívida o valor do depósito e o juiz na sentença que decreta a resolução abate tal montante.
    
    
    3. Não se pode falar nessa situação de um crédito privilegiado que haja sido pago em prejuízo dos credores da massa falida, entendendo-se ser esta dívida uma obrigação da própria massa falida que é obrigada ao pagamento das rendas, para mais, estipulando-se no contrato que o depósito podia servir para fazer face ao atraso ou pagamento de rendas em falta.

O Relator,


João A. G. Gil de Oliveira



















Processo n.º 500/2011
(Recurso Civil)
Data : 20/Fevereiro/2014

Recorrentes : Massa Falida da B Macau – Sociedade de Aviação Limitada

Recorrida : C Propriedade I (Macau) Limiada

    ACORDAM OS JUÍZES NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
    I - RELATÓRIO
    1. Neste processo especial de despejo é autora C Propriedade I (Macau), Limitada e ré B Macau - Sociedade de Aviação, Limitada, ambas sociedades comerciais com sede em Macau e mais bem identificadas nos autos.
    A autora alegou que deu de arrendamento à ré determinado imóvel de que é proprietária e que a ré deixou de pagar as rendas respectivas vencidas após 1 de Setembro de 2009 e outros quantitativos acordados e relativos a despesas de administração de condomínio e a consumos de água.
    Pediu, por isso, que fosse declarada a resolução do referido contrato de arrendamento, a condenação da ré a desocupar o locado, a pagar as rendas vencidas e vincendas até efectiva entrega do locado, acrescidas de juros de mora vencidos e vincendos até integral pagamento. Pediu ainda a condenação da ré no pagamento de determinada quantia em dinheiro, a título de despesas de administração de condomínio e de serviços associados, acrescida de juros de mora e no pagamento de despesas pelo consumo de água no locado.
    Ainda antes de decorrido o prazo para a ré contestar veio a autora requerer o despejo imediato a título incidental por falta do pagamento de rendas vencidas na pendência da acção.
    Contestou a ré excepcionando a incompetência do tribunal por, tratando-se a presente de uma acção especial de despejo, não poder a autora peticionar a dívida que peticionou relacionada com despesas de administração de condomínio e outros serviços associados. Ainda em contestação, a ré aceitou a existência do contrato de arrendamento alegado pela autora e a falta de pagamento das rendas que a autora invocou, mas afirmou que não eram devidas as rendas relativas aos meses de Setembro a Novembro de 2009, por assim terem as partes acordado. Disse ainda a ré que pretende operar compensação na dívida de rendas do valor por si pago a título de caução (HKD$284.864,00) e que, caso seja julgada improcedente a excepção de incompetência, deve ser judicialmente reduzido o montante a pagar a título de encargos com o locado. Afirmou a ré que a autora não pode peticionar simultaneamente a resolução do contrato de arrendamento e a indemnização pela mora no pagamento das rendas. Por fim, a contestação da ré impugna o valor da acção que a autora atribui, dizendo que deve ser fixado no valor anual das rendas, e requer que a autora seja notificada para juntar tradução para língua oficial dos documentos que juntou noutras línguas.
    Ao incidente de despejo imediato respondeu a ré concluindo que só pode ter lugar depois de terminado o prazo para contestar, tendo a autora manifestado a sua posição quanto a tal questão a fls. 184 a 189.
    A fls. 195 veio a autora reduzir o pedido, exactamente na parte que a ré o contesta, designadamente quanto aos juros e às rendas em dívida; veio desistir do pedido relativo ao pagamento de despesas com administração de condomínio e com consumo de água e afirmou aceitar o valor da causa proposto pela ré, assim como a compensação por esta trazida a título de excepção/reconvenção.
    Notificada a ré desta tomada de posição da autora, nada veio dizer.
    
    2. Constitui objecto do presente recurso jurisdicional a douta sentença de 22 de Setembro de 2010 do Tribunal Judicial de Base, na parte em que (alínea f) do respectivo dispositivo) decidiu «condenar a ré a pagar à autora a quantia de HKD$427.296,00 (quatrocentos e vinte e sete mil, duzentos e noventa e seis dólares de Hong Kong), a título de rendas vencidas e não pagas, relativas aos meses de Dezembro de 2009 a Abril de 2010, depois de deduzida a caução prestada pela ré».
    
    3. A MASSA FALIDA da B Macau-Sociedade de Aviação, Limitada, mais bem identificada nos autos, não se conformando com aquela sentença, dela recorre, apenas na parte em que em seu entender se operou a compensação das rendas em dívida com a caução prestada, tendo alegado, em síntese conclusiva:
    1.ª - A sentença recorrida padece do vício de violação de lei, por erro de interpretação e aplicação das normas dos artigos 1052.°, 1101.° e 1104.° do Código de Processo Civil;
    2.ª - A R não tinha poderes para operar a compensação referida, tal como não devia ser reconhecida e realizada ope judicis tal compensação;
    3.ª - No momento em que a R operou a compensação já se encontrava em situação de inibição para a prática de certos actos, devido à circunstância de já se ter apresentado ao tribunal para efeitos de declaração de falência;
    4.ª - Após a apresentação à falência, é vedado ao devedor praticar actos que diminuam o seu activo ou modifiquem a situação dos credores;
    5.ª - O fim precípuo da norma do artigo 1052.° do C.P.C. é a defesa dos interesses dos credores;
    6.ª - No processo de execução universal vigora o princípio da par conditio creditorum, nos termos do qual, na ausência de factos que determinem o estabelecimento de desvios ou excepções, os credores estão em pé de igualdade perante o devedor;
    7.ª - No caso dos autos, não foi invocada pela A qualquer causa legítima que justificasse o pagamento preferencial do seu crédito;
    8.ª - A compensação parcial operada pela R favoreceu a credora A relativamente todos os restantes credores daquela, na medida em que, com preferência a todos os demais, viu o seu crédito parcialmente satisfeito no montante de HKD$284.864,00, deixando de ser de KHD712.160,00 para passar a ser apenas de HKD427.296,00;
    9.ª - A compensação efectivada implicou uma diminuição do activo, dado que o montante de HKD284.864,00 depositado pela R junto da A constitui uma parcela do seu activo;
    10.ª - Os artigos 1101.° e 1104.° do CP.C têm âmbitos de aplicação e teleologias diferentes dos da norma do artigo 1052.°, os quais não afastam a aplicação desta;
    11.ª - A compensação operada viola disposição legal de carácter imperativo, razão por que é nula e de nenhum efeito;
    12.ª - A douta sentença devia ter condenado a R no pagamento das rendas vencidas, sem deduzir a caução prestada pela R;
    13.ª - A sentença recorrida viola, nomeadamente, as normas dos artigos 599.°/1 do CC 1052.°, 1101.° e 1104.° do CP.C
    TERMOS EM QUE, requer se revogue a douta sentença recorrida, substituindo-a por outra que, julgando improcedente a invocada compensação, condene a R. no pagamento à A. das rendas vencidas, no valor de HKD712.160,00, sem dedução da caução prestada.
    
    4. C PROPRIEDADE I (MACAU), LDA., A. nos autos à margem identificados, contra-alega, em síntese:

    A) Não se procedeu nos presentes autos a qualquer compensação de crédito, por não se terem verificado os requisitos essencias para que a mesma seja admissível nos termos legais.
    B) Desde logo, não se verifica o pressuposto da reciprocidade de créditos, estabelecida no art. 838.° n.º 1, do CC, na medida em que a caução prestada, como garantia do cumprimento do contrato de arrendamento, não reveste a natureza de crédito.
    C) Quer a lei (art. 994°, n.º 2, do CC), quer o contrato de arrendamento, ao abrigo do qual a Ré pagou o depósito de duas rendas, atribuem-lhe a natureza de caução, qualificada como garantia especial das obrigações (arts. 619.° e ss. do CC).
    D) Nos termos do contrato de arrendamento, a devolução do valor da caução à Ré tornar-se-la apenas exigível 30 dias após o termo do contrato, e desde que a arrendatária não tivesse incumprido o contrato e tivesse entregue o bem arrendado livre de pessoas e bens.
    E) No momento em que a Ré declarou a suposta compensação parcial da sua dívida, ou seja, quando apresentou a contestação, nenhuma das condições legais ou contratuais encontravam-se preenchidas para que a caução passasse a ter a natureza de crédito para a Ré, porquanto (i) as obrigações emergentes do contrato de arrendamento não estavam cumpridas, (ii) o contrato não tinha chegado ao seu termo nem tinha sido resolvido, nem (iii) o imóvel tinha sido entregue à senhoria.
    F) Uma vez que a caução não revestia a natureza de crédito para a Ré, também não se verificou o requisito da compensação que exige que o crédito do compensante seja judicialmente exigível (art. 838º, n.º 1, al. a) do CC).
    G) Pelo mesmos motivos supra enunciados, no momento em que a Ré declarou a suposta compensação, a realização coactiva da caução não era possível, dado o continuado incumprimento do contrato de arrendamento por parte da Ré.
    H) Na verdade, a qualificação como compensação do acto praticado pela Recorrente é errónea.
    I) Trata-se antes de um uso do valor da caução ou encontro de contas com vista a simplificar os pagamentos, ou seja, uma imputação ou dedução, que consiste em abater ao montante de um crédito, para o reduzir à sua justa expressão numérica, a importância de certos factores.
    J) De resto, a sentença recorrida não qualificou o acto como uma compensação de créditos, apenas condenando a Ré no pagamento à Autora das rendas vencidas e não pagas, "depois de deduzida a caução prestada pela Rê', adoptando assim a posição de que não se efectuou uma compensação, mas antes uma dedução ou abatimento de uma quantia que, a não ser deduzida, implicaria o enriquecimento sem causa da Autora.
    K) Neste contexto, dado que a dedução do valor da caução não é qualificada como compensação na sentença recorrida, não há erro na interpretação e aplicação das normas dos arts. 1101.° e 1104.° do CPC, porquanto o momento em a dedução opera corresponde ao momento em que é proferida a respectiva decisão, data em que a Ré já tinha sido declarada falida.
    L) Além disso, nos termos conjugados dos arts. 619.º n.º 1, 620.º n.º 2, e 662.°, n.º 2, todos do CC, a caução na modalidade de depósito em dinheiro, ainda que resultante de negócio jurídico, equipara-se ao penhor.
    M) O penhor confere ao credor o direito à satisfação do seu crédito com preferência sobre os demais credores (art. 662.°, n.º 1, CC), e por conseguinte, a Autora estava na mesma situação de qualquer outro credor priviligiado, detentor de uma garantia especial, que a podia usar sem que operasse qualquer compensação.
    N) A caução, como garantia especial das obrigações, está afecta ao contrato cujo cumprimento visa assegurar, desde a sua constituição, pelo que constitui parte do activo da Autora até ao momento em que o mesmo se encontre integralmente cumprido.
    O) Embora não se conteste que a Ré já se encontrava em situação de inibição para a prática de actos que diminuíssem o seu activo ou modificassem a situação de credores, nos termos do art, 1052.° do CPC, a verdade é que a dedução da caução não diminuiu o seu activo, nem modificou a situação dos credores, porquanto tal acto não favoreceu a Autora relativamente aos restantes credores da Ré.
    Nestes termos requer sejam julgadas improcedentes, por não provadas, com a integral confirmação da Sentença recorrida.
    
    5. Foram colhidos os vistos legais.
    
    II - FACTOS
    A ré contestou a acção em 25 de Maio de 2010 e apresentou-se à falência em 17 de Abril de 2010.
    Em 22 de Set./2010, foi proferida douta sentença com os seguintes fundamentos:
    “(…)Entretanto, foi declarada a falência da ré, o que não extingue o arrendamento em que o falido seja arrendatário, podendo, no entanto, o sr. Administrador da falência fazer terminar o arrendamento se esse for o interesse da massa falida (art. 1116° do Código de Processo Civil). Porém, decorre ainda o prazo para oposição à falência por embargos (art. 1091°, n° 3 do Código de Processo Civil), pelo que, tratando-se a extinção do arrendamento de um acto de liquidação do activo, devem prosseguir os presentes autos, uma vez que, caso sejam opostos embargos, suspenderiam essa mesma liquidação (art. 1091°, n° 4 do C.P.C.) e, em consequência, a extinção do arrendamento pelo administrador da falência.
    Nos termos do n° 2 do art. 930° do Código de Processo Civil, o presente processo especial segue, com algumas alterações, a forma sumária.
    Assim, é já possível conhecer do mérito da causa.
    Com efeito, tendo os ilustres mandatários da autora poderes para o efeito, nada obsta à redução do pedido (art. 217°, nº 2 do C.P.C.), à homologação da desistência parcial do pedido (arts. 235°, 238°, 242° e 243° do C.P.C.), nem à compensação (o disposto no art. 1101 ° do Código de Processo Civil apenas impede os credores da falida de operarem a compensação, nada impedindo a retenção ou utilização da caução por parte do senhorio e nada impedindo que antes da declaração de falência nisso haja acordo, o qual não é resolúvel em beneficio da massa falida nos termos do art. 1104° do Código de Processo Civil).
    Tendo a autora desistido dos pedidos que a ré invocou como fundamento da sua excepção dilatória, ocorre inutilidade do conhecimento da excepção que a ré denominou de incompetência relativa, mas que se configura como de cumulação indevida de pedidos. Com efeito, a ré desistiu e reduziu os pedidos de forma a ficarem "dentro dos limites" da excepção da ré, sendo válidas tais redução e desistência, pelo que aquela excepção já não ocorre.
    Sendo já possível conhecer do mérito da causa, também ocorre inutilidade da tradução dos documentos redigidos em língua não oficial. Na verdade, os mesmos destinam-se a provar factos que já não relevam para a decisão da causa, por já estarem provados por acordo das partes ou por já não haver litígio na parte que lhes diz respeito.
    Pela mesma razão, ocorre inutilidade superveniente da lide no que respeita ao incidente de despejo imediato. Com efeito, se pode já conhecer-se o pedido principal, nada releva conhecer o pedido incidental da mesma natureza.
    Também quanto ao valor da acção, o respectivo incidente está solucionado pela aceitação da autora do valor proposto pela ré e por não se ver motivo para intervenção oficiosa, tudo nos termos dos arts. 249°, nº 2, 256°, nºs 1 e 2 e 257°, nºs 1 e 2 do C.P.C ..
    Pelo exposto, o tribunal decide:
    a) - Homologar a desistência parcial do pedido.
    b) - Fixar à acção o valor de MOP.1 936505,47.
    c) - Declarar resolvido o contrato de arrendamento celebrado entre autora e ré relativo às fracções autónomas "…" a "…", também designadas por fracções … a …, do prédio urbano sito na Avenida ……, nºs. … a …, descrito na conservatória do Registo Predial sob o n.º 2XXXX, conhecidopor "Edificio ……".
    e) - Condenar a ré a entregar imediatamente o locado livre e devoluto à autora;
    f) - Condenar a ré a pagar à autora a quantia de HKD$427.,296,00 (quatrocentos e vinte e sete mil, duzentos e noventa e seis Dólares de Hong Kong), a título de rendas vencidas e não pagas, relativas aos meses de Dezembro de 2009 a Abril de 2010, depois de deduzida a caução prestada pela ré.
    g) - Absolver a ré do demais peticionado pela autora
    Custas por autora e ré, na proporção de 3/5 para a primeira e 2/5 para a segunda, devendo as da ré ser suportadas pela massa falida.
    Registe e notifique, sendo a ré notificada na pessoa da S~ Administradora da Falência.
    Dê conhecimento ao Ilustre mandatário da ré. “
    
    III - FUNDAMENTOS
    O objecto do presente recurso passa apenas por saber se está correcto o abatimento operado pelo Mmo Juiz no montante das rendas devidas pela arrendatária ao senhorio, relativo ao valor dos montantes da caução adiantada a título de rendas, tendo a inquilina entretanto sido declarada falida.
    Alega a recorrente que a Ré não detinha poderes para operar a compensação parcial do seu crédito com o montante da caução por ela depositada junto da autora, ora recorrida, dado que aquela já se tinha apresentado a Tribunal para efeitos de declaração de falência e, por esse motivo, estava impedida de operar a compensação nos termos do art. 1052.° do CPC.
   Afigura-se-nos que não lhe assiste razão e só numa primeira aparência se podia entender que a dedução efectuada dos valores da caução corresponderiam a uma dívida da massa falida sujeita à liquidação do património a par dos demais credores e, ao ter sido abatida ao montante das rendas em dívida se estaria a violar o disposto no artigo 1052º do CPC:
   “Nesta fase do processo o apresentante conserva a administração dos bens e a gestão da sua empresa, com o concurso e sob a fiscalização do administrador da falência e dos credores designados para o auxiliarem, sendo-lhe, porém, vedado praticar actos que diminuam o seu activo ou modifiquem a situação dos credores.”
    Muito embora tivesse sido invocado o instituto da compensação pela ré na sua contestação, o certo é que não estamos perante uma situação jurídica como tal caracterizada nem sequer o Mmo Juiz invocou qualquer compensação.
    Compensação é o meio de o devedor se livrar da obrigação por extinção simultânea do crédito equivalente de que dispunha sobre o seu credor.1
    Dispõe o artigo 838º do CC:
    “1. Quando duas pessoas sejam reciprocamente credor e devedor, qualquer delas pode livrar-se da sua obrigação por meio da compensação com a obrigação do seu credor, verificados os seguintes requisitos cumulativos:
a) Ser o seu crédito exigível judicialmente e não proceder contra ele excepção, peremptória ou dilatória, de direito material;
b) Terem as duas obrigações por objecto coisas fungíveis da mesma espécie e qualidade.
2. Se as duas dívidas não forem de igual montante, pode dar-se a compensação na parte correspondente.
3. A iliquidez da dívida não impede a compensação.”
    Para que haja compensação torna-se necessário que haja uma reciprocidade de crédito, situação que, desde logo não se observa no presente caso, pois que não se pode dizer que o arrendatário seja credor do senhorio e nem sequer há obrigações que tenham por objecto coisas fungíveis da mesma espécie na relação jurídica arrendatícia.
    O depósito do valor equivalente a duas rendas - valor que está aqui em causa - foi prestado pela ré a título de caução, quer por força da lei que não permite mais do que a antecipação de uma renda, tal como decorre do art. 994°, n.º 1 e 2, do CC.
    Qual o valor desse pagamento-caução?
    De acordo com o contrato de arrendamento junto aos autos (doc. 4 junto à petição inicial), a arrendatária (Ré) deve prestar o depósito das duas rendas a título de caução, como garantia do integral cumprimento do contrato (artigo 7.º, n.º 1), dispondo ainda o n.º 2 do mesmo artigo 7.° daquele contrato que a senhoria (autora) devolverá o depósito sem juros à arrendatária, 30 dias após o termo do contrato, e desde que a arrendatária não tenha incumprido o contrato e tenha entregue o bem arrendado livre de pessoas e bens.
    Sobreleva aqui a prestação de uma caução que foi contratada, na modalidade de depósito em dinheiro e que não deixa de assumir a natureza de uma garantia especial das obrigações, prevista nos arts. 619.° e ss. do CC, tornando-se apenas exigível o seu valor pelo sujeito que a prestou depois de cumpridas as obrigações que esta visa garantir.
    Ora, acontece ter ficado provado nos autos que a ré devia à autora o equivalente a cinco meses de rendas, tal como consignado na sentença, pelo que, à data em que a ré declarou a suposta compensação da sua dívida pela caução prestada, ou seja, quando apresentou a contestação (notificada à autora em 10 de Junho de 2010), encontrava-se manifestamente em incumprimento do contrato de arrendamento, devendo várias rendas ainda enquanto não se apresentara à falência.
    É, aliás, a própria ré que pede que a sua dívida seja abatida dos montantes caucionados (dois meses de renda).
    Acresce que na data em que se formula tal pedido, na contestação, sob a capa de uma pretensa compensação, o contrato de arrendamento não estava ainda resolvido dado que por imposição legal a resolução do contrato fundada na falta de cumprimento por parte do locatário tem de ser obrigatoriamente declarada pelo tribunal (art. 1017.°, n.º 2, do CC), o que apenas sucedeu quando proferida a sentença recorrida, em 22/09/2010 (cfr. alínea c) do respectivo dispositivo).
    Mais acresce decorrer dos autos que àquelas datas, tanto a da contestação, como a da apresentação à falência, como ainda posteriormente, o locado continuou a ser ocupado pela ré, o que implica a continuação do pagamento da renda, obrigação que o administrador da falência não deve deixar de satisfazer, face ao que dispõe o artigo 1116º do CC.
    Não se observa ainda compensação na medida em que para que tal ocorra torna-se necessário que no momento em que o credor opera a compensação, esteja em condições de exigir do devedor a realização coactiva do seu crédito, ou seja, que o contra crédito do autor da compensação seja exigível e imediatamente exequível, o que só seria possível se o credor, neste caso o inquilino tivesse cumprido de sua banda. Ou seja, só se ele tivesse pagado as rendas seria credor dos montantes da caução adiantada.
    Conclui-se, pois, como bem acentua a recorrida, que nenhuma das condições contratuais ou legais estavam preenchidas para que o valor da caução constituísse um crédito da ré, porquanto (i) as obrigações emergentes do contrato de arrendamento não estavam cumpridas, (ii) o contrato não tinha chegado ao seu termo nem tinha sido declarada a sua resolução, nem (iii) o imóvel tinha sido entregue à senhoria.
    Parece resultar claro que não havia lugar a qualquer compensação e que o pagamento das rendas era até uma obrigação da massa falida, configurando-se essa obrigação como inserida nos poderes e competência da administração da massa falida.
    
    Como refere Antunes Varela, “não se confunde com a compensação (mútua extinção de créditos recíprocos) a figura da imputação ou dedução, que consiste em abater ao montante de um crédito, para o reduzir à sua justa expressão numérica, a importância de certos factores (despesas, encargos, benefícios, etc.). Não há, em semelhantes hipóteses, dois créditos recíprocos que mutuamente se extingam, mas um só crédito cujo montante tem que ser diminuído de determinadas verbas”2
    É verdade que o artigo 1101º do CPC estabelece que os credores, a partir da data da sentença da falência, perdem a faculdade de compensar as suas dívidas com quaisquer créditos que tenham sobre o falido e na sentença leva-se exactamente em conta com essa limitação, sendo o Mmo Juiz muito claro ao afastar a compensação e ao dizer que não se estava perante um acto que fosse resolúvel em benefício da massa falida, antes, nada impedindo a retenção ou utilização da caução por parte do senhorio em substituição - e mesmo assim com prejuízo - das obrigações incumpridas. Neste contexto, conclui-se ainda que a invocação na sentença recorrida dos arts. 1101.º e 1104.° do CPC é correcta, porquanto, não tendo qualificado a dedução do valor da caução como compensação, o momento em que a dedução opera não é o momento da respectiva declaração, mas sim o da data em que foi proferida a respectiva decisão.
    Nem sequer a douta sentença incorre em violação de lei ao referir tais normas respeitantes a uma situação de falência, pois que, à data da sentença, já tinha sido declarada a falência da Ré (em 13 de Setembro de 2010).
    
    De acordo com o disposto no art. 662.º, n.º 2, do CC, “é havido como penhor o depósito a que se refere o n.º 1 do artigo 619.º”, equiparando assim a caução imposta ou autorizada por lei ao penhor.
    O que de útil daqui resulta para o que nos interessa é o regime aplicável ao credor pignoratício, em particular em relação à coisa penhorada, daí se extraindo um direito de retenção que pode ser exercido mesmo contra o próprio dono - cfr. art. 666º, a) e 745º, e) do CC - o que o demarca de uma obrigatoriedade de chamamento à própria massa falida.
    A recorrida serve-se deste argumento para daí retirar uma garantia que privilegiava o seu crédito, mas não se acolhe essa linha argumentativa, na medida em que se assim fosse todos os credores, ainda que privilegiados, devem concorrer entre si e com os demais credores comuns e fazer-se pagar gradativamente pelos bens da massa falida.
    A questão decisiva assenta no facto de se tratar de uma despesa da ré, por esta assumida e mantida ainda pela massa falida e, no momento em que foi resolvido o contrato, o valor caucionado foi imputado no montante que devia por ela ter sido pago, não se tratando de exercer um qualquer direito de crédito privilegiado, mas antes de apuramento do devido pela massa falida com imputação do que se considerou como já pago. Só se assim se não tivesse operado o cálculo do montante em dívida esse crédito passaria a concorrer privilegiadamente, com os demais credores, em relação à massa falida.
    Aliás, a corroborar este entendimento, em termos definitivos, é o que decorre do próprio contrato de arrendamento, a fls 59, quando a cláusula respeitante ao depósito pago adiantadamente pelo inquilino, prevê que o respectivo montante pode servir para fazer face à falta ou atraso de pagamento das rendas.
    Se outras razões não houvesse, daqui decorre uma natureza do depósito recondutível ou permissiva do abate das rendas em dívida.
    
    Somos, assim, a manter o doutamente decidido.
    
    IV - DECISÃO
    Pelas apontadas razões, acordam em negar provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida.
    Custas pela recorrente.
Macau, 20 de Fevereiro de 2014,

(Relator)
João A. G. Gil de Oliveira

(Primeiro Juiz-Adjunto)
Ho Wai Neng

(Segundo Juiz-Adjunto)
José Cândido de Pinho
1 - A. Varela, Das Obrig. em Geral, 3ª ed., 2º, 161
2- Das Obrigações em Geral, Vol. II, 7ª ed., 199
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500/2011 20/20