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Processo nº 654/2007
(Autos de recurso contencioso)

Data: 13/Março/2014

Assunto: Processo disciplinar contra notário privado
      Ofensa do conteúdo essencial de direito fundamental
Erro nos pressupostos de facto
  Violação dos deveres profissionais
Insindicabilidade da pena disciplinar

SUMÁRIO
     - Desde que seja garantido ao arguido num processo disciplinar o direito de defesa, designadamente o exercício do direito de audiência, contraditório, intervenção processual traduzida no oferecimento e produção de provas, não se mostra, assim, violado o conteúdo essencial de um direito fundamental.
     - Tendo a função notarial essencialmente por fim dar forma legal e conferir fé pública aos actos jurídicos extrajudiciais, o recorrente enquanto notário privado, ao ter tomado conhecimento da revogação da procuração, e foi junta cópia original da mesma, pedindo-lhe para não se outorgar qualquer acto notarial relativo a imóveis de que seja titular o representado, alertando-se para a existência de um plano que visava lesar os direitos do mesmo, devia ter recusado o pedido de outorga de escrituras que lhe foi solicitado pelo representante, sob pena de violação do dever de zelo.
- Mesmo que se entenda não ter a procuração sido revogada, mas constatando-se que o representante não tinha poderes de representação bastante, o recorrente devia ter advertido os outorgantes desse vício, nos termos do artigo 16º, nº 2 do Código do Notariado, no sentido de ficar consagrada a advertência aos outorgantes da existência daquele vício de representação sem poderes e da ineficácia do acto enquanto não existisse ratificação por parte do representado.
     - Sendo ao tribunal possível averiguar se os factos imputados ao recorrente constituem infracções disciplinares, já lhe não cabe apreciar a medida concreta da pena, salvo em casos de erro grosseiro e manifesto, notória injustiça ou violação dos princípios da proporcionalidade e da imparcialidade, sendo essa a tarefa da Administração que se insere na chamada discricionariedade técnica ou administrativa.
       
       
O Relator,

________________
Tong Hio Fong

Processo nº 654/2007
(Autos de recurso contencioso)

Data: 13/Março/2014

Recorrente:
- A

Entidade recorrida:
- Secretária para a Administração e Justiça

Acordam os Juízes do Tribunal de Segunda Instância da RAEM:

I) RELATÓRIO
A, notário privado, melhor identificado nos autos, notificado do despacho da Exmª Secretária para a Administração e Justiça proferido em 24 de Setembro de 2007, que determinou a aplicação da pena disciplinar de cassação da licença de notário privado, dele não se conformando, vem interpor o presente recurso contencioso, em cujas alegações formulou as seguintes conclusões:
A) O Despacho Punitivo de que ora se recorre, remete para o Relatório Final datado de 3 de Setembro de 2007, que, por sua vez, constitui uma cópia da Acusação de 5 de Junho de 2007, ambos da autoria do Exmo. Senhor Instrutor, Dr. XXXX, que pouco ou nada difere da anterior Acusação, datada de 29 de Março de 2007, elaborado pelo Dr. B, Instrutor entretanto afastado, por impedimento suscitado pelo então arguido e ora recorrente.
B) Sendo que, o Relatório Final que a Decisão Final corporiza e de que vem o presente recurso é, ainda, cópia, do Relatório Final, parte integrante do Despacho Punitivo, cuja anulação foi declarada pelo Tribunal de Última Instância, por violação do disposto no artigo 340º do Código de Processo Penal, em virtude de uma alteração substancial dos factos.
C) Considerando, reiteradamente, os Exmo. Senhores Instrutores que, não obstante a anulação do acto punitivo, (sic) “todos os actos procedimentais realizados que se encontram precedentes à fase viciada são válidos e devem ser aproveitados” (…), violou-se, de modo grave e consecutivamente, i) o prescrito no artigo 340º do Código de Processo Penal, ii) os efeitos da anulação do acto administrativo punitivo; iii) as garantias processuais fundamentais de defesa do então arguido e ora recorrente; iv) o princípio presunção de inocência, e do seu corolário in dúbio pró reo, do ora recorrente – direitos fundamentais do arguido.
D) Ao não ter sido instaurado um novo procedimento disciplinar, ab initio, quanto aos novos factos, que resultam incluídos na Decisão Final, que integra o Relatório Final, o Despacho Punitivo é nulo, por ofender o conteúdo de um direito fundamental do ora recorrente, nos termos previstos no artigo 122º, n.º 2, alínea d), do Código do Procedimento Administrativo, o que desde já, como a final, se requer.
E) O Despacho Punitivo de que ora se recorre imputa ao ora recorrente várias infracções disciplinares: i) violação do artigo 16º do Código de Notariado – não advertência aos outorgantes da existência de vício ou situação de ineficácia do acto e falta de consignação de tal advertência no instrumento público;
F) Violação do n.º 1, da alínea b), do n.º 2 e do n.º 4, do artigo 279º, do ETAPM, ou seja, desrespeito do dever de zelo e concretização desse dever de zelo, pelo não exercício das funções de notário com eficiência e empenhamento.
G) Quanto à alegada violação do artigo 16º do Código do Notariado, como o ora recorrente já teve oportunidade de explanar, tal situação não se verificou de todo, ou melhor, verificou-se mas, antes, ao contrário.
H) Ora, diversamente do alegado no Relatório Final, parte integrante do Despacho Punitivo de que ora se recorre, da análise das cinco escrituras públicas facilmente se constata, expressa no seu texto, a menção à situação de ineficácia das mesmas por parte do ora recorrente, no exercício eficiente, empenhado, demonstrando um cumprimento zeloso da sua função de Notário, conforme se recorda:
“Adverti os outorgantes da ineficácia deste acto perante terceiros enquanto não for registado, bem como, da ineficácia do mesmo, nos termos do artigo 16º, n.ºs 1 e 2 do Código do Notariado, caso a procuração tenha sido revogada ou cancelada.” (Fim de citação)
I) Nem o ora recorrente, agindo como Notário, poderia, de acordo com o imposto no n.º 1, do artigo 16º, do Código do Notariado, ter recusado praticar o acto com fundamento da sua ineficácia.
J) Resulta, outrossim, que a interpretação laborada no Despacho de que ora se recorre, no que tange ao mencionado n.º 2, do artigo 16º, do Código do Notariado, não acompanha o espírito nem a letra da referida disposição legal, resultando, uma incorrecta aplicação da mesma ao presente caso, e, bem assim, na subsunção dos factos, pois sobre o Notário recai o dever de advertência da existência do vício ou – e não e – da sua situação de ineficácia, o que constitui causa de anulação, nos termos do artigo 124º do Código do Procedimento Administrativo, o que desde já, como a final, se requer que seja declarada.
K) Acrescendo que, e ainda que se considere, sem se conceber, que as escrituras lavradas pelo ora recorrente tenham sido outorgadas por quem não tinha poderes para representar a Associação mandante, a consequência jurídica dessa mesma falta consiste pura, e simplesmente, na insusceptibilidade de produção do efeito jurídico na esfera do representado a que a declaração do representante tenderia, ou seja, a transmissão dos bens.
L) Pelo que, nenhum prejuízo patrimonial se produz, ou produziu.
M) Em 2 de Julho de 1997, o então arguido e ora recorrente levou ao conhecimento da Exma. Senhora Secretária para a Administração e Justiça, por via do Instrutor encarregue do processo, a Decisão Judicial, proferida pelo Tribunal de Base de Macau, datada de 27 de Fevereiro de 2007, no âmbito dos Autos Cíveis de numeração CV3-03-0013-CAO, que, por um lado, declara (i) a revogação da Procuração, e (ii) a ineficácia face à Associação mandante dos negócios de compra e venda em causa; e, por outro lado, dá por não provada a intenção dos réus prejudicar a autora.
N) Não obstante, no Despacho Punitivo de que vem o presente recurso, conclui-se que, e ainda que os negócios de compra e venda sejam ineficazes relativamente à Associação mandante – pelo que, juridicamente, prejuízo algum existe, ou poderia existir -, se verificaram prejuízos na esfera jurídica desta, em virtude da transferência, contra a sua vontade, de imóveis da Associação para terceiros, quando, e em boa verdade, nenhuma venda, pela sua ineficácia, se verificou.
O) O Exmo. Senhor Instrutor, autor do Relatório Final, e a Exma. Senhora Secretária para a Administração e Justiça, optaram, antes, por ignorar o citado aresto, prova documental junta, e admitida, aos autos disciplinares pelo ora recorrente, único, e determinante, meio na definição da matéria de facto provada e não provada, e que conduz, inarravelmente, à consignação como não provado, da existência de avultados prejuízos à Associação de Piedade e de Beneficência “C” ou “D”, o que desde já, como a final, se requer.
P) Ao que acresce que, a inexistência de avultados prejuízos à Associação de Piedade e de Beneficência “C” ou “D”, e, bem assim, ao serviço público ou ao interesse geral, nos termos previstos no artigo 283º, n.º 1, alínea b), do ETAPM, enquanto circunstância agravante, e como tal valorada na determinação da pena disciplinar aplicada ao ora recorrente, não se verifica, pelo que a mesma deve, por Vossas Excelências, ser tomada, antes, como circunstância atenuante, para os devidos efeitos enunciados na alínea h), do artigo 282º, do mesmo diploma legal.
Q) Verificando-se, outrossim, por força da contradição existente entre o teor da Decisão Judicial e do Despacho Punitivo de que ora se recorre, um vício de forma, que acarreta a anulação do mesmo, o que desde já, como afinal, se requer que seja declarada.
R) Contradições existentes, ainda, mas que do teor da Decisão Final de que ora se recorre parece desatender, entre o teor da Procuração, lavrada em 30 de Setembro de 1993, e as três missivas enviadas ao então arguido e ora recorrente.
S) Reclamando-se do ora recorrente, em arrepio dos deveres estatutários que sobre si impendiam, uma actuação conforme com as ditas três cartas (cópias simples) remetidas pela Associação de Piedade e de Beneficência “C” ou “D”, mas nunca confirmadas por quem de direito, que mais não são, nem seriam, do que “estados de alma”, enfermadas de contradições que ressaltam à leitura do homem médio, em detrimento da pública-forma que lhe fora apresentada, dotada de valor pleno, e dos três Ofícios da Direcção dos Serviços e Assuntos de Justiça, que sobre a eventual revogação da Procuração, lhe chegaram ao conhecimento.
T) Ao concluir-se, no Relatório Final, e na Decisão Final que corporiza aquele, que a Procuração, sub iudice, não confere poderes de representação bastante ao Senhor E, aliás F, para dispor dos imóveis propriedade da Associação de Piedade e de Beneficência “C”, nem para operar a transmissão de bens, laborou-se num erro de facto, quer pela consideração de factos inexistentes, quer pela errónea apreciação da factualidade subjacente.
U) Os poderes conferidos ao Senhor E aliás F pela Associação de Piedade e de Beneficência “C”, mais conhecida por “D” e exarados na Procuração, são os mesmos que foram conferidos na centésima segunda reunião da referida Associação, cuja acta se faz expressa menção, e para ela se remete, no texto da Procuração, datada de 30 de Setembro de 1993.
V) Apelando aos cânones declarativistas na interpretação do teor da Procuração e dos poderes de representação nela outorgados, impressos no artigo 228º do Código Civil – cujo respeito não se colhe da interpretação traçada no Despacho Punitivo de que vem o presente recurso – em paralelo com o contexto histórico subjacente à centésima segunda reunião da Associação de Piedade e de Beneficência “C”, mais conhecida por “D”, e à Procuração, lavrada em 30 de Setembro de 1993, em momento anterior desenvolvido, e que ora se dá aqui, integralmente, por reproduzido, a Procuração, sub iudice, confere poderes de representação ao Senhor E alias F.
W) Tanto mais evidente, e incontornável, quanto: i) se o “constitui seu bastante procurador”, é porque houve a atribuição de poderes de representação; ii) se lhe “confere os poderes que aí se enunciam”, então, foram, efectivamente, conferidos poderes pela Associação de Piedade e de Beneficência “C”, também conhecida por “D”, ao Senhor E aliás F, encontrando-se os mesmos concretizados e identificados na Procuração.
X) Verifica-se, porém, que, o Exmo. Senhor Instrutor, autor do Relatório Final, e a Exma. Senhora Secretária para a Administração e Justiça, que, na Decisão Final recorrida, adere integralmente, reproduzindo, aquele Relatório, em consciente desconsideração da vontade histórica e declarada na Procuração lavrada em 30 de Setembro de 1993, que persistentemente, e de modo clarividente, foi sendo levada ao conhecimento daqueles pelo então arguido e ora recorrente, fazem tábua rasa, por um lado, do teor da Procuração, e, por outro, da vontade da própria Associação de Piedade e de Beneficência “C”, também conhecida por “D” ao outorgar uma Procuração, mediante a qual conferiu poderes ao Senhor E aliás F para dispor do seu património.
Y) O que aliás, se depreende, e ainda, por nos Autos de Providência Cautelar, a mencionada Associação mandante (autora) pugnar, tão-só, pela revogação da Procuração, datada de 30 de Setembro de 1993, sem qualquer alusão ao facto de da mesma não resultar a atribuição de quaisquer poderes de representação bastante ao Senhor E aliás F.
Z) Resulta, assim, que, o ora recorrente, ao celebrar as cinco escrituras públicas, interpretou correctamente os poderes conferidos pela Associação de Piedade e de Beneficência “C”, também conhecida por “D” ao Senhor E aliás F, exarados na Procuração lavrada em 30 de Setembro de 1993.
AA) Caso assim não se entendesse, a única ilação a extrair, que, por ser ilegal, terá, imediatamente, de ser rejeitada, será admitir-se que o Exmo. Senhor Dr. J, no exercício da sua actividade de Notário Privado, lavrou uma procuração em que o representado – Associação de Piedade e de Beneficência “C”, também conhecida por “D” – estaria a conferir poderes representativos ao representante – Senhor E aliás F – para actuar sobre a esfera jurídica de terceiro – Associação de Beneficência dos Bonzos do Templo ou Pagode “C” (D).
BB) Nem se concebe, por tal implicar uma indesejável e implausível violação dos deveres estatutários a que o Exmo. Senhor Dr. J, no exercício da sua actividade de Notário Privado, está vinculado – designadamente, e nos termos enunciados no artigo 1º, no artigo 14º, n.º 1, alínea a), e no artigo 5º, do Código do Notariado – que a Procuração se encontrasse, e se encontre, desprovida de qualquer efeito útil e, bem assim, de objecto, quando, e em especial, o referido Notário privilegiava do pleno conhecimento do contexto histórico, por expressa invocação, no texto da Procuração, do teor da acta da centésima segunda reunião da Associação mandante, realizada em 22 de Abril de 1993.
CC) Face ao imediatamente acima explanado, o Despacho Punitivo recorrido é ilegal, por vício de violação de lei, fundando-se a aplicação da pena disciplinar de cassação de licença de Notário Provado ao ora recorrente, por um lado, na manifesta e errónea apreciação dos factos – designadamente, do conhecimento do ora recorrente da Procuração revogada, da inexistência de poderes de disposição resultante do teor da Procuração, da violação dos deveres legais que impendem sobre o ora recorrente enquanto Notário Privado – e, por outro lado, a consideração de factos inexistentes – a produção de avultados prejuízos à Associação de Piedade e de Beneficência “C” ou “D”, o que é causa de anulação do acto administrativo, nos termos do artigo 124º do Código do Procedimento Administrativo, o que desde já, como afinal, se requer que seja declarada.
DD) O ora recorrente, ao celebrar as cinco escrituras públicas de compra e venda, no exercício da sua actividade de Notário Privado, fazendo expressa advertência da ineficácia do acto, acautelando os interesses quer do adquirente, quer de terceiros, quer da Associação mandante, cumpriu as suas funções com total e irrepreensível respeito pelos seus deveres estatutários e legais.
EE) Pelo que, e de modo veemente, o ora recorrente repudia a imputação, inserta no Despacho Punitivo de que ora se recorre, de uma qualquer actuação ilícita e culposa – sendo certo que, a violação de regras e princípios estatuários não se faz, ou não tem relevância em face da lei, sem culpa, por parte do ora recorrente -, por violadora dos deveres de zelo, eficiência e empenhamento no exercício da sua função notarial, consignados no artigo 17º do Código do Notariado, n.º 279º, n.º 1, alínea b), n.º 2 e n.º 4º, do ETAPM, aplicável por força do disposto no artigo 21º, do Estatuto dos Notários Privados.
FF) Na verdade, do artigo 17º do Código do Notariado não emana um qualquer dever, servindo antes, e fundamentalmente, para prever e regular algumas dificuldades que pudessem surgir da acumulação legalmente necessária do estatuto do Advogado e do Notário Privado, não podendo, por isso, da sua “inobservância” retirar-se uma qualquer consequência e, em particular, uma consequência sancionatória de natureza disciplinar.
GG) Porque a faculdade de não realização de um acto não pode confundir-se com um dever de abstenção da prática do mesmo, o Despacho Punitivo ao socorrer-se do preceituado no artigo 17º do Código do Notariado para, e por essa via legal, imputar ao então arguido e ora recorrente, o não cumprimento do dever de zelo não de uma faculdade discricionária, viola o mencionado preceito, o que constitui causa de anulação do acto recorrido, conforme o preceituado no artigo 124º do Código do Procedimento Administrativo, o que desde já, como a final, se requer que seja declarada.
HH) Como consequência directa, imediata e necessária do que resulta imediatamente acima exposto, a pena disciplinar de cassação de licença de Notário Privado aplicada ao ora recorrente, é desproporcional, ilegal e injusta.
II) É desproporcional, por não se vislumbrar apropriada, indispensável ou, sequer, necessária à prossecução do fim ou dos fins a que a mesma se destina, quando resulta, o que só pode resultar provado e determinante na aplicação de uma qualquer censura disciplinar, a inexistência de qualquer prejuízo, muito menos avultado, resultante da conduta do ora recorrente, que, antes, sempre cuidou de acautelar os interesses das partes e de terceiros, pela expressa e legal advertência exarada nas cinco escrituras públicas que lavrou.
JJ) A pena disciplinar aplicada ao ora recorrente e que é objecto do presente recurso, revela-se, pois, profusamente injusta, ilegal e excessiva na sua medida, ao restringir-se o exercício de um direito fundamental – liberdade de escolha da profissão e emprego, proclamada no artigo 35º da Lei Básica de Macau – e, bem assim, ao ofender a dignidade da pessoa humana, na medida em que se impede, ad eternum, o exercício da única actividade a que o ora recorrente sempre se dedicara, e que tem sido, e é, um profissional exemplar, não se lhe reconhecendo qualquer censura disciplinar anterior, em nome de um benefício que, e ainda que não se alcance, a DSAJ presume atingível com a cassação da licença de Notário Privado ao ora recorrente.
KK) Ao violar o disposto nos artigos 3º, 5º e 7º do Código do Procedimento Administrativo, a Decisão Final de que vem o presente recurso, é ilegal, por violação de lei, e, por conseguinte, anulável, por força do disposto no artigo 124º do Código do Procedimento Administrativo, o que desde já, como a final, se requer que seja declarada.
Conclui, pedindo a declaração de:
- nulidade do despacho recorrido por o mesmo ofender o conteúdo essencial de um direito fundamental, nos termos do artigo 122º, nº 2, alínea d) do Código do Procedimento Administrativo, com a consequente instauração de novo procedimento disciplinar quanto aos novos factos e à nova qualificação jurídica;
- anulação do despacho recorrido, por errada interpretação e aplicação do artigo 16º do Código do Notariado;
- como facto provado por inexistência de prejuízos à Associação de Piedade e de Beneficiência, com a consequente anulação do despacho punitivo, por vício de forma; ou, caso assim não se entenda, a qualificação da não ocorrência de prejuízos como circunstância atenuante, nos termos do artigo 282º, alínea h) do ETAPM;
- anulação do despacho recorrido, por violação de lei, por errónea apreciação dos factos e consideração de factos inexistentes na fundamentação da aplicação de pena disciplinar de cassação de licença;
- anulação do despacho recorrido, por errada interpretação e aplicação do disposto no artigo 17º do Código do Notariado;
- anulação do despacho recorrido, por violação do princípio da legalidade, da proporcionalidade e da justiça consagrados nos artigos 3º, 5º e 7º, todos do Código do Procedimento Administrativo, na aplicação da pena disciplinar de cassação de licença de notário privado ao ora recorrente; ou
- caso assim não se entenda, e subsidiariamente, em apelo a todo o exposto, aplicação ao ora recorrente, da pena disciplinar de suspensão administrativa até dois anos.
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Regularmente citada, pela entidade recorrida foi apresentada a contestação constante de fls. 279 a 315 cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais, pugnando pelo não provimento do recurso.
Oportunamente, apresentou a recorrida as alegações facultativas, pugnando pelo não provimento do recurso.
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Findo o prazo para alegações, o Ministério Público deu o seguinte parecer:
Uma breve nota inicial relativa ao excerto do pedido do recorrente (al. g) – fls. 127) atinente à pretensão do mesmo em que, subsidiariamente, caso não anulado ou declarado nulo o acto, como pretendido, lhe seja aplicada pena disciplinar de suspensão administrativa até 2 anos.
Como se sabe, Nos termos do artº 20º do CPAC, “Excepto disposição em contrário, o recurso contencioso é de mera legalidade e tem por finalidade a anulação dos actos recorridos ou a declaração da sua nulidade ou inexistência jurídica”.
Desta forma, os tribunais administrativos ou funcionando como tal, exercem uma função de controlo e não de substituição da Administração, não constituindo aqueles uma Administração de grau mais elevado, não podendo o juiz ir além da declaração de invalidade ou anulação do acto impugnado, sob pena de grave afronta da separação de poderes, daqui decorrendo que o pedido a formular apenas poderá consistir na declaração de inexistência, nulidade ou anulação do acto recorrido: qualquer outro pedido, salvo o disposto no artº 24º do CPAC, ter-se-á como legalmente inadmissível.
É o que, manifestamente, sucede com o excerto do pedido em questão, pelo que haverá que rejeitar liminarmente o mesmo.
Posto isto, vem A impugnar o despacho da Secretária para a Administração e Justiça de 24/09/07 que, na sequência do procedimento disciplinar respectivo, lhe aplicou a medida de cassação da licença de notário privado, assacando-lhe, tanto quanto ousamos sintetizar do extensíssimo petitório inicial (não apresentou alegações), vícios de
- ofensa de conteúdo essencial de um direito fundamental por, na sequência do acórdão do TUI de 31/01/07 no proc. 52/2006 que anulou despacho da aqui recorrida de 22/08/05, se não ter instaurado um novo procedimento disciplinar “ab initio”, antes se tendo mantido como bons termos procedimentais do acto anulado ;
- erro nos pressupostos, por se terem dado como comprovados, sem sustentação válida, a ofensa do dever de zelo, nos termos dos n.ºs 1, 2, al. b) e 4 do artº 279º, ETAPM, designadamente por ofensa do artº 16º do Cód do Notariado;
- consideração de factos inexistentes como fundamento da aplicação da pena disciplinar, designadamente em sede de agravante, como sejam a verificação de prejuízos à Associação de Piedade e Beneficência “C”, ou “D” e ao serviço público e interesse geral;
- errónea interpretação dos factos relativamente ao suposto conhecimento do recorrente da revogação da procuração em causa, da inexistência de poderes resultante do teor da mesma e da violação dos deveres legais que sobre ele impendiam enquanto notário privado, com errada interpretação do disposto no artº 17º, Cód Notariado e
- ofensa dos princípios da legalidade, proporcionalidade e justiça.
Por partes:
Sendo certo que a anulação do acto da Secretária para a Administração e Justiça de 22/08/05, decorrente do acórdão do TUI de 31/01/07 no âmbito do proc. 52/2006 se ficou a dever ao facto de o acto punitivo ter aditado factos não constantes da acusação, imputando-se nova infracção (artº 16º, Cód. Notariado) correspondente a factos novos, sem que se tenha ouvido o recorrente, apresenta-se como normal e legal o aproveitamento dos termos do procedimento até ao momento em que o mesmo padece do vício, isto é, o aproveitamento da instrução, já que, por um lado, sobre a mesma se não projectava qualquer invalidade e, por outro, os tais “factos novos” indevidamente considerados não são autonomizáveis da globalidade da conduta imputada ao recorrente, sendo certo que só após a acusação se opera a defesa do arguido, não detendo, pois, fundamento a pretensão do mesmo na instauração, “ab initio” de novo procedimento, revelando-se, a esse propósito, inócuo esgrimir com regras do processo penal, não subsidiárias, para o efeito, do procedimento disciplinar.
Por outro lado, do acervo probatório carreado para os autos, resulta comprovado terem sido efectuadas diversas comunicações designadamente através de cartas registadas e “faxes” aos notários, apelando à não outorga de qualquer acto notarial relativo a prédios ou direitos de que a associação supra referenciada fosse titular, alertando-se para o facto de a procuração em questão ter sido revogada, tendo sido junta cópia original da mesma.
Face a tal “alerta”, o recorrente limitou-se a consignar nas escrituras que outorgou que: “Adverti os outorgantes da ineficácia deste acto perante terceiros enquanto não for registado, bem como da ineficácia do mesmo, nos termos do artº 16º, n.ºs 1 e 2 do Código do Notariado, caso a procuração tenha sido revogada ou cancelada”, quando o zelo devido imporia que aquele advertisse os outorgantes da existência daquele vício de representação sem poderes e da ineficácia do acto enquanto não existisse ratificação por parte daquela associação, fazendo constar das escrituras a efectivação dessa advertência.
Ou, como se acentua no douto acórdão do Venerando TUI de 13/01/10, in Proc. 24/2009, adiantado pela recorrida, “Tendo um notário conhecimento indirecto da falsidade de uma pública-forma de uma procuração, por desconformidade com o original, embora sem ter acesso a este, só deve celebrar escritura pública com base naquela pública-forma após confronto da pública forma com o original.”
Nestes parâmetros, vê-se que a imputada afronta do dever de zelo assentou em factualidade real e efectiva e que a mesma se mostra suficiente e adequada a preencher a violação desse dever profissional por parte do recorrente, não se divisando que com o decidido se tenha efectuado indevida integração, interpretação ou aplicação do preceituado no artº 16º, Cód. Notariado.
No que respeita aos prejuízos decorrentes da conduta ilícita imputada, sendo certo ter-se o TJB pronunciado em sentido negativo relativamente aos atinentes a associação em questão, a verdade é que, por uma banda, tal decisão ainda não terá transitado e, por outra, os prejuízos que foram ponderados como circunstância agravante se reportam aos provocados ao serviço público e interesse geral, o que se mostra consentâneo com o que ficou estabelecido em termos do acervo probatório produzido, com a perturbação, perante o cidadão médio, da confiança a depositar no notário privado, enquanto garante da autenticidade da vontade das partes, afectando sèriamente o seu prestígio e credibilização.
E, não se esgrima com errónea interpretação dos factos relativamente ao conhecimento do recorrente da revogação da procuração e com a consequente errada interpretação e aplicação do disposto no artº 17º, Cód. Notariado: ao que resulta do procedimento, o recorrente não desconhecia que a procuração estava revogada e que a mesma não conferia poderes de disposição, pelo que o visado poderia perfeitamente ter usado da faculdade que lhe assistia na recusa a que alude a norma, tal o impondo, aliás, a eficiência, empenhamento e diligência no exercício das suas funções, perante os factos do seu conhecimento, atinentes à irregularidade da procuração utilizada nas 5 escrituras públicas que não se coibiu de outorgar.
Finalmente, no que tange à aplicação da pena, respectiva graduação e escolha da medida concreta, não podendo o julgador, sob pena de usurpação e poderes, sobrepor o seu poder de apreciação ao da entidade administrativa/disciplinar, tal intervenção terá que remeter-se a eventual ocorrência de erro grosseiro, notória injustiça ou manifesta desproporção entre a falta cometida e a sanção infligida.
No caso, atentos os contornos da infracção em si própria e das negativas repercussões respectivas, designadamente para o interesse geral e confiança pública no prestígio e credibilização dos notários privados, não vislumbramos aquele erro, injustiça ou desproporção na pena concretamente aplicada, pelo que se não justifica qualquer intervenção a tal nível.
Razões por que, não se descortinando a ocorrência de qualquer dos vícios assacados, ou de qualquer outro de que cumpra conhecer, somos a pugnar pelo não provimento do presente recurso.”
*
O Tribunal é o competente e o processo o próprio.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas, e têm interesse processual.
Não existe outras nulidades, excepções nem questões prévias que obstem ao conhecimento do mérito da causa.
Cumpre decidir.
***
II) FUNDAMENTOS DE FACTO E DE DIREITO
Analisados todos os elementos probatórios constantes do processo, incluindo os decorrentes do exame do processo administrativo apensado, o Tribunal está convicto de que os factos invocados pela entidade recorrida e descritos no relatório final do processo disciplinar em questão para sustentar a sua decisão punitiva contra o recorrente não se encontram abalados na presente sede, antes pelo contrário, integralmente corroborados.
Daí que resulta provada a seguinte matéria de facto com pertinência para a decisão da causa:
Por despacho da Exmª Secretária para a Administração e Justiça de 21.01.2005, foi instaurado processo disciplinar ao recorrente. (fls. 388 do processo disciplinar)
Em 28.03.2005, foi deduzida acusação contra o recorrente. (fls. 461 a 472 do p.d.)
Notificado da mesma, ofereceu o recorrente a sua defesa escrita, requerendo também a inquirição de 8 testemunhas. (fls. 488 a 510 do p.d.)
Inquiridas as testemunhas, elaborou o instrutor relatório final propondo a aplicação da pena de cassação da licença de notário privado do recorrente. (fls. 537 a 549 do p.d.)
Após parecer do Exmº Director dos Serviços de Justiça, foi o recorrente, por despacho da Exmª Secretária para a Administração e Justiça, de 19.05.2005, punido com tal pena. (fls. 537 do p.d.)
Notificado da decisão, o recorrente reclamou, imputando ao acto punitivo o vício de nulidade. (fls. 552 a 578 do p.d.)
Em seguimento da reclamação, foi elaborada, em 16.06.2005, a informação nº 31/DSAJ/DAT/2005, onde se propôs a manutenção do decidido no despacho punitivo. (fls. 579 a 586 do p.d.)
A reclamação foi parcialmente atendida pela Exmª Secretária para a Administração e Justiça, tendo proferido, em 24.06.2005, despacho ordenando para viabilizar a audiência das testemunhas indicadas pelo recorrente e, posteriormente, elaborar novo relatório final. (fls. 579 do p.d.)
Por despacho de 01.07.2005, foi nomeado novo instrutor em substituição do anterior, tendo o mesmo elaborado, em 26.07.2005, novo relatório final. (fls. 638 a 651 do p.d.)
Novamente obtido o parecer favorável do Exmº Director dos Serviços de Justiça, foi o recorrente, por despacho da Exmª Secretária para a Administração e Justiça, de 22.08.2005, punido com tal pena. (fls. 638 do p.d.)
Não se conformado com a decisão, dela interpôs recurso contencioso para o Tribunal de Segunda Instância, requerendo a declaração de nulidade do referido acto, alegando, entre outros fundamentos, a inclusão de factos novos consubstanciadores de alteração substancial do teor da acusação deduzida no processo e a consequente atribuição aos mesmos de diversa qualificação jurídica.
O Tribunal de Segunda Instância, por Acórdão de 01.06.2006 (Processo 239/2005), concedeu provimento ao recurso, declarando nulo o referido acto punitivo.
Não se conformando com o Acórdão, interpôs a Exmª Secretária para a Administração de Justiça recurso para o Tribunal de Última Instância, tendo decidido por aquele Venerando Tribunal, por Acórdão de 31.01.2007 (Processo 52/2006), negar provimento ao recurso jurisdicional, com a consequente anulação do acto recorrido.
Em 23.03.2007, proferiu a Exmª Secretária para a Administração e Justiça ordenando reformular o processo disciplinar contra o recorrente. (fls. 659 a 661 do p.d.)
Em 02.05.2007, o recorrente submeteu a sua defesa escrita. (fls. 687 a 790 do p.d.)
Em 18.05.2007, pela Exmª Secretária para a Administração e Justiça foi designado novo instrutor e foram declarados nulos os actos praticados pelo instrutor anteriormente nomeado. (fls. 808 a 810 do p.d.)
Em 11.06.2007, no âmbito do processo disciplinar, foi o recorrente notificado da acusação contra ele deduzida. (fls. 899 a 916 do p.d.)
A 02.07.2007, o recorrente apresentou a sua defesa escrita. (fls. 925 a 1069 do p.d.)
Inquiridas as testemunhas, elaborou o instrutor, em 03.09.2007, o seguinte relatório final: (fls. 1 a 14 do processo administrativo)

“Assunto: Relatório final – Processo disciplinar n.º 01/DSAJ/DAT/2005
Informação/Proposta n.º: 39/DSAJ/DTJ/2007
Data: 03/09/2007

Exmo. Senhor
Director dos Serviços de Assuntos de Justiça

1. Por despacho de Sua Exa a Secretária para a Administração e Justiça de 21 de Janeiro de 2005, foi instaurado o processo disciplinar n.º 01/DSAJ/DAT/2005 contra o notário privado Sr. Dr. A.
2. Na sequência daquele processo, em 22 de Agosto de 2005, foi proferido o douto despacho de Sua Exa a Secretária para a Administração e Justiça no sentido de aplicar contra o arguido Sr. Dr. A a pena de cassação de licença de notário privado em virtude de se dar como provados os factos a ele imputados no relatório final.
3. Desse despacho sancionatório, interpôs o arguido Sr. Dr. A recurso contencioso de anulação para o Tribunal de Segunda Instância.
4. Por acórdão de 1 de Junho de 2006, deu este Tribunal provimento ao recurso, declarando nulo o acto administrativo, com o fundamento de falta de audiência do arguido.
5. Inconformada com a decisão judicial, Sua Exa a Secretária para a Administração e Justiça interpôs recurso jurisdicional para o Tribunal de Última Instância (TUI).
6. Após julgamento, o TUI negou provimento ao recurso apresentado, por considerar que o acto punitivo aditou factos não constantes da acusação e imputou um nova infracção (violação do disposto no artigo 16º do Código do Notariado) ao arguido correspondente a factos novos, pelo que nos termos do artigo 340º do Código de Processo Penal, aqui aplicável subsidiariamente, era imprescindível ter ouvido o arguido para se poder defender da nova infracção.
7. Assim, aquele douto acórdão, conclui que o processo disciplinar enfermava “de nulidade insuprível, a que se refere o artigo 298º, n.º 1 do Estatuto dos Trabalhadores da Administração Pública de Macau (ETAPM)”.
8. Mais acrescenta aquele douto acórdão que uma nulidade procedimental não integra nulidade do acto administrativo, concluindo pela anulabilidade do acto punitivo por considerar que não tinha sido ofendido o conteúdo essencial de qualquer direito fundamental.
9. Atento o exposto, nada obstava a que se observassem os termos procedimentais no mesmo processo disciplinar, a partir da fase de que padeceu o vício que, no entender do TUI, conduziu à anulação do acto punitivo.
10. O que se fez, tendo sido deduzida nova acusação contra o arguido Sr. Dr. A, em 5 de Junho de 2007, dela fazendo constar os factos novos sobre os quais o TUI entendeu que o arguido tinha de se pronunciar.
11. Sobre a matéria da acusação, pronunciou-se o arguido através da defesa recepcionada em 16 de Julho de 2007.
12. E, arrolou 6 (seis) testemunhas para se pronunciar sobre os factos deduzidas naquela defesa, que foram inquiridas na sua totalidade.
Produzida a prova oferecida pelo arguido Sr. Dr. A e finda novamente a fase de instrução, nos termos do n.º 1 do artigo 337º do ETAPM, ora se elabora.

RELATÓRIO FINAL
1. A Associação de Piedade e de Beneficência “C” ou “D” (abaixo designada por “Associação”) é uma associação de piedade e de beneficência, cujos estatutos foram aprovados pela Portaria n.º X, de 3 de Fevereiro de 1926 (B.O.M. n.º 7, de 13.02.1926) e alterados por escritura de 9 de Abril de 1998, a fls. 37 do Livro de notas n.º 15 do Cartório do Notário Privado Diamantino de R e publicados no B.O.M. n.º 16, II Série, de 22.04.98, encontrando-se inscrita nos Serviços de Identificação de Macau sob o n.º 161. (fls. 368v)
2. No dia 30 de Setembro de 1993, o Sr. G, na altura Vice-Presidente da Direcção da Associação, outorgou, em representação desta, no Cartório do Notário Privado J uma procuração. (fls. 368v e 369)
3. Pelo referido documento, a Associação constituiu seu bastante procurador o Sr. E aliás F, a quem conferiu os poderes que aí se enunciam. (fls. 369)
4. A fim de operar os efeitos da revogação da procuração que haviam acordado, a Associação deliberou designar como seus representantes para a outorga do respectivo acordo revogatório os Srs. G, H e I. (fls. 369)
5. Assim, com o propósito de procederem à revogação daquela procuração, os supra três indivíduos mencionados, e o Sr. E aliás F, munidos do original da procuração, deslocaram-se no dia 14 de Fevereiro de 1995 ao escritório do advogado J, em cujo Cartório Notarial, como já se afirmou, havia sido outorgada a procuração em causa. (fls. 369)
6. Aí, e perante o Ilustre Causídico, as partes expressaram verbalmente a sua vontade mútua de revogarem e cancelarem a procuração em questão. (fls. 369)
7. Em seguida, ainda, na presença do Exmo. Sr. Dr. J, formalizaram o acordo revogatório, apondo no corpo do original da procuração:
- As expressões “A presente procuração cancela-se a partir da presente data 14/02/95” e “Cancelled”;
- As respectivas assinaturas dos Srs. G, H, I e E aliás F. (fls. 369)
8. Além disso e para afastar quaisquer dúvidas acerca da vontade das partes em, respectivamente, por um lado, derrogar, e por outro, renunciar a todos os poderes contidos na procuração em apreço, as partes inutilizaram-na, traçando por completo o seu texto. (fls. 369v)
9. O acordo revogatório foi efectuado na presença do Exmo. Sr. Dr. J, que para conferir solenidade e testemunhar essa expressão de vontade das partes, apôs também a sua assinatura e o seu carimbo de advogado no original do corpo da procuração. (fls. 369v)
10. Atestando assim, que naquela data, 14 de Fevereiro de 1995, as três pessoas referidas e o Sr. E aliás F comparecerem perante ele e declararam expressamente e por escrito, no corpo do original da procuração em questão, que a mesma a partir de aí se encontrava revogada. (fls. 369v)
11. Em consequência do que, o documento original que incorporara a dita procuração foi restituído pelo Sr. E aliás F à Associação. (fls. 369v)
12. E foi precisamente desse original que foi extraída a cópia certificada que ora se junta nas fls. 18 a 24. (fls. 369v)
13. Assim, o documento da referida procuração foi entregue ao Sr. K aliás L que o depositou, juntamente com outros documentos da Associação num cofre de segurança bancário, por si aberto junto do Banco XX, S.A.R.L., sucursal da Avenida de Almeida Ribeiro. (fls. 369v)
14. Sucede que, em virtude do falecimento súbito e inesperado do titular do supra mencionado cofre bancário, os seus herdeiros, agora os únicos com acesso ao referido cofre, recusaram facultar à Associação o acesso à aludida procuração. (fls. 370)
15. A Associação viu-se forçada, atenta a urgência nessa consulta, a intentar junto do Tribunal Judicial de Base uma providência cautelar não especificada, na qual requereu a abertura forçada dos três cofres de segurança existentes na sucursal do Banco XX da Avenida de Almeida Ribeiro, alugados por K aliás L. (fls. 370)
16. Tal providência, que correu termos no 6º Juízo do Tribunal Judicial de Base da RAEM sob o n.º CPV-003-01-6, veio a ser decretada por douta decisão de fls. 25 a 54. (fls. 370)
17. Foi nesse âmbito que se procedeu à abertura do cofre bancário n.º 50012 e à inventariação dos bens e valores nele depositados e se constatou que aí se encontrava depositado o original da procuração em apreço. (fls. 370)
18. Posteriormente, o original da procuração foi depositado, em conjunto com outros documentos também inventariados, no cofre n.º C20-021269, aberto junto da mesma instituição bancária, à ordem dos já referidos Autos de Providência Cautelar n.º CPV-003-01-6. (fls. 370)
19. Ainda no âmbito desses autos, foi autorizada a solicitação da Associação, a extracção de cópia certificada por notário de todos os documentos que se encontravam depositados nos mencionados cofres, entre os quais a procuração em causa tendo inclusive sido determinado pelo Tribunal que ficasse a constar nos autos um duplicado das cópias extraídas. (fls. 370)
20. Assim, em cumprimento dos doutos despachos proferidos pelo Meritíssimo Juiz titular dos referidos autos, no dia 16 de Novembro de 2001, a Exma. Sra. Dra. M, Notária Privada, com Cartório em Macau, na Avenida XX, n.º XX, Edifício XX, XX, nessa qualidade, deslocou-se à sucursal do Banco XX, sita na Avenida de Almeida Ribeiro onde procedeu à extracção de cópia certificada da procuração em causa, tendo o respectivo original sido devolvido ao cofre bancário n.º XXXX, onde ainda se encontra. (fls. 370v)
21. O Sr. E aliás F está a servir-se de uma cópia da dita procuração certificada pelo Notário Privado N, em 7 de Junho de 1995, cópia essa que se encontra presentemente arquivada no Cartório Notarial das Ilhas. (fls. 370v)
22. Porém, a pública-forma certificada pelo Notário Privado N, em 7 de Junho de 1995, não tem o seu texto inutilizado e cancelado conforme o original – do qual certifica ter sido extraída, quando que na data da dita certificação (07.06.95) o original da procuração estava com dizeres de cancelado e o respectivo texto inutilizado. (fls. 370v)
23. Ou seja, quando em 7 de Junho de 1995 o Notário Nfez a certificação de uma pública-forma da procuração sub judice, e lhe apôs os dizeres “a presente fotocópia vai conforme o original”, a dita pública-forma não estava conforme o seu original. (fls. 370v)
24. No dia 13 de Janeiro de 2003, o Sr. E aliás F através do Cartório Notarial das Ilhas, outorgou um substabelecimento, com reserva, a favor dos Srs. O e P, para estes exercerem, em conjunto ou separadamente, todos os poderes que lhe foram conferidos pela Associação mediante a referida procuração. (fls. 370v e 371)
25. Tanto a pública-forma da procuração como o seu substabelecimento estão arquivados presentemente no Cartório Notarial das Ilhas.
26. Os Srs. E aliás F, O e P, utilizando a cópia certificada atrás mencionada e o alegado substabelecimento dos poderes conferidos naquela procuração, vêm arrogando-se a qualidade de representantes da Associação, invocando, designadamente terem poderes para dispor do seu património imobiliário. (fls. 371)
27. Toda esta factualidade foi sendo levada ao conhecimento de todos os notários de Macau pela Associação, incluindo o arguido, mediante cartas registadas e também enviadas por telecópias sucessivamente datadas de 28 de Fevereiro, 6 de Março e 21 de Maio de 2003, nas quais entre outros:
- Se alertava para o facto da procuração em apreço estar revogada, juntando-se inclusive cópia do original da mesma;
- Se advertia para a existência de um plano que visava lesar os direitos da Associação, o qual passava pelo uso da referida procuração pelo Sr. E aliás F, nos termos supra mencionados, plano esse que era já conhecimento do Ministério Público no âmbito de uma queixa crime apresentada pela Associação;
- Expressamente se afirmava que a Associação jamais havia deliberado proceder à venda ou à promessa de venda de quaisquer dos imóveis de que seja titular e, muito menos conferir, poderes ao Sr. E aliás F para em sua representação levar a cabo esses actos e outorgar nas respectivas escrituras públicas e/ou contratos-promessa como seu representante. (fls. 67 a 90)
28. Nas mencionadas missivas à Associação concluía solicitando a todos os notários para não outorgarem qualquer acto notarial relativo a prédios ou direitos de que esta fosse titular, em face das óbvias e graves irregularidades de que esses actos acabariam por enfermar e das consequências, inclusive no plano criminal, que os mesmos acarretariam. (fls. 67 a 90)
29. Sucede que, em Junho de 2003, o Sr. E aliás F, utilizando a dita pública-forma da procuração e invocando a qualidade de representante da Associação, contactou o arguido para lavrar diversas escrituras públicas de compra e venda cujo objecto seriam imóveis que são propriedade da Associação. (fls. 7 e 432)
30. Em 23 e 25 de Junho de 2003, o arguido lavrou, com base na referida pública-forma da procuração, cinco escrituras públicas de compra e venda, lavradas respectivamente a fls. 19 do Livro 2, fls. 21 do Livro 2, fls. 25 do Livro 2, fls. 29 do Livro 2 e fls. 32 do Livro 2 do Cartório do arguido, nas quais o Sr. E aliás F vendeu, em nome da Associação, ao Sr. O os seguintes imóveis da Associação:
- Prédio sem número sito na Rampa dos Cavaleiros, omisso na matriz predial urbana, descrito na Conservatória do Registo Predial de Macau sob o n.º XXXX, a fls. 13 do Livro B33;
- Prédio sem número sito na Avenida do Coronel Mesquita, omisso na matriz predial urbana, descrito na Conservatória do Registo Predial de Macau sob os n.º XXXX, a fls. 13v do Livro B33;
- Prédio sem número sito na Rua de D, omisso na matriz predial urbana, descrito na Conservatória do Registo Predial de Macau sob o n.º XXXX, a fls. 135 do Livro B168M;
- Prédio sem número sito na Avenida do Coronel Mesquita, omisso na matriz predial urbana, descrito na Conservatória do Registo Predial de Macau sob os n.º XXXX, a fls. 14 do Livro B33;
- Prédio com o n.º 78 da Rua dos Mercadores, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 10818, descrito na Conservatória do Registo Predial de Macau sob o n.º XXXX, a fls. 10 do Livro B33;
- Prédio com o n.º 58 da Rua das Estalagens, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 10696, descrito na Conservatória do Registo Predial de Macau sob o n.º XXXX, a fls. 10v do Livro B33;
- Prédio com o n.º 19 da Rua de Camilo Pessanha, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 010086, descrito na Conservatória do Registo Predial de Macau sob o n.º XXXX, a fls. 11 do Livro B33;
- Prédio com o n.º 7 da Travessa dos Alfaiates, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 010295, descrito na Conservatória do Registo Predial de Macau sob o n.º XXXX, a fls. 11v do Livro B33;
- Fracções autónomas designadas por “A1”, “A2”, “A3”, “A4”, “A5”, “B1”, “B2”, “B3”, “B4”, “B5”, “C1”, “C2”, “C3”, “C4”, “C5”, “D1”, “D2”, “D3”, “D4” e “D5”, “E1”, “E2”, “E3”, “E4” e “E5”, todos do prédio inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 70558, descrito na Conservatória do Registo Predial de Macau sob o n.º XXXX, a fls. 16 do Livro B50;
- Fracções autónomas designadas por “A1”, “A2”, “A3”, “A4”, “A5”, “B1”, “B2”, “B3”, “B4”, “B5”, todos do prédio inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 73085, descrito na Conservatória do Registo Predial de Macau sob o n.º XXXX, a fls. 174v do Livro B23. (fls. 91 a 209)
31. Contudo, os poderes que na procuração em apreço se concediam ao referido Sr. E aliás F, designadamente o de prometer vender e o de vender, referiam-se somente “à resolução junto dos tribunais e dos serviços público de quaisquer assuntos relacionados com os interesses e direitos reais que pertençam ou devam pertencer à ASSOCIAÇÃO DE BENEFICÊNCIA DOS BONZOS DO TEMPLO ou PAGODE “C” (D), ainda não registados em nome desta Associação ou que a esta pertençam, por intermédio da ASSOCIAÇÃO DE PIEDADE E DE BENEFICÊNCIA “C””.
32. Apesar de algumas semelhanças na respectiva denominação, a Associação não se confunde com a Associação de Beneficência dos Bonzos do Templo ou Pagode “C” (D), pois tratam-se de pessoas colectivas distintas. Embora com a mesma sede na Avenida Coronel Mesquita, as duas associações têm os nomes, fins e condições de admissão de sócios diferentes. Na Direcção dos Serviços de Identificação, os seus registos são igualmente diferentes. (fls. 376v)
33. Com efeito, mesmo que a referida procuração não tivesse sido revogada, a mesma não confere quaisquer poderes ao mencionado Sr. E alias F, para este dispor livremente dos imóveis propriedade da Associação.
34. Ou seja, os poderes conferidos pela Associação ao Sr. E aliás F, através da referida procuração, não se reportam a quaisquer direitos reais pertencentes à Associação mas antes, como resulta do próprio texto, pertencentes à Associação de Beneficência dos Bonzos do Templo ou Pagode “C” (D).
35. Ora, a referida pública-forma da procuração não pode servir de base à transmissão de imóveis da propriedade da Associação porquanto não só não confere poderes para transmitir bens da Associação, como também não confere poderes para operar a transmissão de bens.
36. Pelo que, apesar de ter sido invocado tal instrumento nas diversas escrituras de compra e venda efectuadas, as vendas foram efectuadas sem poderes de representação bastante. Sendo, portanto, nos termos do disposto no artigo 261º do Código Civil, ineficazes relativamente ao representado, enquanto não forem por si ratificados.
37. Deveria, portanto, o arguido, em cumprimento do disposto no artigo 16º do Código do Notariado, ter advertido os outorgantes da existência desse vício (a representação sem poderes) e de ineficácia do acto se e enquanto, não existisse ratificação por parte da Associação. Deveria, ainda, ter feito consignar nas escrituras públicas que efectuou essa advertência.
38. O que, todavia, não aconteceu.
39. Com efeito, o arguido limitou-se a consignar nas escrituras públicas que “Adverti os outorgantes da ineficácia deste acto perante terceiros enquanto não for registado, bem como, da ineficácia do mesmo, nos termos do artigo 16º, n.ºs 1 e 2 do Código do Notariado, caso a procuração tenha sido revogada ou cancelada.” (fls. 95, 113, 136, 151 e 176)
40. Ou seja, o arguido não advertiu os outorgantes das escrituras nem delas fez constar a advertência da existência do vício de representação sem poderes. Sendo certo que, caso tivesse existido tal advertência, poderia até o comprador ter-se recusado à outorga das escrituras por força da inexistência de poderes para a representação do vendedor e da consequência legal de tal falta de poderes.
41. Acresce que o arguido celebrou as escrituras públicas após ter sido alertado, através das cartas enviadas pela Associação, que a Associação houvera revogado a procuração em apreço e que nunca houvera deliberado proceder à venda de quaisquer imóveis de que seja titular e, muito menos, conferir poderes ao Sr. E aliás F para em sua representação levar a cabo tais vendas.
42. Por tais factos terem sido levados ao conhecimento do arguido, deveria o arguido ter usado de parcimónia no decurso da sua actividade de notário quando, ao arrepio do que lhe houvera sido alertado e pedido pela própria Associação, o referido Sr. E aliás F lhe solicita a celebração das escrituras de compra e venda de imóveis da Associação, agindo como seu representante – precisamente o enquadramento factual que a Associação houvera “previsto” no alerta que houvera efectuado a todos os notários.
43. O arguido poderia ter recusado, em cumprimento do dever de zelo a que se encontra adstrito, a prática dos actos notariais que lhe foram solicitados, nos termos do artigo 17º do Código do Notariado. Com efeito, o artigo 17º do Código do Notariado estipula que o “notário privado pode, sem necessidade de invocar razões que o justifiquem, recusar a prática de quaisquer actos da sua competência.”
44. Optou, todavia, por os praticar, apesar de saber que, ao fazê-lo, não estaria a fazer verter nos actos notariais em questão a vontade expressa da Associação que neles aparecia representada. Com as consequências que dai adviriam e advieram.
45. A conduta do arguido demonstra falta de diligência, exactidão e empenhamento no exercício das suas funções notariais, que têm por fim “dar forma legal e conferir fé pública aos actos jurídicos extrajudiciais”, conforme o artigo 1º do Código do Notariado.
46. O arguido violou, assim, o dever de advertência previsto no n.º 2 do artigo 16º do Código do Notariado, na parte em que não advertiu e não consignou a advertência de que os actos em causa poderiam ser ineficazes por força da existência de uma representação sem poderes para tal.
47. O arguido violou ainda o dever geral de zelo previsto na alínea b) do n.º 2 e n.º 4 do artigo 279º do Estatuto dos Trabalhadores da Administração Pública de Macau, aplicável por força do artigo 21º do Estatuto dos Notários Privados porquanto os alertas por escrito da Associação deveriam ter provocado no arguido um especial dever de cautela, diligência, exactidão e de parcimónia no sentido de procurar saber se os actos que lhe foram solicitados correspondiam à vontade da Associação, o que não aconteceu.
48. Ao não ter diligenciado no sentido de determinar se os actos notariais cuja prática lhe houvera sido solicitada eram, ou não, queridos pela Associação, quando eles tinham os contornos exactos que a Associação alertara que poderiam ter, poderia o arguido ter usado da faculdade de recusa dos notários privados, prevista no artigo 17º do Código do Notariado. Ao não o ter agido de uma forma ou de outra, violou o arguido o dever geral de zelo a que se encontra obrigado, por não ter agido com a eficiência, empenhamento e diligência que é exigida a quem dá forma legal e confere fé pública aos actos jurídicos extrajudiciais.
49. O arguido alega na sua defesa escrita que procurou esclarecer a vigência da procuração em causa através, nomeadamente:
- Da correspondência trocada entre a Direcção dos Serviços de Assuntos de Justiça e o advogado Dr. Q, sobre a situação jurídica da procuração em causa, a qual lhe foi facultada por este último;
- Do facto de a pública-forma da procuração e o consequente substabelecimento se encontrarem depositados no Cartório Notarial das Ilhas e de lhe ter sido exibida uma certidão dos mesmos.
50. Na verdade, a Directora substituta dos Serviços de Assuntos de Justiça escreveu, em 28 de Março de 2003, no seu ofício n.º 56/DSAJ/DIC/2003, dirigindo-se ao Dr. Q: «Em resposta ao seu pedido de informação datado de 24 do corrente acerca de uma procuração, em que é mandante a Associação de Piedade e de Beneficência “C”, mais conhecida por “D” e mandatário E aliás F, outorgada em 30 de Setembro de 1993, informo que está arquivada uma sua pública-forma e um substabelecimento no Cartório Notarial das Ilhas.» (fls. 436)
51. No entanto, este ofício emitido pela Direcção dos Serviços de Assuntos de Justiça, apenas se refere ao facto do arquivo de uma pública-forma da procuração e de um seu substabelecimento no Cartório Notarial das Ilhas e nada se diz quanto à validade e vigência da procuração.
52. De facto, deste ofício não se pode entender que a procuração em causa é válida e eficaz, podendo ser utilizada no comércio jurídico.
53. Ou seja, o facto de existir em arquivo no Cartório Notarial das Ilhas uma pública-forma da procuração e de um seu substabelecimento e o facto de existir uma certidão desses mesmos documentos, não comprova a validade da procuração em questão.
54. Por outro lado, não existia à data qualquer decisão judicial definitiva sobre a revogação da procuração que pudesse levar a uma resposta diferente da Direcção dos Serviços de Assuntos de Justiça na correspondência trocada com o Dr. Q.
55. Aliás, o arguido tinha conhecimento da situação jurídica da procuração, conforme os dois documentos cuja junção aos autos o próprio arguido requereu (fls. 450), um documento sendo uma cópia da carta do Dr. J ao Dr. Q, onde este informa “que na qualidade de advogado, presenciei a assinatura da declaração de renúncia aos poderes constantes da citada procuração, por parte de E aliás F, conforme documento por ele assinado em 14 de Fevereiro de 1995, cuja cópia anexo” (fls. 452) e o outro documento, sendo a cópia da declaração de renúncia assinada por E aliás F. (fls. 453)
56. Pelas infracções disciplinares que o arguido cometeu, são aplicáveis ao arguido penas disciplinares de suspensão administrativa até 2 anos ou de cassação de licença, nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 18º do Estatuto dos Notários Privados.
57. A conduta do arguido causou avultados prejuízos à Associação, por ter transferido, contra a vontade desta, grande parte dos imóveis da Associação para terceiros. Estas infracções do arguido tornaram-se públicas, provocando grave perturbação para a segurança jurídica de Macau e total descredibilização e desprestígio para a relevante profissão notarial.
58. Existe assim uma produção efectiva de resultados prejudiciais à Administração Pública da RAEM e ao interesse da Associação, tendo tido o arguido a possibilidade ou devendo ter a possibilidade de prever essa consequência como efeito necessário da sua conduta.
59. Pelo que, o arguido é prejudicado por circunstâncias agravantes da responsabilidade disciplinar previstas nas alienas b) e h) do n.º 1 do artigo 283º do Estatuto dos Trabalhadores da Administração Pública de Macau.
60. Pelo exposto, as infracções cometidas pelo arguido demonstram total e completa falta de eficiência e empenhamento no exercício da sua função notarial, ou seja, uma completa ausência de competência para o exercício da função notarial, inviabilizando-se assim a continuidade do arguido a exercer a sua actividade de notário privado.
61. Tanto mais que ao arguido era exigida uma “actividade sob forma digna, contribuindo assim para o prestígio da Administração Pública” e da actividade notarial, conforme lhe era exigido pelo n.º 1 do artigo 279º do ETAPM, aplicável por força do artigo 21º do Estatuto dos Notários Privados.
62. Principalmente porque o arguido houvera sido alertado por diversas vezes e por escrito pela Associação em questão que poderia existir a tentativa de celebração das escrituras tal como foram celebradas e, mesmo assim, não se recusou a celebrá-las, apesar de saber que a sua celebração não era querida pela Associação que nelas aparecia como representada, apesar de ter sido informado por essa mesma Associação que a procuração se encontrava revogada e apesar de a referida procuração não conferir os poderes necessários para os actos em questão.
63. Considerando que a conduta do arguido revela incapacidade de adaptação às exigências da função notarial e incompetência profissional para o exercício da actividade notarial, bem como a existência das circunstâncias agravantes previstas nas alíneas b) e h) do n.º 1 do artigo 283º do Estatuto dos trabalhadores da Administração Pública de Macau, sou de opinião que seja aplicada a pena de cassação de licença do arguido.
Conclusões
1. Pelo exposto, o arguido cometeu as infracções disciplinares resultantes da violação do disposto no artigo 16º do Código do Notariado, bem como do n.º 1, da alínea b) n.º 2 do n.º 4 do artigo 279º do ETAPM, aplicável por força do disposto no artigo 21º do Estatuto dos Notários Privados.
2. Em relação às infracções disciplinares que o arguido cometeu, propõe-se, de acordo com a alínea a) do n.º 1 do artigo 18 do Estatuto dos Notários Privados, a aplicação de pena de cassação de licença ao arguido.
3. Nos termos do artigo 19º do Estatuto dos Notários Privados e da delegação de competências constante do n.º 1 da Ordem Executiva n.º 6/2005, a aplicação da pena de cassação de licença é da competência de Sua Exa a Secretária para a Administração e Justiça.
4. Por fim, nos termos do n.º 5 do artigo 20º do Estatuto dos Notários Privados, após recebido o presente relatório final, deverá V. Exa emitir parecer, no prazo de 5 dias, e remeter o processo a Sua Exa a Secretária para a Administração e Justiça, para que a mesma tome decisão, no prazo de 20 dias, de acordo com o n.º 3 do artigo 338º do Estatuto dos Trabalhadores da Administração Pública de Macau.

À consideração superior de V. Exª.

Macau, aos 3 de Setembro de 2007.
O instrutor
XXXX”

Após parecer do Exmº Director dos Serviços de Justiça, foi pela Exmª Secretária para a Administração e Justiça, em 24.09.2007, proferido o seguinte despacho: (fls. 1 do processo administrativo)
“1. Analisado o processo disciplinar, considero provados os factos imputados ao arguido, designadamente os constantes dos n.ºs 27 a 32 do Relatório Final, e concordo com o enquadramento jurídico-disciplinar do comportamento do arguido que é feito neste mesmo relatório.
2. Estes factos constituem infracções disciplinares graves que provocaram grave perturbação para a segurança jurídica da RAEM e desprestígio para a relevante profissão notarial e demonstram uma completa ausência de competência para o exercício das funções, o que inviabiliza a manutenção da sua actividade de notário privado.
3. Assim, no uso das competências delegadas pelas Ordens Executivas n.ºs 11/2000 e 6/2005, e ao abrigo do disposto no artigo 19º do Decreto-Lei n.º 66/99/M (Estatuto dos Notários Privados), aplico ao arguido, Dr. A, notário privado, a pena disciplinar de cassação de licença, prevista na alínea a) do n.º 1 do artigo 18º do mesmo decreto-lei,
4. Junte-se cópia do Relatório Final que aqui dou por integrado e notifique-se o arguido nos termos legais.
A Secretária para a Administração e Justiça
XXXX
24/09/2007”
Este é o acto recorrido.
*
Vem o recorrente impugnar o despacho de 24.09.2007 da Exmª Secretária para a Administração e Justiça que lhe aplicou a pena disciplinar de cassação de licença de notário privado, assacando-lhe os seguintes vícios:
- Ofensa do conteúdo essencial de direito fundamental;
- Erro nos pressupostos de facto, designadamente, do conhecimento do recorrente da procuração revogada, da inexistência de poderes de disposição por parte do representante, da violação dos deveres legais que impendem sobre o recorrente enquanto notário privado, da produção de avultados prejuízos à Associação de Piedade e de Beneficência C ou D;
- Erro nos pressupostos de direito, por errada interpretação e aplicação dos artigos 16º e 17º do Código do Notariado e alínea b) do nº 2 e nº 4 do artigo 279º do ETAPM;
- Ofensa dos princípios da legalidade, proporcionalidade e justiça.
Vejamos.
Ofensa do conteúdo essencial de direito fundamental
Entende o recorrente que o acto em crise constitui ofensa do conteúdo essencial de um direito fundamental, nos termos do artigo 122º, nº 2, alínea d) do Código do Procedimento Administrativo, alegando que, na sequência do Acórdão do TUI, de 31.01.2007, proferido no âmbito do Processo 52/2006, que anulou o despacho de 22.08.2005, não foi instaurado novo procedimento disciplinar para que fossem levadas a cabo novas diligências de investigação, antes pelo contrário foi dada continuidade à marcha do processo disciplinar, mantendo-se válidos todos os actos procedimentais realizados antes da fase viciada.
Salvo o devido respeito, entendemos não assistir razão ao recorrente no tocante à verificação daquele vício.
Ora, por decisão do Venerando TUI, de 31.01.2007, foi anulada a decisão da Exmª Secretária para a Administração e Justiça, porquanto o respectivo acto punitivo aditou factos constantes da acusação, imputando-se nova infracção ao recorrente.
Na sequência dessa anulação, pela Exmª Secretária para a Administração e Justiça foi determinada a reformulação do respectivo processo disciplinar, tendo sido admitido o aproveitamento dos actos procedimentais praticados antes do acto viciado.
Salvo melhor entendimento, a anulação do acto punitivo não acarreta necessariamente a inutilização de todos os actos procedimentais, antes podem ser aproveitados os actos da fase investigatória praticados até ao momento em que se verifica o vício, uma vez que tal vício só afecta os actos subsequentes.
Tanto que, não obstante não ter sido instaurado novo procedimento disciplinar, nenhum direito fundamental de defesa do recorrente ficou afectado, dado que lhe foi concedido todo o direito de defesa após deduzida a nova acusação, nomeadamente podendo o recorrente apresentar a sua defesa escrita e requerer diligências de prova que entender.
Sobre a questão em apreço, louva-se o decidido no Acórdão deste TSI, proferido no âmbito do Processo 41/2003, em que se refere sumariamente o seguinte:
“O conteúdo essencial de um direito fundamental será violado sempre que se descaracterize a ordem de valores que a Lei Fundamental positiva nesse domínio, não sendo atingido o direito de defesa, sempre que se respeitem as suas componentes estruturais, tais como o direito de audiência do arguido, delimitação da matéria acusatória, garantia do princípio do contraditório, possibilidade de intervenção processual traduzida no oferecimento de provas e produção dessas provas.”
Assim, improcede a nulidade invocada.
*
Erro nos pressupostos de facto
Alega o recorrente que o acto fere de vício de erro nos pressupostos de facto, dado que no seu entender, os fundamentos de facto utilizados pela recorrida para justificar a aplicação da pena disciplinar não corresponde à verdade.
Pode acontecer que a Administração tenha deixado de ponderar os factores invocados pelo recorrente, ou que os motivos utilizados pela entidade recorrida para justificar a sua decisão não corresponda à realidade, daí se exige que os factos que sirvam de motivo de um acto administrativo devem ser verdadeiros, de modo que o órgão decisor possa actuar de forma livre e esclarecida, sem que a sua vontade seja viciada.
Olhamos para o presente caso concreto.
Invoca o recorrente que a decisão punitiva fundava-se na manifesta e errónea apreciação dos factos, designadamente, do conhecimento do recorrente da procuração revogada, da inexistência de poderes de disposição por parte do representante, da violação dos deveres legais que impendem sobre o recorrente enquanto notário privado, da produção de avultados prejuízos à Associação de Piedade e de Beneficência C ou D.
Diz o recorrente que a procuração em causa não estava revogada.
De acordo com os elementos probatórios carreados aos autos, e ao contrário do que defende o recorrente, mostra-se bem clara a verificação dos factos contra si imputados, designadamente, ficou comprovado que foram efectuadas comunicações aos notários de Macau, incluindo o aqui recorrente, através de cartas registadas e telecópias, pedindo aos mesmos para não se outorgar qualquer acto notarial relativo a prédios ou direitos de que seja titular a Associação de Piedade e de Beneficência C ou D, alertando-se para o facto de a procuração em questão ter sido revogada, tendo sido junta cópia original da mesma, bem como advertindo-se para a existência de um plano que visava lesar os direitos da Associação de Piedade de Beneficência C, o qual passava pelo uso da referida procuração pelo Sr. E aliás F.
Defende o recorrente que procurou esclarecer a vigência da procuração em causa, tendo obtido junto do advogado Dr. Q um ofício emitido pela Direcção dos Serviços de Assuntos de Justiça, nele se refere que estava arquivada uma pública-forma de uma procuração em que é mandante a Associação de Piedade e de Beneficência C e mandatário E aliás F, e um substabelecimento no Cartório Notarial da Ilhas, daí que entendeu ser a procuração válida e eficaz, podendo ser utilizada no comércio jurídico.
Salvo o devido respeito por opinião contrária, o tal ofício emitido pela Direcção dos Serviços de Assuntos de Justiça apenas se refere ao facto de estarem arquivados uma pública-forma da procuração e um seu substabelecimento no Cartório Notarial das Ilhas e nada se diz sobre a validade e vigência da procuração.
Por outro lado, verifica-se que o recorrente teve acesso a dois documentos, um é a cópia da carta do Dr. J ao Dr. Q a informar que “na qualidade de advogado, presenciei a assinatura da declaração de renúncia aos poderes constantes da citada procuração, por parte de E aliás F, conforme documento por ele assinado em 14 de Fevereiro de 1995, cuja cópia anexo” (fls. 452) e o outro é a cópia da declaração de renúncia assinada por E aliás F (fls. 453)
Assim, considerando o teor dos referidos documentos, bem como o facto de o recorrente ter sido avisado, mediante carta registada e telecópia, da revogação da procuração e da existência de plano de usurpação de património da Associação mandante, nunca se pode afirmar que o recorrente desconhecia da revogação da procuração em causa.
*
Quanto à questão da inexistência de poderes de disposição, igualmente sem razão ao recorrente.
Mesmo que se entenda não ter sido revogada a procuração, mas analisando o teor da procuração em causa, é de verificar que foram conferidos ao Sr. E aliás F, entre outros, os poderes para tratar e resolver junto dos tribunais e dos serviços públicos quaisquer assuntos relacionados com os interesses e direitos reais que pertençam ou devam pertencer à Associação de Beneficência dos Bonzos do Templo ou Pagode C (D), ainda não registados em nome desta Associação ou que a esta pertençam, por intermédio da Associação de Piedade e de Beneficência C.
Muito embora as duas associações tenham nomes semelhantes, trata-se de pessoas colectivas distintas. Daí retira-se que os poderes conferidos através daquela procuração não se reportam a quaisquer direitos reais pertencentes à Associação de Piedade e de Beneficência C mas sim somente à Associação de Beneficência dos Bonzos do Templo ou Pagode C (D).
No fundo, a referida pública-forma da procuração não pode servir de base à transmissão de imóveis pertencentes à Associação de Piedade e de Beneficência C, porquanto não confere poderes para o representante transmitir bens da Associação.
*
Invoca também o recorrente que se deram como provados na decisão recorrida factos, sem sustentação válida, relativos à violação dos deveres legais que impendem sobre o recorrente enquanto notário privado.
Conforme o acima exposto, face aos elementos probatórios constantes dos autos, ficou comprovado que foi efectuada comunicação ao recorrente enquanto notário privado de Macau, através de carta registada e telecópia, pedindo-lhe para não se outorgar qualquer acto notarial relativo a prédios ou direitos de que seja titular a Associação mandante, alertando-se para o facto de a procuração em questão ter sido revogada, tendo sido junta cópia original da mesma, bem como advertindo-se para a existência de um plano que visava lesar os direitos da Associação de Piedade de Beneficência C, o qual passava pelo uso da referida procuração pelo Sr. E aliás F.
Não obstante, o recorrente pouco ligou àquela comunicação, tendo lavrado, a final, cinco escrituras públicas, tendo limitado a consignar nas mesmas que “Adverti os outorgantes da ineficácia deste acto perante terceiros enquanto não for registado, bem como, da ineficácia deste acto perante terceiros enquanto não for registado, bem como, da ineficácia do mesmo, nos termos do artigo 16º, nº 1 e 2 do Código do Notariado, caso a procuração tenha sido revogada ou cancelada.”
Nestes termos, não se mostra que os pressupostos que serviram para a decisão se encontram viciados.
*
Defende ainda o recorrente que mesmo que as escrituras por si lavradas tenham sido outorgadas por quem não tinha poderes para representar a Associação mandante (Associação de Piedade e de Beneficência C), a consequência jurídica consistiria pura e simplesmente na insusceptibilidade de produção do efeito jurídico na esfera jurídica do representado, sendo assim, nenhum prejuízo patrimonial se produziu na esfera jurídica da Associação de Piedade e de Beneficência C ou D.
Em nossa opinião, não obstante o TJB ter pronunciado no sentido de inexistência de prejuízos causados à própria Associação, a verdade é que na altura tal decisão judicial ainda não transitou em julgado, para além de que os prejuízos ponderados pela recorrida como circunstância agravante reportavam-se aos provocados ao serviço público ou ao interesse geral, no sentido de que ficou perturbada com a conduta do recorrente a confiança e segurança depositada pelos cidadãos utentes nos serviços notariais, afectando, consequentemente, de forma grave o prestígio e a credibilidade da Administração.
*
No que respeitam aos factos ocorridos antes do surgimento do caso e alegados pelo recorrente, no sentido de que os imóveis vendidos através das referidas escrituras públicas eram bens da Associação de Beneficência dos Bonzos do Templo, apesar de nunca terem sido registados em seu favor, e que foi na intenção de transferir a propriedade desses bens para esta Associação de Bonzos é que foi emitida a procuração em causa, conferindo poderes ao seu representante, mesmo admitindo serem aquelas circunstâncias de facto verdadeiras, também não se relevam nesta sede contenciosa, uma vez que tal circunstancialismo apenas nos permitem perceber como é que a procuração foi emitida, no entanto, o que se verifica no vertente caso é que o recorrente, inteirado da revogação dessa procuração, acabou por celebrar as escrituras públicas de compra e venda com base num documento que não continha qualquer menção revogatória.
Quanto à questão de saber se o Dr. J teria violado os deveres estatutários, por tal não ser objecto do presente contencioso, não nos compete apreciar nesta sede.
Tudo exposto, não se julga ter havido qualquer erro nos pressupostos de facto, daí que, improcede o vício apontado.
*
Erro nos pressupostos de direito, por errada interpretação e aplicação dos artigos 16º e 17º do Código do Notariado e alínea b) do nº 2 e nº 4 do artigo 279º do ETAPM
De acordo com a factualidade acima exposta, salvo o devido respeito por melhor entendimento, entendemos que, tendo o recorrente tomado conhecimento da revogação da procuração e da inexistência de poderes de disposição por parte do representante, bem sabia ele, ou pelo menos devia saber, que a referida procuração não podia servir de base à transmissão de imóveis da propriedade da Associação mandante, pelo que o recorrente devia ter recusado o pedido de outorga de escrituras que lhe foi solicitado pelo senhor E aliás F.
Aliás, mesmo que a tal procuração não tivesse sido revogada, mas constatando-se que o representante não tinha poderes de representação bastante, o recorrente devia ter advertido os outorgantes desse vício, nos termos do artigo 16º, nº 2 do Código do Notariado, uma vez que caso as partes outorgantes fossem advertidas da existência do vício, a parte compradora poderia ter recusado a outorga das respectivas escrituras públicas.
Contudo, o recorrente limitou-se a consignar nas mesmas que “Adverti os outorgantes da ineficácia deste acto perante terceiros enquanto não for registado, bem como, da ineficácia deste acto perante terceiros enquanto não for registado, bem como, da ineficácia do mesmo, nos termos do artigo 16º, nº 1 e 2 do Código do Notariado, caso a procuração tenha sido revogada ou cancelada.”
É de notar-se que a advertência consagrada pelo recorrente nas referidas cinco escrituras públicas não consistia naquilo que se verificou na realidade, ou seja, tal advertência era manifestamente insuficiente, devendo tal ser mais longe no sentido de ficar consagrada a advertência aos outorgantes da existência daquele vício de representação sem poderes e da ineficácia do acto enquanto não existisse ratificação por parte da Associação de Piedade de Beneficência C ou D.
Na óptica do recorrente, entende que como não havia decisão judicial definitiva que declarasse nula a pública-forma da procuração, não podia o recorrente, como notário, recusar de outorgar as cinco escrituras públicas, com fundamento nas meras missivas que lhe foram enviadas.
Mas não nos parece ser o melhor entendimento.
Como se explicitou no Acórdão do Venerando TUI, proferido no âmbito do Processo 24/2009, citado pela recorrida nas alegações facultativas, “Tendo um notário conhecimento indirecto da falsidade de uma pública-forma de uma procuração, por desconformidade com o original, embora sem ter acesso a este, só deve celebrar escritura pública com base naquela pública-forma após confronto da pública-forma com o original.”
No vertente caso, não obstante que foram efectuadas comunicações alertando aos notários de Macau, incluindo o aqui recorrente do facto da revogação da procuração e da existência de um plano que visava lesar os direitos do mandante através dessa mesma procuração, o recorrente desatendeu totalmente a tal alerta.
Por outro lado, não deu cumprimento ao disposto no artigo 16º, nº 2 do Código do Notariado, no sentido de fazer advertir os outorgantes da existência do vício e da situação de ineficácia do acto, e consignar no próprio instrumento a advertência que tenha feito.
Tendo a função notarial essencialmente por fim dar forma legal e conferir fé pública aos actos jurídicos extrajudiciais, tal como se estatui no artigo 1º, nº 1 do Código do Notariado, a conduta do recorrente violou gravemente o dever de zelo aludido nos termos do artigo 279º, nº 2, alínea b) e nº 4 do ETAPM, aplicável por força do artigo 21º do Estatuto dos Notários Privados, e o dever de exercício (advertência) previsto no artigo 16º, nº 2 do Código do Notariado, traduzindo-se na evidente falta de empenhamento, por parte do recorrente, no exercício das suas funções como notário privado, bem como na gravidade das consequências do seu acto, consistindo, essencialmente, na afectação grave da imagem da Administração, no referente ao prestígio da profissão notarial e à fé pública conferida aos actos notariais.
Embora seja verdade que a norma do artigo 17º do Código do Notariado confere ao recorrente enquanto notário privado a faculdade de recusar a prática de actos notariais, dele não emana qualquer dever ou obrigação do notário, mas o que está em causa no vertente caso não é a questão de saber se o recorrente pode ou não recusar a prática de actos notariais, mas sim uma situação em que o notário não deveria ter aceitado a prática de actos notariais sob pena de violar os deveres estatutários sobre ele impendidos.
Uma vez comprovada a violação pelo recorrente dos seus deveres profissionais, improcede, assim, o vício invocado.
*
Ofensa dos princípios da legalidade, proporcionalidade e justiça
Finalmente, alega o recorrente que a pena que lhe foi aplicada é manifestamente desproporcional, ilegal e injusta, assacando ao acto vício de violação de lei.
Estatui-se nos termos da alínea a) do nº 1 do artigo 18º do Estatuto dos Notários Privados que “aos notários privados são aplicáveis as penas disciplinares de suspensão administrativa até 2 anos ou de cassação de licença quando, entre outros, sejam verificadas irregularidades graves nos actos praticados”.
No respeitante à questão da aplicação da pena, tem-se entendido na jurisprudência que não pode o julgador sobrepor o seu poder de apreciação ao da entidade administrativa, sob pena de usurpação de poderes, salvo, como bem anota o Digno Magistrado do Ministério Público no seu parecer, havendo “erro grosseiro, notária injustiça ou manifesta desproporção entre a falta cometida e a sanção infligida”.
Questão semelhante já por várias ocasiões apreciada pelo Venerando TUI e por este TSI, citando-se, a título exemplificativo, o Acórdão proferido por este TSI, no Processo 319/2004, nos seguintes termos:
“Como uniformemente se vem entendendo e o Digno Magistrado do MP bem anota no seu parecer, se no que respeita à apreciação da integração e subsunção dos factos na cláusula geral punitiva a actividade da Administração está sujeita à sindicabilidade do Tribunal, o mesmo não se pode dizer quanto à aplicação das penas, sua graduação e escolha da medida concreta, existindo, neste âmbito, discricionaridade por parte da Administração, a qual passa pela opção entre emitir ou não o acto sancionatório e ainda pela escolha entre vários tipos e medidas possíveis.
Neste último campo, não há controlo jurisdicional sobre a justeza da pena aplicada dentro do escalão respectivo, em cuja fixação o juiz não pode sobrepor o seu poder de apreciação ao da autoridade investida do poder disciplinar.
A intervenção do juiz fica apenas reservada aos casos de erro grosseiro, ou seja, àquelas contingências em que se verifica uma notória injustiça ou uma desproporção manifesta entre a sanção infligida e a falta cometida, dado não poderem ser legitimados, em nenhuma circunstância, comportamentos da Administração que se afastem dos princípios da justiça e da proporcionalidade que necessariamente devem presidir à sua actuação.
Contudo, com fundamento no princípio da separação de poderes, o controlo jurisdicional só se efectivará se a injustiça for notória ou a desproporção manifesta.”
No caso vertente, atentos os contornos das infracções cometidas pelo recorrente e as negativas repercussões geradas para a confiança pública no prestígio e credibilização que devem merecer os notários privados, não se verifica qualquer desproporção ou manifesta injustiça quanto à pena de cassação de licença de notário privado, pelo que não tem o tribunal de intervir nessa actividade da Administração, verificada não está de forma alguma desajustada, injusta ou desadequada a pena aplicada.
No concernente ao pedido de aplicação ao recorrente da pena disciplinar de suspensão administrativa até 2 anos, em substituição da pena de cassação de licença, o mesmo não deixa de ser manifestamente improcedente, tendo em conta que o recurso contencioso é de mera legalidade e tem por finalidade a anulação dos actos recorridos ou a declaração da sua nulidade ou inexistência jurídica (artigo 20º do CPAC), não pode o tribunal sobrepor a autoridade administrativa e ir além da anulação ou da declaração de nulidade ou inexistência do acto administrativo.
Decidiu-se no Acórdão do Venerando TUI, de 10 de Maio de 2006, no Processo 7/2006, que “O tribunal não aplica penas disciplinares, só intervém depois de a autoridade administrativa ter aplicado uma sanção ao funcionário, para concluir se esta autoridade violou ou não a lei, anulando o acto punitivo se considerar ter havido alguma violação da lei ou dos princípios jurídicos.”
Tudo exposto, improcede, na totalidade, o presente recurso.
***
III) DECISÃO
Face ao exposto, acordam em negar provimento ao recurso contencioso, confirmando a decisão recorrida.
Registe e notifique.
Custas pelo recorrente, com 10 U.C. de taxa de justiça.
***
Macau, 13 de Março de 2014
Tong Hio Fong
Lai Kin Hong
João A. G. Gil de Oliveira

Estive presente
Mai Man Ieng



Processo 654/2007 Página 51