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Processo nº 518/2010
(Autos de recurso contencioso)

Data: 20/Março/2014

Assunto: Enfermeiros
Legitimidade activa
Princípio da igualdade
Falta de fundamentação

SUMÁRIO
     - O facto de ter sido autorizado o reposicionamento pretendido, não significa que o interessado tivesse com a sua solicitação renunciado aos eventuais direitos que decorressem da nova estruturação de carreiras e remunerações para os enfermeiros, tendo em conta que o direito que emana do novo diploma legal, se fosse caso disso, haveria de ser aplicado em concreto em toda a sua extensão e não em apenas parte dele, daí que continua ele a ter legitimidade activa para o recurso do acto que decidiu menos do que a lei determina.
     - O legislador ordinário pode introduzir discriminações positivas ou negativas, desde que nas situações de facto encontre razão séria e não arbitrária para diferenciar o tratamento. Desde que haja fundamento material bastante, sério, razoável e legítimo que não perigue com situações em que as condições objectivas imponham igualdade de regulação, a discriminação na criação da lei não é necessariamente violadora do princípio da igualdade.
     - O artigo 115º do Código do Procedimento Administrativo permite que se faça a chamada fundamentação por remissão, que visa encaminhar os fundamentos do acto directamente para os fundamentos expostos num texto prévio contido numa informação, num parecer ou numa proposta.
       
       
O Relator,

________________
Tong Hio Fong

Processo nº 518/2010
(Autos de recurso contencioso)

Data: 20/Março/2014

Recorrente:
- A

Entidade recorrida:
- Chefe do Executivo da RAEM

Acordam os Juízes do Tribunal de Segunda Instância da RAEM:

I) RELATÓRIO
A, enfermeiro dos Serviço de Saúde, melhor identificado nos autos, notificado do despacho do Exmº Chefe do Executivo da RAEM, de 27 de Abril de 2010, que indeferiu o pedido de actualização salarial, vem interpor o presente recurso contencioso de anulação, em cujas alegações facultativas formulou as seguintes conclusões:
1. Tendo legalmente o dever de decidir, de modo a que seja atingida a verdade material ou real, a Administração pode lançar mão de todos os meios em direito permitidos necessários à instrução do procedimento (cfr. artigos 85º e ss. Do CPA de Macau), uma vez que goza do princípio do inquisitório ou da oficialidade a que se reporta o artigo 59º do referido Código, ainda que o procedimento tenha sido da iniciativa dos particulares.
2. Este princípio do inquisitório – que não significa a desvalorização do dever de participação e colaboração dos interessados -, determina a escolha das atingir o mesmo objectivo de diversas formas e permite lançar mão do chamado princípio da disponibilidade relativa do procedimento administrativo, nos termos do qual a Administração pode e deve tomar uma decisão mais ampla ou diferente da solicitada pelo requerente, levando nomeadamente em conta o princípio da economia procedimental.
3. Não é de exigir aos particulares que se dirijam à Administração um domínio perfeito da linguagem jurídica ou técnica que se mostre apropriada ao caso tratado, antes incumbindo à Administração o dever – que perpassa pelos artigos 76º, n.º 1, alínea c), e 78º, n.º 2, ambos do dito Código – de, partindo das expressões comuns usadas pelo interessado, ascender ao sentido especial que nelas esteja indubitavelmente implicado.
4. Têm legitimidade para pedir a anulação do acto administrativo, não só aqueles que sejam titulares de um direito (subjectivo), mas também quem, não sendo titular de uma posição jurídica substantiva, tenha, no entanto, um interesse legalmente protegido e que tenha sido lesado pelo acto recorrido, bem como aquele que alegue um interesse directo, pessoal e legítimo.
5. «Interessado para efeitos de legitimidade activa, é todo aquele que espera obter da anulação do acto impugnado um certo benefício e se encontra em condições de o poder receber, devendo o seu interesse ser directo, ou seja, de repercussão imediata nele interessado; pessoal quando a repercussão da anulação se projecta na sua própria esfera jurídica; e ainda legítima quando é protegido pela ordem jurídica como interesse dele interessado recorrente.»
6. Numa óptica estritamente de economia processual, não se vislumbra que utilidade teria considerar-se o recorrente parte ilegítima nesta lide.
7. Por outro lado, saber se o interesse do particular vai, ou não, contra a Lei, não é questão de ilegitimidade. É questão de mérito.
8. O recorrente tem um interesse directo, pessoal e legítimo no provimento deste recurso, pois só assim poderá o director dos SSM propor-lhe um averbamento ao seu contrato individual de trabalho que preveja uma valorização indiciária retroactiva (a 1 de Julho de 2007).
9. As valorizações indiciárias dos enfermeiros, decorrentes das transições de quadro e de quaisquer alterações contratuais, nos termos do regime da carreira de enfermagem aprovado pela Lei n.º 18/2009, de 17 de Agosto, retroagem a 1 de Julho de 2007, independentemente da natureza do vínculo contratual do trabalhador.
10. Visa a paridade-igualdade salarial entre o trabalhador com contrato individual de trabalho e os demais trabalhadores da Administração Pública, a cláusula incluída no contrato de trabalho individual celebrado entre aquele e a Administração Pública, nos termos da qual se prescreve que «a remuneração mensal será actualizada na mesma proporção que o forem os vencimentos da Administração Pública de Macau».
11. A igualdade perante a lei prevista no artigo 25º da Lei Básica da Região Administrativa Especial de Macau implica que não possa haver qualquer discriminação salarial em razão do vínculo laboral dos trabalhadores, apenas podendo ser atendidas situações, nesta matéria, em função da sua experiência, antiguidade ou mérito.
12. Não obstante a inexistência de norma no ETAPM que consagre expressamente princípio da paridade-igualdade salarial entre os funcionários públicos, tal não significa que esse princípio não esteja consagrado.
13. Não sendo permitido que funcionários com a mesma categoria, escalão e índice remuneratório, aufiram diferentes vencimentos, está indirectamente consignado naquele Estatuto o princípio da paridade-igualdade salarial entre os diversos trabalhadores da Administração Pública, independentemente da natureza do seu vínculo.
14. A atribuição de efeitos retroactivos diferenciados aos vencimentos dos funcionários públicos, em função da natureza do seu vínculo, é legalmente inadmissível, por tal implicar uma derrogação do princípio de que ao desempenho de uma mesma determinada função ou cargo corresponde a remuneração prevista na tabela indiciária.
15. O Estado-Legislador não pode impor às entidades patronais mais deveres do que impõe a si próprio enquanto Estado-Administração (empregador), ou exigir-lhes um comportamento mais oneroso.
16. O princípio “trabalho igual-salário igual” previsto no n.º 2 do artigo 57º da Lei das Relações de Trabalho aplica-se mesmo nas relações jurídicas de emprego público.
17. Viola os artigos 2º e 3º da Convenção n.º 111 da Organização Internacional do Trabalho sobre a Discriminação em Matéria de Emprego e Profissão, o despacho que faz retroagir a valorização indiciária de um trabalhador com uma determinada categoria e escalão a uma data diferente daquela aplicável a outro trabalhador com a mesma categoria e escalão.
18. Viola o artigo 7º do Pacto Internacional sobre os Direitos Económicos, Sociais e Culturais, o despacho que faz retroagir a valorização indiciária de um trabalhador com uma determinada categoria e escalão a uma data diferente daquela aplicável a outro trabalhador com a mesma categoria e escalão.
19. Padece do vício de falta de fundamentação, por violação do disposto na alínea e) do n.º 1 do artigo 113º; na alínea a) do n.º 1 do artigo 114º; e, nos n.ºs 1 e 2 do artigo 115º do CPA de Macau, o despacho que manifesta concordância com a proposta para a qual remete, se essa proposta não contém os motivos, causas ou pressupostos da decisão que não fez retroagir a actualização salarial do trabalhador com contrato individual de trabalho à data a que alude a norma transitória do respectivo regime laboral para os demais trabalhadores do quadro, contratados além do quadro ou assalariados.
20. A fundamentação por remissão obriga a que a informação, parecer ou proposta para que se remete contenha as razões de facto e de direito, ainda que de forma sucinta, mas que as contenha, de modo a que se perceba por que se decidiu naquele sentido.
21. A omissão, obscuridade e insuficiência da fundamentação do acto valem como falta de fundamentação; e a falta de fundamentação inquina o acto de ilegalidade, o que determina a sua anulabilidade.
22. Os termos e condições contratuais, bem como as regalias e direitos constantes do contrato individual de trabalho do recorrente não são de molde a justificar a não retroactividade indiciária – e a desigualdade salarial daí decorrente -, no período compreendido entre 1 de Julho de 2007 e 18 de Agosto de 2009.
23. Não se justifica qualquer diferenciação indiciária no período de 1 de Julho de 2007 a 18 de Agosto de 2009, entre os enfermeiros do quadro, além do quadro e assalariados, por um lado, e os enfermeiros com contrato individual de trabalho, por outro, com a mesma categoria e escalão, quando os próprios Serviços de Saúde de Macau fazem equiparar ab initio a remuneração destes à daqueles.
24. Enferma do vício de violação de lei, por preterição do disposto no artigo 25º da Lei Básica da Região Administrativa Especial de Macau; nos artigos 174º e 175º do ETAPM (aplicáveis ex vi do disposto no n.º 3 do artigo 1º do Decreto-Lei n.º 60/92/M, de 24 de Agosto, e da cláusula 18ª do contrato individual de trabalho); no n.º 2 do artigo 57º da Lei n.º 7/2008, de 18 de Agosto; no artigo 4º do contrato individual de trabalho celebrado entre a recorrente e os SSM; nos artigos 2º e 3º da Convenção n.º 111 da O.I.T.; e, no artigo 7º do Pacto Internacional sobre os Direitos Económicos, Sociais e Culturais, o despacho do Chefe do Executivo que faz retroagir a valorização indiciária de trabalhador com contrato individual de trabalho a data diferente daquela a que alude o n.º 2 do artigo 40º da Lei n.º 18/2009, de 17 de Agosto.
Conclui, pedindo a anulação do acto recorrido, com todas as consequências legais.
*
Regularmente citada, pela entidade recorrida foi apresentada a contestação constante de fls. 49 a 88 cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais, invocando a falta de legitimidade activa do recorrente e pugnando pelo não provimento do recurso.
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Findo o prazo para alegações, o Ministério Público deu o seguinte parecer:
“Vem A impugnar o despacho do Chefe do Executivo de 22/2/10 que, na sequência de pedido da recorrente no sentido de autorização do posicionamento do mesmo no 4º escalão de enfermeiro-graduado, de acordo com os n.ºs 2 e 3 do artº 36º da Lei 18/2009, autorizou a actualização do escalão, por averbamento ao contrato, com efeitos retroactivos à data de entrada em vigor daquela Lei, ou seja, 18/8/09, assacando-lhe vício de forma por falta de fundamentação e violação de lei, por afronta da igualdade plasmada no artº 25º LBRAEM, bem como de dispositivos vários, quer do ETAPM, quer da Convenção da O.I.T., quer do Pacto Internacional sobre os Direitos Económicos, Sociais e Culturais, esgrimindo, no essencial, ao que apreendemos, com a ilegalidade da diferenciação o tratamento do seu caso relativamente a colegas com vínculo na Administração Pública, para os quais a actualização salarial produziu efeitos retroactivos a 1/7/07, nos termos do artº 40º da Lei referida, batendo-se, assim, pela aplicação do princípio “trabalho igual - salário igual”, não discriminação em matéria de emprego e profissão, o que, a seu ver, sucederá com o despacho em causa ao fazer retroagir a valorização indiciaria de um trabalhador com determinada categoria e escalão a uma data diferente da aplicável a outro trabalhador com a mesma categoria e escalão.
Vejamos:
Primeiro que tudo, haverá que escrutinar da eventual ilegitimidade da recorrente, excepção aduzida pela recorrida, com fundamento em que o despacho em questão, tendo autorizado o requerido pela recorrente, não terá afectado os seus direitos ou interesses legítimos, não detendo a mesma interesse directo, pessoal e legítimo, já que do eventual provimento do recurso apenas poderá obter a anulação do despacho que aprovou a decisão que lhe foi favorável, não podendo impor à Administração diferente averbamento contratual relativo à retroactividade dos efeitos de actualização salarial.
Compreendemos a argumentação, mas não a podemos aceitar.
É evidente que o acto sob escrutínio constituiu o culminar, a decisão definitiva e executória do procedimento iniciado com o requerimento formulado pelo recorrente, sendo certo que, em tal requerimento, aquele aludiu a pretensão relativa a retroactividade de actualização salarial decorrente do novo posicionamento requerido.
Ora, pese embora o deferimento da pretensão relativamente ao seu posicionamento profissional, nada impedia ou impede que o recorrente, através do mesmo, considerasse e considere ser seu direito o efeito retroactivo da actualização salarial à data que almeja, ou seja, 1/7/07, ao invés da fixada, não se vendo que, para esse sector do acto (a que, a bem da verdade, limita o seu petitório) não assista ao recorrente interesse directo, pessoal e legítimo.
E, não se diga que do eventual provimento do recurso interposto nunca lhe poderão advir resultados benéficos: sendo certo que, em obediência ao sagrado princípio da separação de poderes, não poderá o tribunal, no domínio deste processo, impor à Administração a injunção de diferente averbamento contratual, designadamente relativo à retroactividade da actualização das valorizações indiciárias, não o é menos que, se, porventura, o tribunal anulasse ou anule o acto, nesse específico, com fundamento em eventual ilegalidade no decidido, dando razões ao argumentado pelo recorrente, não poderia a Administração deixar de daí retirar as devidas ilações...
Tudo para frisar que não vemos como possa proceder a excepção aduzida.
Posto isto, em termos de mérito, de substância, cremos não assistir ao recorrente qualquer razão.
Aceita-se que, pese embora este tenha sido contratado ao abrigo de um contrato individual de trabalho celebrado com a Administração, regido pelas sua cláusulas, aceites por ambas as partes, se encontra, de todo o modo, dependente de uma espécie de “regime misto”, com sujeição a regras gerais do regime da função pública, designadamente no que respeita às incompatibilidades, avaliações de desempenho e outras, de que, alias, dá conta, além do mais, a cláusula 18ª do seu contrato individual de trabalho ao prever que “Nos casos omissos, o presente contrato rege-se pelas regras gerais vigentes para os trabalhadores da Administração Pública de Macau”.
De todo o modo, esse “regime misto” não invalida que a sua situação seja objectivamente diferente dos colegas providos em regime de nomeação, provisória ou definitiva, em comissão de serviço, contrato além do quadro, contrato de assalariamento, ou contrato de trabalho celebrado com não recrutados ao exterior e que, consequentemente, a lei possa, para os efeitos que entender devidos, contemplar diferentemente tais situações.
Nos termos da al 3) do n.° 4 do art° 1° da Lei 14/2009, o regime das carreiras não é aplicável aos trabalhadores providos
“3) para servirem como consultores ou em funções técnicas especializadas”,
menção que, se bem se aferir, corresponde “tout court” ao consignado no 2° parágrafo do art° 99°, LBRAEM e diz directamente respeito as casos de contratação no exterior, como o presente.
Donde, poder-se, desde logo, concluir que o regime da carreira de enfermagem estabelecido pela Lei 18/2009 não é, por si, aplicável ao caso da recorrente.
É claro que tal não invalida que, em termos, designadamente, do princípio “salário igual para trabalho igual”, a questão não deva ser equacionada.
O que se regista é que a lei efectivamente, contemplou de forma diversa diferentes situações profissionais, fazendo questão de não enquadrar e integrar no regime da carreira a situação da recorrente.
Neste contexto, o acto ora em escrutínio surge não como consequência directa ou necessária da implementação desse novo regime da carreira de enfermagem, mas como vontade administrativa de, por alguma forma, dar satisfação àquele princípio de “salário igual para trabalho igual”, fazendo, no fundo, equiparar a situação da recorrente à dos contratos individuais de trabalho celebrados com não recrutados ao exterior, nos termos do n.° 3 do art° 36° da Lei citada, prevendo os efeitos retroactivos à data de entrada em vigor dessa Lei, sendo certo que coisa diferente seria dificilmente aceitável e, até “contra natura”, em termos de contratos individuais de trabalho dado poder até pôr-se a questão de a retroactividade se reportar a data anterior à celebração do contrato em vigor.
Poderá, porventura, argumentar-se que, desta forma, se não assegura o referido princípio de “salário igual para trabalho igual”, dado que para os restantes providos, exercendo funções similares, nos termos do n.° 2 do art° 40°, as valorações indiciárias retroagem a data bastante anterior.
É certo.
Contudo, isso não é problema do acto. É da norma. E, para o escrutínio respectivo mostra-se o presente meio inadequado.
Assim, sendo certo que, relativamente ao despacho em crise, se não divisa a ocorrência da pretendida afronta de qualquer dos normativos assacados, afigurando-se-nos, por outra banda, que do externado por aquele, decorrem, com proficiência, clareza e congruência, os motivos, de facto e de direito em que a decisão se estribou, perfeitamente compreensíveis e assimiláveis pelo cidadão médio, o que não deixou de ocorrer com o recorrente, entendemos que, por não ocorrência de qualquer dos vícios assacados, ou qualquer outro de que cumpra conhecer, não merece provimento o presente recurso.”
*
O Tribunal é o competente e o processo o próprio.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas, e têm interesse processual.
Não existe outras nulidades, excepções nem questões prévias que obstem ao conhecimento do mérito da causa.
Cumpre decidir.
***
II) FUNDAMENTOS DE FACTO E DE DIREITO
Resulta provada dos elementos constantes dos autos, designadamente do processo administrativo, a seguinte matéria de facto com pertinência para a decisão da causa:
O recorrente é enfermeiro, tendo sido contratado para exercer funções nos Serviços de Saúde de Macau com efeitos a partir de 1 de Agosto de 1995.
Foi contratado em regime de contrato individual de trabalho, como enfermeiro graduado, 3º escalão, tendo-lhe sido atribuído o índice 405 da tabela de vencimentos, afecto à Unidade de Cuidados Intensivos do Centro Hospitalar do Conde de São Januário.
Em anexo ao referido contrato foram conferidos outros direitos e regalias ao recorrente, como direito a alojamento a expensas da RAEM, passagem de regresso ao local de recrutamento para si e família, bem como transporte de bagagem pessoal para si e agregado familiar, bagagem técnica, compensações por cessação definitiva de funções, etc.
O seu contrato foi sucessivamente renovado por períodos de um ano.
Em 18 de Agosto de 2009, o recorrente requereu ao Director dos Serviços de Saúde se dignasse “…autorizar a sua colocação no 4º escalão de enfermeiro graduado conforme previsto na Lei nº 18/2009”.
Em 22.02.2010 o Exmº Chefe do Executivo, na sequência do parecer do Exmº Director dos Serviços, lavrou o seguinte despacho:
“Concordo a ratificação” (fls. 2 do processo administrativo)
O referido despacho tinha recaído sobre a proposta nº 192/PP/DP/2010, de 09.02.2010, que propunha a actualização salarial (índice 505, escalão 4º) por averbamento ao contrato com referência à nova carreira de enfermagem. (fls. 2 a 4 do p.a.)
O recorrente foi notificado por ofício de 26.02.2010 para, caso não tivesse nada a opor à revisão decorrente do despacho de 22.02.2010, manifestar a sua vontade à Divisão de Pessoal até ao dia 10.03.2010, com vista aos trâmites posteriores. (fls. 22 do p.a.)
Por ofício de 04.03.2010 foi o recorrente notificado dando-lhe conhecimento de que o regime das carreiras não é aplicável aos trabalhadores recrutados ao exterior que tenham sido contratados ao abrigo do artigo 99º da Lei Básica, ou seja, a Lei nº 18/2009, dando-lhe ainda conta da alteração da cláusula 4ª do seu contrato individual de trabalho e do momento do início da produção de efeitos. (fls. 27 a 31 do p.a.)
Com esta notificação foi junta a alteração contratual, ficando ainda definido que a produção de efeitos se reportava a 18 de Agosto de 2009.
O Exmº Chefe do Executivo autorizou em 27.04.2010 a alteração das cláusulas do averbamento ao contrato nos termos propostos na proposta nº 313/PP/DP/2010. (fls. 33 a 35 do p.a.)
O recorrente foi notificado por ofício de 07.05.2010 dos despacho e propostas atrás referidos. (fls. 97 do p.a.)
O averbamento foi efectuado, tendo ficado estabelecido na cláusula 4ª que a remuneração corresponderia à categoria de enfermeiro-graduado, 4º escalão, índice 505, segundo o disposto no Anexo I da Lei nº 18/2009 de 17 de Agosto. (fls. 109 do p.a.)
E na cláusula 19ª ficou definido que os efeitos decorrentes do índice referido na cláusula 4ª do averbamento retroagiriam a 18 de Agosto de 2009 e incidiam sobre o vencimento. (fls. 111 do p.a.)
Contudo, após a assinatura do averbamento, o recorrente incluiu uma declaração do seguinte teor: “Assino o presente averbamento ao meu contrato individual de trabalho com a reserva dos direitos que me assistam de fazer retroagir a actualização da minha remuneração a 1 de Julho de2007” (fls. 111 verso do p.a.)
*
As questões que se colocam no presente recurso são as seguintes:
- Falta de legitimidade activa do recorrente;
- Falta de fundamentação;
- Violação do princípio da igualdade; e
- Outras violações de lei.
Na verdade, tais questões já foram objecto de apreciação neste TSI1 em várias ocasiões, cujas decisões foram também confirmadas pelo TUI2 em sede de recurso jurisdicional, pelo que por uma razão de economia de meios e de tempo, remetemo-nos àqueles doutos arestos cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido, transcrevendo-se em seguida, a título exemplificativo, a fundamentação jurídica consignada no Processo nº 520/2010:
“Disporá o recorrente de legitimidade activa?
Segundo a contestação do Exm.º recorrido, a recorrente não teria legitimidade porque a sua pretensão formulada em 16 Setembro de 2009 (fls. 5 do instrutor apenso) havia sido satisfeita.
Todavia, o facto de ter sido autorizado o reposicionamento pretendido, não significa que a interessada tivesse com a sua solicitação renunciado aos eventuais direitos que decorressem da aplicação da lei n.º 18/2009, de 17/08, de resto invocada por si no requerimento que apresentou. O direito que emana do diploma, se fosse caso disso, haveria de ser aplicado em concreto em toda a sua extensão e não em apenas parte dele.
Ora, o problema que vem colocado nos autos decorre, precisamente, da amplitude na aplicação da lei à situação funcional da recorrente: ou seja, saber se os efeitos da alteração contratual se deveriam reportar a 1 de Julho de 2007 (tese do recorrente) ou a 18 de Agosto de 2009 (como foi decidido e, posteriormente, clausulado).
Pergunta-se: a divergência de incidência temporal de efeitos pode ser discutida nestes autos? Será que o requerimento de 18 de Agosto pode servir de travão à discussão jurisdicional no que respeita à matéria nele incluída? Vamos ver.
É verdade que tal requerimento visava a aplicação da Lei 18/2009, o que foi satisfeito. Todavia, ainda que ele não expresse a extensão da sua eficácia temporal, isto é, embora a recorrente não incluísse o momento a partir do qual a alteração devia produzir efeitos, isso não quer dizer que o seu autor tivesse deixado à entidade competente o livre arbítrio de o decidir a seu modo ou como o achasse conveniente.
Isto é, com tal pretensão, não se pode dizer que a recorrente reconhecesse à entidade competente o poder de encontrar a melhor solução possível, a qual assim ficaria, quanto a esse aspecto, ao critério pessoal e discricionário desta. Não. Simplesmente, deixou que a entidade competente aplicasse a lei de acordo com os aspectos vinculados que dela emergem. Efectivamente, o que importará ver a final é se a lei, realmente, fixa esses critérios de vinculação. E na hipótese afirmativa, então o facto de a recorrente os não ter mencionado não podem servir de obstáculo à sua observância pelo Exm.º Chefe do Executivo.
Quer isto dizer, portanto, que a omissão dessa parte pretensiva não abre a possibilidade de a entidade administrativa decidir menos do que a lei determina (se tal for o caso, evidentemente, coisa que por ora não estamos em condição de dizer). E por tal motivo, não está a recorrente impossibilitado de discutir no tribunal se a decisão foi ou não legal, se ficou aquém do que devia e do que era vinculação legal.
Claro que a posterior assinatura da alteração ao contrato baseado num despacho restritivo na amplitude de efeitos podia ser fatal aos interesses do recorrente, na medida em que se podia dizer que com o seu gesto a recorrente mostrou aceitar o acto qua tale, o que o impediria de recorrer ao tribunal para o discutir (art. 34º, do CPAC).
Sucede, porém, que a recorrente apôs uma declaração de reserva no próprio averbamento contratual3. Afirmou claramente o seu propósito de não acatar a cláusula em apreço ou, o que vai dar ao mesmo, tornou clara a possibilidade de discutir pelo meio próprio o direito à tutela que entendia não lhe estar a ser assegurada no contrato que estava a rubricar. Com tal declaração, a recorrente escapou ao perigo que decorreria da aplicação ao seu caso da norma do citado art. 34º.
Assim sendo, para discutir este específico ponto, não perdeu a recorrente a sua legitimidade activa - em virtude de se considerar titular de um direito que terá sido afectado, em sua óptica, pelo acto impugnado - e cujo sucesso contencioso final lhe dará a tutela que de momento sente faltar-lhe (artº 33º, al. a), do CPAC).
Concluindo, também a recorrente goza de legitimidade activa.
Não há outras excepções ou questões prévias que obstem ao conhecimento de mérito.

A questão sob litígio nos presentes autos pode facilmente equacionar-se da seguinte maneira:
A recorrente, tendo sido contratada para desempenhar as funções de enfermeiro nos Serviços de Saúde de Macau, tem ou não o direito de ver satisfeita a sua pretensão em que a actualização salarial que decorre da Lei 18/2009, de 17/08/2009 (1ª parte) se lhe aplique e que, por essa via, seja colocada no 4º escalão com efeitos reportados a 1 de Julho de 2007, e não a 18 de Agosto de 2009 (como foi administrativamente decidido e, posteriormente, clausulado no instrumento contratual)?
A recorrente defende que sim; a entidade recorrida não pensa o mesmo.
Vejamos.
O dissídio em apreço parte da publicação da Lei nº 18/2009, de 18 de Agosto (Estabelece o regime jurídico da carreira de enfermagem). Trata-se de um diploma, cujo âmbito pessoal de aplicação é o dos enfermeiros dos Serviços de Saúde da Região Administrativa Especial de Macau, ainda que, com as devidas adaptações, se aplique também aos enfermeiros de outros serviços e organismos públicos da RAEM (cfr. artº 2º). Não está aí o problema.
A dificuldade reside nas regras de transição previstas no diploma para os enfermeiros do quadro (cfr. art. 31º a 33º) e na eventual extensão de efeitos aos enfermeiros que do quadro não façam parte (arts. 34º e 36º).
Para se ser preciso, é preciso recordar que o caso em mãos começou por ser um problema de ordem subjectiva: Teria o diploma aplicabilidade à situação dos enfermeiros que apenas eram titulares de um contrato individual de trabalho? A Administração Pública, depois de alguma hesitação, resolveu a questão a contento dos interesses da recorrente e foi entendido que o seu reescalonamento se faria segundo as regras ali previstas. Ou seja, a recorrente viu alteradas as cláusulas contratuais relativas à categoria, escalão e vencimento.
Insatisfeita, porém, considera que o início dos efeitos se deveria reportar a 1 de Julho de 2007 e não somente a 18 de Agosto de 2009, data da entrada em vigor da lei. Este sim, é o problema a que urge dar solução.
Para tanto, alguns preceitos importa, desde já, transcrever.
O art. 34º dispõe o seguinte:
   Artigo 34º
   Efeitos da transição
   1. As transições a que se referem os n.ºs 1 a 3 do artigo 31º produzem efeitos a partir da data de entrada em vigor da presente lei.
   2. A transição a que se refere o n.º 4 do artigo 31º produz efeitos a partir da data da publicação no Boletim Oficial da Região Administrativa Especial de Macau da autorização do pedido pelo director dos Serviços de Saúde.
   3. Para efeitos de progressão e acesso, após a transição, é contado como prestado na carreira, categoria e escalão do quadro o tempo de serviço prestado pelos enfermeiros, sendo igualmente considerada a sua avaliação de desempenho.
   E o art. 36º preceitua:
   Artigo 36º
   Contratos individuais de trabalho em vigor
   1. Os contratos individuais de trabalho celebrados antes da data da entrada em vigor da presente lei e as suas renovações continuam sujeitos à disciplina emergente desses contratos.
   2. As partes, por sua iniciativa e mútuo acordo, podem optar por celebrar um novo contrato individual de trabalho regido pela presente lei.
   3. A opção referida no número anterior deve ser exercida no prazo de 180 dias a contar da data da entrada em vigor da presente lei, retroagindo os efeitos do novo contrato a essa data.
   4. Os contratos referidos no n.º 2 são celebrados tendo por referência o desenvolvimento da carreira constante do anexo I ou no anexo III da presente lei, tendo em conta, respectivamente, as habilitações académicas ou profissionais legalmente exigidas, mantendo os trabalhadores a categoria e escalão anteriormente detidos.
   5. Nos casos previstos no n.º 2 o tempo de serviço, para efeitos de progressão e acesso, é contado a partir da data de produção de efeitos dos novos contratos.
   E o art. 40º reza assim:
   Artigo 40º
   Entrada em vigor
   1. A presente lei entra em vigor no dia seguinte ao da sua publicação.
   2. As valorizações indiciárias decorrentes das transições a que se refere o n.º 1 do artigo 34º e das alterações a que se refere o n.º 1 do artigo 35º retroagem a 1 de Julho de 2007, e incidem, apenas, sobre o vencimento único, tendo os trabalhadores direito a receber um montante pecuniário equivalente à diferença entre os índices correspondentes à categoria e escalão resultantes da transição e os índices correspondentes à categoria e escalão detidos antes da transição.
A recorrente defende que a sua situação se enquadra no nº2 do art. 40º, n.º 2, portanto.
Mas acontece que a retroactividade a 1 de Julho de 2007 da vantagem decorrente da lei, tal como literalmente se colhe do nº2 do art. 40º, apenas contempla:
a) As transições referidas no art. 34º (ou seja, por remissão expressa, as transições dos enfermeiros do quadro contidas nos nºs 1 a 3 do art. 31º);
b) As alterações a que se refere o n.º 1, do art. 35º (ou seja, as alterações que se consideram extensivas aos contratados além do quadro e aos assalariados).
Compreende-se a intenção do legislador, se relacionarmos a força prescritiva das normas citadas com a que emana do art. 36º do mesmo articulado legal! É que os contratos individuais de trabalho celebrados e renovados antes da data da entrada em vigor da lei continuam sujeitos à disciplina deles emergente (n.º1), a não ser que as partes, por sua iniciativa e mútuo consenso, optem por celebrar um novo contrato individual de trabalho regido já pela lei (n.º2).
Daqui resulta que o art. 36º apresenta uma solução pensada para os enfermeiros com contrato individual de trabalho, definindo-lhes uma regra e uma excepção.
A regra vem no número 1: os contratos celebrados antes da entrada em vigor da lei e as renovações também anteriores a essa data mantêm-se incólumes e inalteráveis até ao seu termo. Isto é, o sinalagma que deles emerge não pode ser violado por nenhuma das partes a seu bel talante e, por isso, as cláusulas outorgadas obrigam e sujeitam os contratantes.
A excepção descobre-se no n.º 2: as partes contratantes podem afastar a regra, se ambas (o que implica consenso) optarem por um novo contrato individual de trabalho regido por todas as prescrições da lei.
Mas esta excepção abre logo uma dificuldade, que é esta: ao permitir que as partes possam celebrar um novo contrato “regido pela presente lei” será que o legislador quis que da lei se aplicassem somente as normas de regência do direito substantivo ali estabelecidas?
1ª Proposta de solução: Sim. O legislador realmente pensou dessa maneira. Tanto assim é, que no n.º 4 estabeleceu que os novos contratos que as partes optassem por celebrar deveriam ter por “referência” o desenvolvimento da carreira constante do anexo I ou no anexo III da lei, tendo em conta, respectivamente, as habilitações académicas ou profissionais legalmente exigidas, mantendo os trabalhadores a categoria e escalão anteriormente detidos. Quer dizer, a lei não foi totalmente “liberal” ao ponto de deixar ao critério dos contratantes a dimensão da posição substantiva dos enfermeiros. Dito por outras palavras, o “regime” da lei só aproveita aos enfermeiros em igual situação à do recorrente nos estritos limites consentidos na lei.
2ª Proposta de solução: Sim. O legislador não deixou que fosse possível a utilização indiferenciada da norma que prevê a entrada em vigor reportada a 1 de Julho de 1007 (art. 40º, nº1), na medida em que essa retroactividade apenas respeita à alteração substantiva e valorativa do direito no que respeita às “transições” dos enfermeiros do quadro (arts. 34º, nº1 e 31º, nºs 1 a 3) e às “alterações” extensivas aos contratados além do quadro e aos assalariados (art. 35º, nº1). Ou seja, deixou de fora da previsão normativa, precisamente os enfermeiros com contrato individual de trabalho.
Por outro lado, o artigo 36º é muito claro sobre este aspecto pontual do eventual aproveitamento optativo das partes do “regime” da lei. Na verdade, o n.º 3 do artigo textua que:
“A opção referida no número anterior deve ser exercida no prazo de 180 dias a contar da data da entrada em vigor da presente lei, retroagindo os efeitos do novo contrato a essa data”.
Ou seja, o legislador foi claro em definir o marco temporal da extensão, não permitindo que os efeitos da opção retroagissem para além de 18 de Agosto de 2009, data da entrada em vigor do diploma.
E o próprio n.º 5, do mesmo artigo, com vista ao desenvolvimento futuro de efeitos asseverou que “Nos casos previstos no n.º 2 o tempo de serviço, para efeitos de progressão e acesso, é contado a partir da data de produção de efeitos dos novos contratos”, o que se nos afigura bem revelador da determinação do legislador em não dar às partes do novo contrato liberdade na densificação clausulativa, mas confinar os limites da outorga às balizas temporais que ele mesmo definiu.
O que, por outras palavras, significa que a permissão prevista no n.º 2 não abrange todo o regime da lei, mas somente o regime que a lei deixa aplicar.
3ª Possibilidade de solução? Não há. E se nos é agora permitido refinar as hipóteses, seríamos mesmo tentados a dizer que ambas as propostas se podem fundir numa só, isto é, que as razões de uma andam de braço dado na outra, ao ponto de praticamente servirem de uma só vez para negar qualquer sucesso ao recorrente. Estão ali vertidos os motivos pelas quais, em nossa opinião, a posição defendida no recurso contencioso a respeito da má aplicação da lei não podem colher.
*
E se é assim que pensamos, então nenhum dos fundamentos com que a recorrente ilustra a violação do princípio da igualdade - como seja a invocação da violação do art. 25º da Lei Básica da RAEM, do art. 57º, n.º 2, da Lei das Relações de Trabalho, dos arts. 2º e 3º da Convenção n.º 111 da OIT sobre a Discriminação em matéria de emprego e profissão, do art. 7º do Pacto Internacional sobre os Direitos Económicos, Sociais e Culturais – ou o da legalidade (ainda que sem expressamente assim o qualificar – como a cláusula 4º do seu contrato individual de trabalho de fls. 68 do apenso ou os arts. 174º e 175º do ETAPM – serve para sustentar a procedência do recurso no qual tanto denodo e brilho depositou.
É que neste caso, se, como pensamos, a Administração não podia satisfazer a pretensão da recorrente porque a lei o não permitia, então a actividade vinculada a que o Ex.mo Chefe do Executivo estava obrigado cumpre a lei e respeita todo e qualquer princípio de legalidade que tivesse que ser observado.
Mas, uma tal solução não ofenderá, no fundo e verdadeiramente, princípios de igualdade?
Atrevemo-nos, mesmo assim, a dizer que não. Porque um tal princípio só faz sentido perante situações exactamente iguais; a diversidade de situações – mesmo que com fortes pontos de contacto – não pode gerar a violação do princípio. É o que a mais representativa jurisprudência local vem defendendo (v.g., Ac. do TUI, de 12/05/2010, Proc. nº 5/2010)4. Ora, basta a circunstância de a situação do recorrente assentar em contrato individual de trabalho para logo se ver que o quadro em que ele se relaciona com a Administração é diferente do quadro de vinculação a que respeitam outras situações como as dos funcionários do quadro ou os assalariados. É uma relação em que, em nossa opinião, a Administração até pode contratualizar com o particular direitos diferentes e até superiores aos que possam resultar de uma relação jurídica própria de um lugar do quadro.
De resto, se o problema aqui fosse de desigualdade - e não nos parece que seja - então, a questão até mudaria de figura para passar a ser uma desigualdade, não na aplicação do direito, mas eventualmente uma desigualdade na criação do direito5.
Ora, como é sabido, o legislador ordinário pode introduzir discriminações positivas ou negativas, desde que nas situações de facto encontre razão séria e não arbitrária para diferenciar o tratamento. Desde que haja fundamento material bastante, sério, razoável e legítimo que não perigue com situações em que as condições objectivas imponham igualdade de regulação, a discriminação na criação da lei não é necessariamente violadora do princípio da igualdade (Pareceres n.º 1/76 e 14/78 da Comissão Constitucional; Ac. do STA, de 26/03/98, Rec. n.º 42.154; do T.C. n.º 767/85, de 6/5/95, Rec. n.º 72/84; T.C. n.º 204/85, de 13/10/85, Proc. n.º 1/85; T.C. n.º 221/90, de 20/06, BMJ n.º 398/213, entre outros).
Por isso, é necessário ter presente a razão subjacente em sentido material, para que a igualdade se não confine a um postulado meramente formal.
Para ter pleno sentido prático, a criação de direito igual deve obedecer à previsão das mesmas situações, presentear todos os indivíduos com as mesmas características e a todos conferir os mesmos resultados jurídicos (J. GOMES CANOTILHO in Direito Constitucional, 5ª ed., 2ª reimpressão, pag. 575; tb. in Direito Constitucional e Teoria da Constituição, pag. 388; JOÃO MARTINS CLARO, in O Princípio da Igualdade, na obra Colectiva «Nos Dez Anos da Constituição», da INCM, pag.35 e sgs).
A violação doo princípio da igualdade só se realiza quando alguém é privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever num quadro de facto igual que devesse justificar uma mesma solução normativa (igualdade na criação do direito) ou administrativa( na aplicação do direito), de que neste segundo caso encontramos eco no art. 5º do C.P.A. ( sobre o princípio, vidé GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional, ed. 1992, pag. 574 e sgs). Quer dizer, portanto, que situações iguais têm que merecer iguais soluções e é aí que o princípio da igualdade encontra o seu nuclear fundamento, como é sabido.
Um princípio assim, que se rebela contra o arbítrio e as discriminações, contudo, não impõe absoluta uniformidade do regime jurídico para todos, antes permitindo diversidade de soluções perante justificada diferença de situações (Ac. do STA, de 26/3/98, Rec. n.º 42.154; do T.C. nº 433/87, in BMJ n.º 371/145).
A proibição do arbítrio constitui um limite externo da liberdade de conformação ou decisão do legislador e só deve considerar-se violado quando não exista o adequado suporte ou fundamento material suficiente para a medida legislativa tomada (Ac. T.C. de 1/12/85, n.º 309/85; n.º 103/87, de 24/3/87, in BMJ n.º 365/318). É por isso que as diferenciações de tratamento às vezes se tornam legítimas se se basearem numa distinção objectiva de situações, se tiverem um fim legítimo segundo o ordenamento constitucional positivo e se se revelarem necessárias, adequadas e proporcionadas à satisfação do seu objectivo (Ac. T.C. - Plenário – n.º 40/88, de 11/2/88, BMJ n.º 347/156).
Ora, neste caso, terá encontrado o legislador razões sérias para introduzir alguma divergência de soluções no que respeita à extensão temporal dos efeitos da lei e nós não vemos em que medida alguma violação ostensiva da igualdade possa ter advindo dessa opção legislativa.
Em todo o caso, mesmo que estivéssemos perante um caso de desigualdade na criação do direito, então este não seria o meio próprio para contra ela reagir, por se tratar de um meio contencioso orientado para a anulação de um acto administrativo.
Para dizer, portanto, que não podemos sufragar a tese da recorrente quanto a este vício.
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Falta analisar o vício de forma por falta de fundamentação também suscitado no recurso.
Como é sabido, a fundamentação serve propósitos de auto-controlo, impelindo a Administração a uma autodisciplina na análise e apreciação de cada caso, de forma a que pondere e reflicta bem sobre o assunto pendente e lhe dê o melhor tratamento factual e jurídico.
Mas a fundamentação também visa uma função de altero-controlo, permitindo que o particular administrado fique munido da necessária dose de argumentos com os quais possa atacar a justiça e a legalidade da decisão administrativa. É isto o que está implícito no art. 113º, n.º 1, al. e), bem como nos arts. 114º, n.º 1, al. a) e 115º, n.ºs 1 e 2, do CPA.
Para cumprir este desígnio, o art. 115º permite que se faça a chamada fundamentação por remissão, que visa encaminhar os fundamentos do acto directamente para os fundamentos expostos num texto prévio contido numa informação, num parecer, numa proposta, etc.
Aos olhos da recorrente, o acto em apreço não cumpre o intento da lei. Contudo, se prestarmos atenção ao acto em apreço - recorde-se, do Ex.mo Chefe do Executivo de 22/02/2010 - ele é de concordância com o parecer e proposta n.º 187/PP/DP/2010 prévios, nos quais é muito clara e absolutamente compreensível a indicação dos motivos da decisão (para os quais remete), nomeadamente no tocante à retroacção dos efeitos da alteração contratual.
Posição administrativa que viria a ser reiterada na proposta n.º 3133/PP/DP/2010 (ver fls. 102 do p.a.) através do despacho “Autorizo”. Obviamente, esta autorização recai sobre o teor dos elementos que foram apresentados ao Ex.mo Chefe do Executivo. Quer dizer, o objecto da autorização só podia ser a alteração contratual nos exactos termos em que lhe estava a ser feita a proposta, que mais uma vez apontava para 18 de Agosto de 2009 a data do início da produção dos efeitos do contrato que iria ser rubricado.
Este é o entendimento que decorre do contexto procedimental acerca da decisão impugnada, que se nos afigura de meridiana compreensão mesmo para o mais comum dos cidadãos. O próprio recorrente colheu essa exacta percepção ao impugnar com a mais perfeita lógica e brilhantismo o seu teor no presente recurso contencioso.
Cremos, pois, não haver falta, nem insuficiente fundamentação.”
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III) DECISÃO
Face ao exposto, acordam em negar provimento ao recurso contencioso, confirmando o acto recorrido.
Custas pelo recorrente, com 6 U.C. de taxa de justiça.
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Macau, 20 de Março de 2014
   Tong Hio Fong
Presente Lai Kin Hong
Vitor Coelho João A. G. Gil de Oliveira
1 Do TSI, Processos 520/2010, 525/2010, 559/2010, 527/2010 e 507/2010
2 Do TUI, Processos 9/2012, 19/2012, 27/2012 e 33/2012
3 Descreveu: “Assino o presente averbamento ao meu contrato individual de trabalho com reserva dos direitos que me assistam de fazer retroagir a actualização da minha remuneração a 1 de Julho de 2007” (fls. 113 do apenso instrutor).
4 No sentido de que a violação da igualdade admite distinções, consoante o caso, ver, por exemplo, o Ac. do Tribunal Constitucional Português de 11/02/1998, Proc. nº ACTC8167, segundo o qual:” O princípio constitucional da igualdade, entendido como limite objectivo da discricionariedade legislativa, não veda à lei a realização de distinções. Proíbe-lhe, antes, a adopção de medidas que estabeleçam distinções discriminatórias - desde logo, diferenciações de tratamento fundadas em categorias meramente subjectivas, como são os indicados exemplificadamente, no n.º 2 do artigo 13.º da Lei Fundamental -, ou seja, desigualdades de tratamento materialmente infundadas, sem qualquer fundamento razoável ou sem qualquer justificação objectiva e racional. Numa expressão sintética, o princípio da igualdade, enquanto princípio vinculativo da lei, traduz-se na ideia geral de proibição do arbítrio”.
5 O que, até aí, é permitido dentro de certas circunstâncias, tal como decorre do aresto do TC citado. Circunstância admitida em certos casos
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Processo 518/2010 Pág 34