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Processo nº 67/2014 Data: 20.03.2014
(Autos de recurso penal)

Assuntos : Crime de “detenção de arma proibida”.
Contradição insanável da fundamentação.
Reenvio.

SUMÁRIO

1. O crime de “detenção de arma proibida” é de realização permanente e de perigo abstracto, em que o que está em causa é a própria perigosidade das “armas”, visando-se, com a incriminação da sua detenção, tutelar o perigo da lesão da ordem, segurança e tranquilidade públicas face ao risco da livre circulação e detenção de armas.

2. Para a sua consumação necessária é a verificação dos seguintes elementos:
– a detenção (posse) de arma branca ou outro instrumento;
– com o fim de os usar como arma de agressão ou que possam ser utilizados para tal fim; e,
– a não justificação da sua posse.

3. O vício de “contradição insanável da fundamentação” ocorre quando se constata incompatibilidade, não ultrapassável, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação probatória e a decisão.

4. Padece de “contradição insanável” – que determina o reenvio nos termos do art. 418° do C.P.P.M. – a decisão da matéria de facto na qual se dá, simultaneamente, como provado, que a arguida “(…) não conseguiu justificar a detenção do x-acto em causa” e que “para organizar as caixas de cartolina recolhidas, a arguida trazia sempre consigo um x-acto”.

O relator,

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José Maria Dias Azedo

Processo nº 67/2014
(Autos de recurso penal)






ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:





Relatório

1. A, arguida com os restantes sinais dos autos, respondeu no T.J.B., vindo a ser condenada como autora material da prática de 1 crime de “detenção de arma proibida”, p. e p. pelo art. 262°, n.° 3 do C.P.M., na pena de 3 meses de prisão suspensa na sua execução por 1 ano e 3 meses; (cfr., fls. 115 a 120-v que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).

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Inconformada com o assim decidido, a arguida recorreu.
Motivou para, a final, e em sede das suas conclusões, imputar à sentença recorrida os vícios de “contradição insanável da fundamentação” e “erro notório na apreciação da prova”; (cfr., fls. 127 a 131).

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Respondendo, diz o Ministério Público que a sentença não merece censura, devendo ser integralmente confirmada; (cfr., fls. 133 a 135).

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Admitido o recurso com efeito e modo de subida adequadamente fixados, vieram os autos a este T.S.I..

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Em observância do estatuído no art. 406° do C.P.P.M. foram os autos ao Ilustre Procurador Adjunto que, em douto Parecer, diz o que segue:

“Assaca a recorrente ao douto aresto sob escrutínio vícios de erro notório na apreciação da prova e contradição insanável da fundamentação, pretendendo, quanto ao 1°, que se não mostra comprovado que a visada tenha batido com o x-acto na porta metálica dá residência do 2° arguido e que, de todo o modo, também se não alcança comprovativo válido que ela pretendesse usar esse instrumento para agredir o mesmo.
Diga-se, desde logo, quanto a esta última parte, que o tribunal "a quo" não deu como provado que o x-acto se destinava a ser utilizado em agressão, mas sim que podia ser utilizado para tal fim, não tendo a recorrente justificado razoavelmente a posse respectiva, asserção que, por de senso comum, não se vê que possa ser minimamente abalada.
Por outra banda, ainda que correspondesse à verdade a "história" que a própria visada estabelece (ponto 7°) para os factos, sem correspondência com a matéria dada como provada na douta sentença, não se descortina em que medida a mesma possa validamente contrariar a utilização, anterior, do instrumento em questão, para bater na porta metálica. Não se percebe ...
Enfim, os elementos probatórios recolhidos, quer testemunhais, quer decorrentes da investigação policial empreendida, são, por si, suficientes para sustentar, a partir do senso comum e regras da experiência, a correcção da convicção alcançada àcerca da prática dos factos pela visada, não se vendo que, com tal apreciação, se tenha violado qualquer regra ou princípio de direito probatório.
Maiores dúvidas se nos oferece a questão da fundamentação.
É que, dando-se como provado que "Para organizar as caixas de cartolina recolhidas, a 1 a arguida trazia sempre consigo um x-acto, a fim de cortar e organizar as referidas caixas ", e, não se tendo provado que a visada " ... apenas trazia ocasionalmente consigo o referido x-acto ao bater na porta do domicílio do 2° arguido ", mal se entende a conclusão de que a mesma " ... não conseguiu justificar a detenção do x-acto em causa ", detendo-o "deliberadamente consigo ", "sem justificação razoável ".
É certo ter o Mmo Juíz "a quo" feito questão de justificar a aparente contradição, entendendo que " ... não obstante a 1 a arguida tenha o hábito de trazer consigo o x-acto em causa para facilitar a recolha e venda de caixas de cartolina abandonadas na rua, o ponto fundamental do caso consiste no momento em que ocorreu o facto".
Ao que se percebe do raciocínio subsequente, esse "momento" não terá tanto a ver com a hora relativamente tardia em que os factos ocorreram, mas sim por, batendo com o instrumento em questão na porta, "por fúria" e "com a íntenção de discutir com o 2° arguido" ter exposto e usado aquele x-acto, sem justa causa. .
Bom, dando-se de barato que, com tal motivação se não apresente a pretendida insanável contradição da fundamentação, sempre subsistirá a questão: justificada que se mostra, "a priori" a posse do x-acto por parte da recorrente, o facto de a mesma o ter usado para bater na porta metálica da residência do 2° arguido, mantendo-o na mão até o entregar (ou lhe ser retirado) àquele, afasta a justificação da posse para efeitos de preenchimento do ilícito por que foi condenada ?
A questão coloca-se com alguma acuidade no caso presente, uma vez que, com relevo para o específico, apenas se comprovou que a recorrente bateu com o x-acto na porta metálica, sendo que, no momento posterior à abertura da porta pelo 2° arguido, este "tirou da mão da arguida o x-acto e foi-se embora com ela ", acrescentando-se mais à frente na sentença, num reporte algo diverso, que aquele "". exigiu imediatamente à 1 a arguida que lhe entregasse o x-acto em causa e, depois, esse x-acto foi entregue ao polícia aquando da sua chegada ao local em causa ".
Aceitando-se que a descrição assim apresentada se não mostra (designadamente quanto à efectiva atitude da recorrente após a abertura da porta) com configuração muito precisa e completa, consegue-se descortinar do expresso o fim agressivo ( "por fúria ", "com intenção de discutir '') com que a visada terá empunhado e exibido aquele instrumento cortante, atitude essa, pelo seu "animus ", a "desfigurar" irremediavelmente a justificação da posse do mesmo, naquela circunstância específica.
Daí que, "malgré iout'', se aceite o decidido.
Este, o nosso entendimento”; (cfr., fls. 185 a 187).

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Nada parecendo obstar, passa-se a decidir.

Fundamentação

Dos factos

2. Estão provados e não provados os factos como tal elencados na sentença recorrida, a fls. 117 a 119, e que aqui se dão como integralmente reproduzidos.

Do direito

3. Sabido que é que as conclusões pela recorrente extraídas da sua motivação de recurso delimitam o thema decidendum do Tribunal ad quem – sem prejuízo das questões que este T.S.I. pode conhecer ex officio – e verificando-se que a arguida, ora recorrente, assaca à decisão recorrida os vícios de “contradição insanável da fundamentação” e “erro notório na apreciação da prova”, vejamos.

Pois bem, o vício de “contradição insanável da fundamentação” tem sido entendido como aquele que ocorre quando “se constata incompatibilidade, não ultrapassável, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação probatória e a decisão”; (cfr., v.g. no Acórdão deste T.S.I. de 24.10.2013, Proc. n° 645/2013).

Por sua vez, verifica-se “erro notório na apreciação da prova quando se dão como provados factos incompatíveis entre si, isto é, que o que se teve como provado ou não provado está em desconformidade com o que realmente se provou, ou que se retirou de um facto tido como provado uma conclusão logicamente inaceitável. O erro existe também quando se violam as regras sobre o valor da prova vinculada, as regras de experiência ou as legis artis. Tem de ser um erro ostensivo, de tal modo evidente que não passa despercebido ao comum dos observadores.”

De facto, “É na audiência de julgamento que se produzem e avaliam todas as provas (cfr. artº 336º do C.P.P.M.), e é do seu conjunto, no uso dos seus poderes de livre apreciação da prova conjugados com as regras da experiência (cfr. artº 114º do mesmo código), que os julgadores adquirem a convicção sobre os factos objecto do processo.
Assim, sendo que o erro notório na apreciação da prova nada tem a ver com a eventual desconformidade entre a decisão de facto do Tribunal e aquela que entende adequada o Recorrente, irrelevante é, em sede de recurso, alegar-se como fundamento do dito vício, que devia o Tribunal ter dado relevância a determinado meio probatório para formar a sua convicção e assim dar como assente determinados factos, visto que, desta forma, mais não se faz do que pôr em causa a regra da livre convicção do Tribunal”; (cfr., v.g., Ac. de 12.05.2011, Proc. n° 165/2011, e mais recentemente de 13.02.2014, Proc. n.° 754/2013 do ora relator).

E, motivos não se vislumbrando para se alterar o que se deixou exposto quanto ao sentido e alcance dos vícios pela recorrente assacados à decisão recorrida, vejamos se tem a mesma razão.

Mostra-se útil uma breve nota sobre o crime em questão nos presentes autos.

Pois bem, o crime pelo qual foi a ora recorrente condenada é o de “detenção de arma proibida”, p. e p. pelo art. 262°, n.° 3, do C.P.M., onde se preceitua que:

“3. Quem detiver ou trouxer consigo arma branca ou outro instrumento, com o fim de serem usados como arma de agressão ou que possam ser utilizados para tal fim, não justificando a sua posse, é punido com pena de prisão até 2 anos”.

Trata-se de um crime de realização permanente e de perigo abstracto, em que o que está em causa é a própria perigosidade das “armas”, visando-se, com a incriminação da sua detenção, tutelar o perigo da lesão da ordem, segurança e tranquilidade públicas face ao risco da livre circulação e detenção de armas.

Da leitura do estatuído no transcrito art. 262°, n.° 3 do C.P.M. constata-se que para a consumação do crime em questão necessária é a verificação dos seguintes elementos:
– a detenção (posse) de arma branca ou outro instrumento;
– com o fim de os usar como arma de agressão ou que possam ser utilizados para tal fim; e,
– a não justificação da sua posse; (sendo de se entender que à acusação cabe a prova das características dos objectos, do seu potencial uso como arma de agressão e de que a conduta do arguido se enquadra nas hipóteses cobertas pela norma incriminatória, competindo ao arguido a justificação para a posse de tais objectos – nesse sentido, cfr., v.g., o Ac. da R. do Porto de 24.10.2007, Proc. n.° 0714586, in “www.dgsi.pt”, aqui citado como mera referência).

In casu, está provado que no dia 19.06.2009, deteve a ora recorrente um “«x-acto» com o comprimento total de 15,5cm, e com uma lâmina que media 6,5cm”.

Ora, dúvidas não parecendo haver que é tal “instrumento” passível de ser utilizado como “arma de agressão”, há que dar por verificados os primeiros dois elementos atrás identificados.

Vejamos agora da “justificação da posse de tal «x-acto»”.

Em relação a este elemento, entendeu o Mmo Juiz a quo que se tinha “provado” que depois de uma altercação ocorrida às 18:00 entre a recorrente e B, aquela, pelas 23:00, “pegou num x-acto e regressou ao domicílio em apreço, batendo na porta metálica da fracção e pedindo discussão com aquele, sendo que, nisto, o seu namorado tirou da mão desta o x-acto e foram-se embora”.

Seguidamente, deu também como “provado” que a recorrente “não conseguiu justificar a detenção do x-acto em causa”, “que agiu de forma livre, voluntária e consciente, ao praticar o acto em causa, no sentido de trazer deliberadamente consigo o x-acto, sem justificação razoável, mesmo que soubesse que este podia ser utilizado como arma branca de agressão”, e, por sua vez, que “para atenuar a pressão económica da família, durante anos, ela andava frequentemente a recolher caixas de cartolina encontradas abandonadas nas proximidades das lojas situadas ao redor da sua casa e, depois, vendê-las”; e que “para organizar as caixas de cartolina recolhidas, a 1ª arguida trazia sempre consigo um x-acto, a fim de cortar e organizar as referidas caixas”.

Cremos que a assinalada matéria de facto é, em nossa opinião, manifestamente incompatível, pois que, de um lado se diz que a recorrente “pegou no «x-acto» e regressou ao domicílio”, “que não conseguiu justificar a sua detenção”, “bem sabendo que o mesmo podia ser utilizado como arma de agressão”, e, de outro, que “trazia sempre consigo um «x-acto» para arrumar caixas de cartão”.

Perante a assinalada contradição, e ficando-se assim sem saber quais os (reais) motivos da detenção do “x-acto”, imperativo se torna o reenvio dos autos para novo julgamento da matéria de facto em questão e posterior nova decisão, nos termos do art. 418° do C.P.P.M..

Decisão

4. Nos termos que se deixam expostos, acordam conceder provimento ao recurso, reenviando-se os autos para novo julgamento nos termos do art. 418° do C.P.P.M..

Sem custas.

Honorários ao Exmo. Defensor Oficioso no montante de MOP$1.500,00.

Macau, aos 20 de Março de 2014
José Maria Dias Azedo
Chan Kuong Seng
Tam Hio Wa




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