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Proc. nº 628/2013
Relator: Cândido de Pinho
Data do acórdão: 03 de Abril de 2014
Descritores:
-Intervenção Principal provocada
-Intervenção principal sucessiva

SUMÁRIO:

I - A intervenção principal implica uma modificação subjectiva da instância mediante a constituição processual de um novo autor ou um novo réu, circunstância que se revela excepcional em relação à regra da imutabilidade da instância consagrada no art. 212º, nº1, do CPC. E tal como está configurado o art. 267ºdo CPC, este incidente cobre, indistintamente, os casos de litisconsórcio necessário e voluntário.

II - Em tais hipóteses, o chamado que aceita a intervenção passa a ser um interessado directo e, na qualidade de réu (portanto, parte principal), supre a ilegitimidade passiva a ponto de poder vir a ser condenado na respectiva acção em que intervém.

III - Dada a qualidade de parte que o interveniente principal ocupa na relação jurídica processual, nada obsta a que ele possa, por seu turno (à semelhança do que sucede com o chamamento sucessivo na intervenção acessória: art. 274º, nº3, do CPC), requerer sucessivamente a intervenção principal de terceiro para se associar a si, nos termos dos arts. 267º e 271º, nº1 e 2, do mesmo Código.















Proc. nº 628/2013

Acordam no Tribunal de Segunda Instância da R.A.E.M.

I - Relatório
“A”, com sede na Av. Horta e Costa, nº XXX, em Macau intentou no TJB (Proc. nº CV1-11-0099-CAO) acção declarativa com processo ordinário contra “B”, com sede na Rua do Dr. Lourenço Pereira Marques, s/n, XXX, em Macau, pedindo a condenação da ré no pagamento da indemnização no valor de Mop$ 768.670,00 a título de danos sofridos num veículo automóvel, cujo transporte por via marítima disse ter contratado com esta.
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Contestou a ré, suscitando a ilegitimidade activa e passiva, alegando ter efectuado o contrato, não com a autora, mas sim com “C”, pertencente a D. Impugnou, também, a matéria da acção, dizendo terem os danos na viatura sido provocados pela “E” no momento em que operava a carga do contentor onde o veículo era transportado.
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A autora veio, então, requerer a intervenção principal provocada de “E” e de D.
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Tendo sido deferido o pedido, veio “E” suscitar a sua ilegitimidade passiva e requerer, por seu turno, a intervenção principal provocada de “F”, para quem disse ter transferido a responsabilidade civil decorrente de danos no exercício da sua actividade.
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Foi, então, proferido o despacho saneador (fls. 248), no qual foi decidido indeferir o pedido de intervenção requerido por “E” (assim nos referiremos a esta pessoa colectiva doravante)
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É desse despacho que ora recorre “E”, em cujas alegações apresentou as seguintes conclusões:
«1. Vem o presente Recurso interposto do Douto Despacho de fls…, proferido pela Meritíssima Juiz do Tribunal a quo, na parte que indefere o pedido de intervenção principal provocada F deduzido pela ora Recorrente.
2. A questão controvertida em causa no presente Recurso centra-se na possibilidade de o incidente de intervenção principal de terceiro ser reservado apenas às partes primitivas da causa ou se tal possibilidade também se estende aos intervenientes principais por via de chamamento anterior.
3. Salvo devido respeito por melhor opinião, a petição de intervenção principal de terceiro constitui um direito processual das partes principais, mesmo daquelas que tenham chegado ao processo por via de incidente de intervenção principal espontânea ou provocada.
4. No que respeita aos poderes processuais conferidos ao interveniente principal, a posição processual deste é equiparada à das partes principais, conforme se prevê no artigo 264.º, n.º 2, in fine.
5. Assim, conjugando-se o disposto no referido artigo 264.º, n.º 2 in fine com o nº1 do artigo 267.º, que prevê a faculdade de qualquer das partes poder "chamar a juízo o interessado com direito a intervir na causa, seja como seu associado, seja como associado da parte contrária", forçoso será concluir que tal faculdade é extensível aos Intervenientes Principais.
6. É certo que o legislador não previu expressamente a faculdade processual do Interveniente Principal chamar um terceiro à demanda, ao contrário do que sucede no incidente da intervenção acessória, onde se prevê expressamente a possibilidade de um interveniente acessório chamar terceiros à demanda, conforme consta do artigo 274.º, n.º 3. Contudo,
7. Tendo em conta que a intervenção do interveniente acessório se limita à discussão das questões que tenham repercussão na acção de regresso invocada como fundamento do chamamento, existiu necessidade de previsão expressa da faculdade de tal interveniente suscitar a intervenção acessória subsequente dos seus devedores em via de regresso
8. Se o legislador quis, numa situação específica, em que o Interveniente acessório tem já menos poderes do que as partes originais, ressalvar a hipótese de este chamar um terceiro à demanda, corresponderá necessariamente ao melhor espírito da Lei, que o interveniente principal, que tem os mesmos poderes processuais das partes primitivas (artigo 264.º, nº 2), possa chamar terceiros com interesse na demanda.
9. O Legislador não refere expressamente a possibilidade do interveniente principal chamar terceiros à demanda, em sede de intervenção principal provocada, pelo simples facto dos intervenientes principais gozarem das mesmas prerrogativas que as partes primitivas.
10. Assim, a intervenção deduzida pela Recorrente teve por base uma aplicação directa e linear do regime de intervenção de terceiros legalmente previsto, não consubstanciando, por conseguinte, qualquer aplicação analógica a que o carácter excepcional das normas dos artigos 262.º ss. obstasse.
11. Logo, salvo devido respeito por melhor opinião, tem a ora Recorrente, Interveniente Principal, direito a deduzir incidente de intervenção principal provocada da F.
12. A par da alegada impossibilidade processual da ora Recorrente, enquanto interveniente principal, suscitar a intervenção subsequente da Companhia de Seguros, o douto Tribunal a quo refere ainda que por o contrato de seguro invocado pela ora Recorrente não se tratar de um contrato de seguro obrigatório não poderá haver lugar ao chamamento nos termos pretendidos pela ora Recorrente.
13. Está-se em crer, salvo melhor opinião, que é exactamente pelo seguro não ser obrigatório que é de fundamental importância que a Seguradora seja admitida a intervir como parte principal, defendendo um interesse igual ao da Recorrente.
14. A relação contratual estabelecida entre a ora Recorrente e a Seguradora não é estranha à lide dos autos, porquanto entre ambas foi celebrado um contrato de seguro de responsabilidade civil que cobre os alegados danos reclamados pela Autora nos presentes autos, através do qual a Recorrente transferiu validamente a responsabilidade que lhe possa vir a ser assacada na acção para a Seguradora. Com efeito,
15. O manuseamento dos contentores por parte da Recorrente no Porto de Ká-Hó, trata-se de uma actividade que se encontra dentro do âmbito de cobertura do contrato de seguro titulado pela Apólice; o incidente em causa nos autos ocorreu dentro do limite temporal e geográfico da referida Apólice, e o valor reclamado pelo Autor pelos danos alegadamente sofridos em consequência do incidente em causa nos presentes autos encontra-se também dentro do limite do capital segurado pela Apólice.
16. Pelo que, no caso da ora Recorrente vir a ser responsabilizada pelo que lhe está a ser imputado, tal inserir-se-á no âmbito de cobertura do contrato de seguro, donde resulta que a referida Seguradora é eventualmente responsável pelos alegados prejuízos reclamados pela Recorrida por força da celebração do contrato de seguro.
17. Tal relação, salvo devido respeito por melhor opinião, configura uma situação de litisconsórcio voluntário, nos termos do artigo 60.º do CPC, isto porque no caso do seguro facultativo está em perante um contrato a favor de terceiro (artigo 438.º do Código Civil de Macau), ainda que possa ser designado de impróprio, no qual a seguradora obriga-se, também, para com o lesado a satisfazer a indemnização devida, ficando aquele com o direito de demandar directamente a seguradora, ou o segurado, ou ambos, em litisconsórcio voluntário.
18. Consequentemente, também o segurado demandado teria o direito a fazer intervir a título principal a sua seguradora como Ré, através de intervenção principal provocada para ser condenada no pedido, por força da alínea a) do artigo 262.º - conferir Acórdão da Relação de Lisboa de 27 de Novembro de 2008, processo 8398/08-2 que ora se invoca a título de direito comparado e considerando a similitude de regimes.
19. Acresce ainda que, perante o lesado, segurado e seguradora são solidariamente responsáveis, nos termos do artigo 490.º do Código Civil, como tal, a seguradora tem um interesse directo em contradizer, e querendo, unir esforços ao segurado para se defender.
20. Ademais, sendo suscitado pelo Réu há que ter em conta as especialidades previstas no artigo 271.º, em que se prevê o chamamento de condevedores ou do principal devedor (nº 1), bem como, tratando-se de obrigação solidária, e sendo a prestação exigida na totalidade a um dos condevedores, o chamamento dos condevedores, tendo em vista a condenação da satisfação do direito de regresso que lhe possa vir assistir (nº 2).
21. Como tal, figurando Recorrente e Seguradora na acção, para além de poderem unir esforços para se defenderem, aquela poderá obter o reconhecimento eventual do direito de regresso que lhe assistirá caso seja condenada a pagar as quantias peticionadas pela Autora, permitindo-se assim à Recorrente que obtenha, por esta via, desde logo, título executivo contra o chamado e evitando a necessidade de, no futuro, ter de propor nova acção condenatória na hipótese de ter de cumprir na totalidade a obrigação solidária que lhe era.
22. Mesmo que assim não se entenda, o que não se concede, sempre seria de admitir que a Seguradora pudesse intervir na causa, mas apenas como parte acessória, auxiliando a ora Recorrente na sua defesa.
23. Entendendo-se que inexiste qualquer interesse litisconsorcial necessário ou voluntário entre a Recorrente/lesante e a sua Seguradora, como temos vindo a defender, e como tal a Seguradora não poder ser demandada como parte principal por não ser contitular da relação material controvertida, mas sim sujeito passivo de uma relação jurídica (contrato de seguro) que é conexa com a relação material controvertida,
24. Nunca poderia deixar de se ter como justificada a intervenção acessória da seguradora, â luz do artigo 272.º, como auxiliar da alegada Recorrente/lesante, com vista a uma futura acção de regresso contra a mesma, e por forma a Recorrente a ser indemnizada pelos prejuízos que venha a sofrer com a perda da demanda.
25. Não tendo qualquer relevância o facto da ora Recorrente ter requerido o chamamento da ora Seguradora por via da intervenção principal provocada, pois, nos termos do disposto nos artigos 5.º, 7.º e 567.º, na eventualidade do incidente de intervenção de terceiro ter sido indevidamente qualificado, pode o requerimento de intervenção principal provocada ser convolado oficiosamente para incidente de intervenção acessória.
Nestes termos, e sempre com o mui douto suprimento de v. Exas., deverá o presente recurso ser julgado procedente, revogando-se o Douto Despacho recorrido, deferindo-se o incidente de intervenção principal deduzido pela ora Recorrente.
Termos em que farão V. Exas. a costumada JUSTIÇA!».
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Não houve contra-alegações.
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Cumpre decidir.
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II - Os Factos
O despacho recorrido é do seguinte teor:
«Do incidente de intervenção principal provocada suscitado pela também interveniente principal E:
A interveniente E no seu articulado veio deduzir o incidente de intervenção (principal) provocada da companhia de seguros para quem transferiu a responsabilidade resultante de quaisquer danos decorrentes das operações de agente transitário ou transitário transfronteiriço por mar, ar e terra (...) bem como de operador de contentores.
Alega, em síntese, que caso venha a concluir-se pela sua responsabilidade na ocorrência dos factos descritos na petição inicial então essa responsabilidade está transferida para uma empresa seguradora, sendo a mesma responsável pelo pagamento da indemnização peticionada.
Cumpre apreciar.
Resulta do artigo 267.º, n.º 1 do Código de Processo Civil que qualquer das partes pode chamar a juízo os interessados com direito a intervir na causa, seja como seu associado, seja como associado da parte contrária.
Tem-se discutido se a faculdade de petição de intervenção principal de terceiro é reservada às partes primitivas da causa ou se também se estende aos intervenientes por via de chamamento anterior.
A doutrina tem entendido que tal faculdade não se estende aos intervenientes principais por via de chamamento anterior, excepto nos casos previstos no artigo 274.º, n.º 3 do Código de Processo Civil, norma que é insusceptível de aplicação analógica1.
Salvador da Costa2 dá-nos conta da existência de um acórdão que entendeu em sentido positivo mas apenas porque essa intervenção em duplo grau se destinava a assegurar a legitimidade das partes, o que manifestamente não se verifica no vertente caso uma vez que não estamos no âmbito de seguros obrigatórios e a relação contratual estabelecida entre a ora requerente e a sua seguradora é estranha à presente lide.
Destarte resulta claro que assumindo a requerente E, Limitada o estatuto processual de interveniente principal, nos termos do disposto no artigo 267.º, n.º 2 do Código de Processo Civil, não tem legitimidade para requerer nova intervenção principal provocada, nos termos requeridos.
À luz do acima exposto, decido indeferir o pedido de intervenção principal deduzido por E.
Notifique ».
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III - O Direito
A questão que se discute no presente recurso jurisdicional é esta: Pode um chamado pelo incidente de intervenção principal provocada fazer intervir outrem, como seu associado, ao abrigo de igual incidente (art. 267º do CPC)?
Podia a interveniente principal “E” provocar a presença, a seu lado na acção, da sua Seguradora, também pela força do mesmo incidente de intervenção principal?
Como é sabido, uma vez admitido o incidente e tendo o chamado intervindo no processo, passa a figurar como parte principal, a ponto de, inclusive, a sentença constituir caso julgado em relação a ele (art. 270º, nº1, CPC). Portanto, o chamado nesse caso é um interessado directo e, na qualidade de réu (portanto, parte principal), supre a ilegitimidade passiva, a ponto de poder vir a ser condenado na respectiva acção em que intervém.
A intervenção principal implica, por isso, uma modificação subjectiva da instância mediante a constituição processual de um novo autor ou um novo réu3, circunstância que se revela excepcional à regra da imutabilidade da instância consagrada no art. 212º, nº1, do CPC. E tal como está configurado o art. 267ºdo CPC, este incidente tanto cobre os casos de litisconsórcio necessário, como o voluntário4.
Pois bem. A lei processual, no quadro do regime dos incidentes da instância, no art. 274º, nº3, do CPC, apenas prevê expressamente que o chamado possa suscitar sucessivamente o chamamento de terceiros, seus devedores em via de regresso, nas hipóteses do art. 272º do CPC, isto é, quando o primitivo interveniente (parte acessória/auxiliar) tiver sido chamado pelo réu (parte principal ab origine). Em tal hipótese, efectivamente, o chamado pode sucessivamente suscitar o chamamento de terceiros (art. 274º, nº3, do CPC). Cabe na previsão desta hipótese o caso do chamamento feito pelo titular de um direito de regresso, por exemplo, contra uma seguradora com a qual haja celebrado um contrato de seguro de responsabilidade civil.5
Partindo desta peculiaridade, há quem defenda que a intervenção principal sucessiva não é possível, por não se verificar similitude justificativa e por o caso ser insusceptível de aplicação analógica6. Ou seja, não se transporia para o regime da intervenção principal um modelo que é próprio e específico da intervenção acessória.
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E, nós, o que diremos?
Duas coisas; uma em abstracto, outra em concreto.
Em abstracto, nós pensamos que nada obsta à possibilidade de intervenção provocada sucessiva requerida pelo terceiro (interveniente) e não apenas pela primitiva parte.
Ditam-na, antes de mais nada, razões de economia processual. Desse modo se vai evitar, porventura, uma nova acção contra essa outra pessoa.
Depois, tendo podido a acção ser movida, “ab initio” contra mais do que um devedor (situação de condevedoria), não se vê motivo lógico para pensar que não possa esse condevedor estar no processo pela mão da interveniente. Não há razão para ser permitida a sua presença a partir do início e não ser permitida a sua entrada já no decurso da instância.
Por outro lado, se a interveniente é, como se disse, uma parte principal, não se vê que possa ter menos poderes que qualquer réu primitivo. Isto é, se o primitivo réu podia pedir a intervenção (art. 271º, nº2, CPC), de igual poder haverá de dispor o primitivo interveniente, pois comunga da mesma qualidade de parte principal de réu.
E o facto de o CPC ter previsto o chamamento sucessivo da intervenção acessória (art. 274º, nº3) e não ter consagrado expressamente essa possibilidade para a intervenção principal sucessiva representará alguma intencional vontade legislativa negatória? Terá isso verdadeiro significado?
Segundo uma certa perspectiva, dir-se-ia que a distinção feita pelo Código representa a marca do pensamento do legislador: ele não teria querido que tal possibilidade fosse consagrada para a intervenção principal provocada em 2º grau.
Todavia, nós não comungamos dessa opinião.
Não estar consagrada não equivale a dizer ter sido proibida. A justificação para aquela previsão reside, precisamente, no facto de o caso representar uma intervenção acessória. Quer dizer, porque o 2º chamado é simplesmente “auxiliar” da defesa do interveniente acessório, ele nem sequer é condenado na primeira acção; “apenas fica vinculado, em regra, a aceitar os factos dos quais derivou a condenação do primitivo réu propriamente dito, isto é, o que implementou o chamamento”7, a invocar em ulterior acção de indemnização (art. 274º, nº4, CPC). Se essa possibilidade não fosse prevista em tais termos, pareceria que o réu que fosse condenado teria que demandar (como réu) aquele que na acção é interveniente acessório com todos os riscos inerentes à prova e dos factos que a este impute nessa acção ulterior e o mesmo se diz quanto à dinâmica da relação entre o 1º interveniente acessório e 2º interveniente acessório ou sucessivo. Foi por isso mesmo que o legislador sentiu a necessidade de consagrar expressamente tal possibilidade.
Mas se o afirmou o legislador em tais termos e para esse incidente, já não precisava de o fazer no tocante à intervenção principal provocada, porque nessa qualidade todos acabam por ser réus, podendo desde logo ser condenados na acção em que intervêm8.
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E o caso concreto, que solução há-de merecer?
O art. 267º, n. 1 do CPC, o único que aqui interessa invocar, reza assim: “Qualquer das partes pode chamar a juízo os interessados com direito a intervir na causa, seja como seu associado, seja como associado da parte contrária”.
Duas notas se extraem, desde logo, da norma:
a) A intervenção em causa implica uma associação do chamado a uma das partes.
b) A presença do terceiro é feita a título de parte principal (daí a designação de “intervenção principal”). Ou seja, deixa de ser terceiro, para passar a parte principal. Significa que se opera uma cumulação da apreciação da relação material controvertida entre as partes primitivas com a apreciação da relação jurídica própria do interveniente, substancialmente conexa com a primeira, “conexão essa que era susceptível de desencadear, logo de início, um litisconsórcio ou uma coligação”9.
Ora, assim sendo, se a situação material de que depende a intervenção permitiria a existência de um litisconsórcio voluntário ou necessário desde o início, de modo a que, com a sua presença, por exemplo, o chamado pudesse ser, tal como o primitivo réu, condenado na acção, então, a contrario, a inexistência desse litisconsórcio impedirá o chamamento.
E isto acontece, por exemplo, nos casos em que as posições de chamante e chamado têm origem em relações jurídicas distintas relativamente ao autor e “seja de excluir a existência de qualquer ligação por via de acto ou facto jurídico entre credor e o garante, v.g., quando o direito de regresso, a caracterizar exclusivamente pelo réu, possa resultar de uma mera responsabilidade baseada em subcontrato, numa relação de contratos em cadeia ou em evicção”10.
Por isso se diz que “A intervenção principal, espontânea ou provocada, não é admissível se forem contrapostos os interesses substantivos ou processuais do chamado e da parte ao lado de quem se pretende que intervenha…”11.
Ora bem. O art. 271º, nº2, do CPC admite que o chamamento tenha como fim a condenação na satisfação do direito de regresso que ao chamado/chamante possa vir a assistir. E, aparentemente, o caso concreto parece estar coberto por este dispositivo, e não pela intervenção acessória prevista no art. 272º do CPC. Então, pelo que se disse atrás, estando o interveniente “E” na qualidade de réu naquelas condições, a fattispecie do art. 271º, nº 2 assenta-lhe bem.
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E aqui abrimos um breve parêntesis para se compreender um pouco melhor o fenómeno.
No regime legal que institua um seguro obrigatório, a acção deve ser proposta apenas contra a seguradora se o pedido se contiver dentro dos limites da garantia do seguro. Aí, não há propriamente solidariedade (nem litisconsórcio necessário passivo). Para alguns, o que parece haver é um direito de sub-rogação: o causador do sinistro não paga a indemnização; paga-a a seguradora, mas fica sub-rogada nos direitos do sinistrado12.
Dito de outra maneira, o lesado é nesse caso titular de um direito de acção directa contra a seguradora13, que é próprio precisamente de um seguro obrigatório de responsabilidade civil, mas que não se ajusta já aos casos de seguro voluntário e facultativo14. Ou seja, o seguro não abre sempre a porta à acção directa do lesado apenas contra a seguradora. Na verdade, nos casos de seguro facultativo, não pode o lesado exigir a prestação directamente da Companhia de Seguros.
Mas, o caso parece mudar de figura se o seguro é facultativo ou até nos casos em que, mesmo obrigatório, se verificarem na prática determinadas situações15. Aí, a acção pode ser movida contra ambos e se se der o caso de o segurador ter prestado a indemnização directamente ao lesado pode mover acção de regresso contra ele, causador do sinistro. Acção de regresso que até se chega a reconhecer ao próprio segurado se ele mesmo tiver pago a indemnização ao terceiro, conforme se viu já defender16.
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Então, parece ser de solidariedade a responsabilidade existente entre seguradora e segurado nos casos de seguro facultativo, como é este, o que permite concluir que se está perante um listisconsórcio passivo, a ser resolvido pela via da intervenção principal (em que o interveniente pode ser parte principal) e não pela intervenção acessória do art. 272º.
Note-se que “E” só é interveniente ao abrigo do art. 67º do CPC (cfr. 267º, nº 2, do CPC), com fundamento, portanto, na circunstância de, face à contestação da primitiva ré, o autor ter ficado com dúvida fundamentada sobre o sujeito da relação material controvertida17. Não fosse esse o caso, então a intervenção talvez não devesse ser a principal, para passar a ser a acessória, face à dissemelhança das relações jurídicas controvertidas.
Ora, admitida a intervenção e assumida pela “E” a posição de ré (embora suscitando a sua própria ilegitimidade) cai por terra o argumento da diversidade de relações jurídicas controvertidas como motivo para se impedir o incidente. Ou seja, aquilo que inculcaria razão para a subsunção ao art. 272º do CPC aqui não existe e antes permite subsumir o caso ao art. 267º (na intervenção principal provocada de 1º grau) e ao art. 271º, nºs 1 e 2, do mesmo Código (na intervenção principal de 2º grau ou sucessiva da Seguradora provocada pela “E”). Podendo a Seguradora intervir desde o início na acção que fosse proposta contra a “E”, por ter um interesse igual ao desta, também da mesma maneira é admissível a sua intervenção principal provocada18
Vale dizer, em suma, que no caso em apreço podia a “E”, como interveniente principal provocada pelo lado passivo, requerer por seu turno a intervenção principal da sua Seguradora19.
Em nossa opinião, portanto, e salvo melhor opinião, não andou bem o despacho recorrido.
***
IV- Decidindo
Face ao exposto, acordam em conceder provimento ao recurso e revogar o despacho recorrido, deferindo-se, em consequência, o pedido de intervenção principal provocada deduzido por “E” contra a “F”.
Custas pela parte vencida a final.
TSI, 03 de Abril de 2014
José Cândido de Pinho
Tong Hio Fong
Lai Kin Hong

1 Neste sentido vide Salvador da Costa in Os Incidentes da Instância, 4.ª Ed. Almedina, pág. 109.
2 In Ob. Cit. Pág. 109.
3 José Lebre de Freitas, Código de Processo Civil anotado, Vol. 1º, 2ª ed., pág.612.
4 Teixeira de Sousa, Estudos sobre o Novo Processo Civil, Lex, pág. 182.
5 Neste sentido, v.g., Miguel Teixeira de Sousa, Estudos sobre o Novo Código de Processo Civil, 2ª ed., pág. 179-180. Também Abílio Neto, CPC anotado, 22ª ed., anotação 2ª ao art. 332º.
6 Salvador da Costa, Os Incidentes da Instância, 4ª ed., pág 109. Na jurisprudência comparada, Ac. RP, de 15/01/2008, Proc. nº 0725501.
7 Salvador da Costa, ob. cit., pág. 144.
8 De resto, na jurisprudência comparada existe um aresto em que se admite expressamente a possibilidade de o interveniente principal suscitar sucessivamente outro incidente de intervenção principal provocada. Trata-se do acórdão da Relação de Lisboa, de 22/02/2001, no Processo nº 11334/2000 (Desembargador Sousa Grandão).

9 Abílio Neto, C.P.C. anotado, 21ª edição, pag. 491.
10 Na jurisprudência comparada, ver Ac. R. C., de 29.03.2006,in C.J. 2006, 2º, 273. Teixeira de Sousa, ob. cit., pág. 180.
11 Na jurisprudência comparada, ver Ac. STJ, de 15.02.2007, CJ, 2007, 1º, 72. Na RAEM, ver Ac. TSI, de 9/06/2011, Proc. nº 32/2011.
12 Américo Marcelino, “Acidentes de Viação e responsabilidade Civil”, 4ª ed., Petrony, 1998, págs. 404-406 e 434
13 Margarida Lima Rego, “Contrato de Seguros e Terceiros – Estudos de Direito Civil”, Coimbra Editora, pág. 673
14 Autora e ob. cits. pág. 674.
15 Ver os casos citados em “Contrato de Seguro – Notas práticas”, Quid Juris, pág. 99 e sgs., de João Valente Martins.
16 Margarida Lima Rego, ob. cit., pág. 651 e Ac. da RP, de 31/01/1973 aí citado.
17 Sobre o assunto, com interesse, ver na jurisprudência comparada, o Ac. RL, de 13/05/2008, Proc. nº 7651/2007.
18 Neste sentido, o Ac. da RP, de 27/11/2008, Proc. nº 0836640.
19 No sentido de que o incidente de intervenção principal provocada é o incidente adequado para a ré assegurar a presença na causa da seguradora para a qual havia transferido a responsabilidade civil emergente dos danos causados a terceiros por sinistro decorrente da sua actividade de transportadora, ver Ac. RL, de 7/11/2006, Proc. nº 7576/2206-7.
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