打印全文
Proc. nº 446/2011
(Recurso Cível e Laboral)
Relator: Cândido de Pinho
Data do acórdão: 27 de Março de 2014
Descritores:
-Reconvenção
-Ónus de prova

SUMÁRIO:

I - Cabe ao réu/reconvinte fazer a prova dos factos constitutivos do direito por si invocado na reconvenção (art. 335º, nº1, do C.C.).






Proc. nº 446/2011

Acordam no Tribunal de Segunda Instância da R.A.E.M.

I - Relatório
“A, Limitada”, com sede na Av. XX, Edif. XX, nº XX, XXº andar, “XX”, Macau, instaurou no TJB (Proc. nº CV1-09-0084-CAO) acção declarativa com processo ordinário contra B, com os demais sinais dos autos, pedindo a condenação deste no pagamento de Mop$ 50.001,00 e juros.
*
O Réu, na sua contestação, defendeu-se por excepção (matéria, entretanto, apreciada no despacho saneador de que não foi interposto recurso), por impugnação e deduziu reconvenção.
*
Foi proferida sentença, que julgou improcedentes por não provadas a acção e a reconvenção, absolvendo reciprocamente as partes dos respectivos pedidos.
*
Contra essa sentença veio o réu recorrer jurisdicionalmente, em cujas alegações formulou as seguintes conclusões:
«1a A dogmática basilar inerente a qualquer contrato, ancora na XX Servanda, ou seja, os contratos são para serem cumpridos nos exactos termos que as partes entre si acordaram, sob pena de incorrerem em responsabilidade civil contratual nos termos do princípio geral consagrado no artigo 798.º do Código Civil.
2a Assim sendo, qualquer contrato terá de observar o Princípio da Pontualidade art. 762. nº 1, Princípio da Boa-Fé art. 406º nº 1 e Princípio da Integralidade do art. 763º todos do Código Civil de Macau.
3a In casu, provado ficou, que o Autor não cumpriu a sua prestação resultando provado igualmente, os prejuízos para o ora Réu/Reconvinte, decorrentes desse incumprimento.
4a E esta factualidade decorre da douta Sentença, em virtude das respostas dadas aos quesitos 6.º, 7.º, 8.oe 9.º da Base Instrutória! ».
5ª Verificando-se o dever de indemnizar no facto traduzido pelo inadimplemento da Autora na prestação principal _ obras_ e secundaria _ na entrega do aludido projecto de prevenção contra incêndios.
6a O Réu/Reconvinte, ora Recorrente, sofreu prejuízos decorrentes desse incumprimento, sendo este doloso ou negligente, é um facto objectivo e provado nos autos!
7a Sendo esta a única razão, porque se efectuaram os pagamento das rendas entre o período compreendido de 12 de Junho e 15 de Dezembro de 2007, no montante total de HKD$490.000,00.
8ª E, salvo respeito por opinião contrária, o Réu não teria suportado tais despesas se de antemão soubesse que o Autor se furtaria ao cumprimento da prestação a que se vinculara!
9ª E, este é um raciocino lógico, não existindo qualquer outra razão para o prejuízo sofrido pelo Réu, e nem tendo sido avançada, o que se configura numa mera hipótese académica, que outro beneficio poderia o Réu ter obtido decorrente do pagamento das referidas rendas, sem poder explorar o Estabelecimento que estava a preparar para abrir nos termos legais!
Não lhe competindo de resto tal obrigação!
10a Ao Réu competia antes trazer ao pleito os factos e as provas do incumprimento do Autor relativamente ao contrato celebrado com o Réu.
E, assim o fez!
11ª Contribuindo para uma justa solução na composição do litígio!
12a Considerando nestes termos, injusta a decisão recorrida por não justificada, proferida somente ao abrigo da livre convicção do julgador sem ser justificada com os factos que concorreram para tal Decisão, sendo certo que se verificam todos os pressupostos que integram o dever de indemnizar com base na responsabilidade civil:
- ilicitude da conduta, traduzido no inadimplemento da obrigação principal do Autor;
- culpa, quer seja a título doloso ou negligente a própria sentença diz: “Embora não tivesse sido obtida a aprovação do projecto relativo à área de prevenção contra incêndio no estabelecimento onde o R. pretendia nele instalar uma empresa de Bar e Karaoke, e sendo essa falta de aprovação da vistoria imputável à A.”
- dano, provado está que o Réu pagou rendas no montante de HKD$490.000,00., sem poder explorar o referido Estabelecimento Comercial.
- nexo causal entre facto e o prejuízo, basta concorrer um facto adequado à produção do dano para que exista o dever de indemnizar de acordo com o douto Acórdão da Relação de Lisboa, em 26 de Setembro de 1996, CJ, 1996,4º-100.
13a Na ausência de fundamentação relativamente a hipotéticos benefícios que o Réu obteve com os pagamentos das rendas efectuados, e não se sabendo quais poderiam ser...! mas, provando-se a causa de pedir do pedido reconvencional e reunidos todos os pressupostos legais para se configurar o direito de indemnizar, mantém o Réu o seu pedido e necessária condenação do Autor no dever de o indemnizar.
Nestes Termos, terá de proceder o presente recurso com a consequente revogação da sentença recorrida, pedindo-se a este Tribunal “Ad quem” que ao abrigo da disposição do artigo 630.º do Código de Processo Civil conheça do objecto do presente recurso.
Com tal decisão será feita, como é timbre deste Tribunal Justiça!».
*
A autora respondeu ao recurso nos seguintes termos conclusivos:
«I. Os sujeitos processuais do processo in casu, são bem conhecidos no mercado de Macau: A Limitada e o Senhor B, duas personalidades do burgo e, curiosamente, familiares (por afinidade)...
II. E foi tendo em conta essa relação de família que o Recorrido se permitiu “dar fiado” ao Recorrente e não lhe ter pedido o pagamento dos serviços em adiantado; E foi por isso que teve necessidade de se socorrer ao TJDB para lhe ser pago quanto dera “fiado”!!!
III. E foi a falta de cumprimento de seriedade comercial do Recorrente que ocasionou que o Recorrido não lhe tivesse continuado a prestar serviços, maxime, a não entrega do Projecto em razão de estar completamente “escaldado” com as constantes desculpas apresentadas pelo Recorrente para não pagar o material que fora colocado na sua loja.
IV. Espantoso é que o Recorrente, já com a prática do “espírito de viver fiado” pretende, assim, com o presente recurso ganhar centena de milhares de patacas à conta de terceiros, especialmente tendo em conta que a loja em causa esteve a ser explorada e, daí, ter sido multada por duas vezes pelos Serviços de Turismo durante o período em que alega ter estado encerrada!!!
V. O Recorrente assume a posição de quem exige o cumprimento de obrigação alheia mas se furta a cumprir a sua própria: Exige o prato da comida mas não quer pagar a refeição!!!
Nestes termos, e tendo em conta que a livre convicção do julgador está bem alicerçada em material probatório produzido pelas partes, se requer a V. Excelências se dignem considerar improcedente o recurso porquanto o Recorrente se limitou a pôr em causa a livre convicção do julgador sem que tivesse fundamentado devidamente tais razões fazendo, assim, a vossa habitual Justiça!».
*
Cumpre decidir.
***
II - Os Factos
A sentença deu por assente a seguinte factualidade:
«O R. pretendia explorar numa fracção autónoma, sita na Avenida XX, n.º XX, Edifício XX, Loja XX, r/c e sobreloja, em Macau, uma empresa de Bar e Karaoke denominada C. (A)
Em Junho de 2007, o R. contactou o responsável da administração da A., D, para que a mesma lhe prestasse serviços na área da Prevenção Contra Incêndio. (B)
O Director-Geral da A. e um assessor da mesma deslocaram-se ao domicílio profissional do R. para combinarem os trabalhos a realizar e o respectivo preço. (C)
Ficou acordado entre as partes que pelo serviço prestado pela A. seriam pagas trinta mil patacas. (D)
A A. comunicou aos serviços competentes que deixava de se responsabilizar pelas eventuais obras feitas na fracção aludida em A). (4º)
A aprovação do projecto relativo à área de Prevenção Contra Incêndio não foi obtida uma vez que o mencionado projecto nunca foi entregue pela A. junto da Direcção dos Serviços de Turismo. (6º)
A falta de aprovação da vistoria do estabelecimento “C Bar e Karaoke” ficou a dever-se ao facto de a A. não ter entregue o projecto relativo à área de Prevenção Contra Incêndio, atempada e validamente. (7º)
Entre 12 de Junho de 2007 e 15 de Dezembro de 2007, o R. pagou rendas da fracção aludida em A) num total de MOP$504,700.00. (8º)
Por falta do projecto de prevenção contra incêndio, não era dada ao R. a respectiva licença de exploração. (9º)»
***
III - O Direito
A acção foi intentada pela autora com o propósito de obter a condenação do réu no pagamento dos trabalhos por si realizados na prevenção contra incêndios e análise de acústica, numa fracção destinada pelo réu a um estabelecimento de “bar e karaoke” designado “C Bar e Karaoke”.
O Réu, por seu turno, além de se defender por impugnação, deduziu reconvenção contra a autora, invocando prejuízos no valor de MOP$ 504.000,00, decorrentes da não obtenção da licença de exploração do estabelecimento comercial por culpa que imputa à autora (alegadamente, por não ter apresentado o projecto dos bombeiros) e que correspondem ao valor das rendas da fracção pagas.
Foi a acção julgada improcedente por falta de prova da realização dos trabalhos concernentes à assessoria na área da prevenção contra incêndios, e esse julgamento não está agora em causa.
Improcedente foi também a reconvenção, com o fundamento de não ter sido verificado o nexo de causalidade legalmente previsto e necessário à gestação da obrigação de indemnizar. A argumentação foi esta: embora tenha ficado provado o pagamento das rendas por parte do réu, e mesmo assente que não foi obtida a aprovação do projecto relativo à área de prevenção contra incêndio no referido estabelecimento, não ficou, por outro lado, demonstrado se esta teria sido a única e determinante razão que levou o R. a permanecer na fracção autónoma e a pagar as respectivas rendas.
Mas, o recorrente acha que a sentença não pode manter-se. E diz: não teria suportado as rendas que pagou durante cerca de seis meses se soubesse de antemão que o autor se furtaria ao cumprimento da prestação contratual a que se vinculara.
Não tem razão, salvo o devido respeito. O facto de a autora não ter apresentado o projecto de prevenção contra incêndio, por si só, não é causa de prejuízos. Imagine que a autora tinha apresentado esse projecto e que, mesmo assim, era indeferido o pedido de concessão de licença de exploração. Podia o recorrente pedir indemnização pelo valor das rendas pagas em tais circunstâncias? Em princípio, não.
O facto de o R. ter pago a renda foi indiferente ao autor do projecto contratado. Para este, tanto faria que o réu estivesse já com o estabelecimento contratado e em exploração ou com expectativas de o vir a contratar. Para o réu se poder fazer pagar em sede de indemnização pelo valor das rendas seria necessário que estivessem provados factos que revelassem duas coisas:
a) Em primeiro lugar, que o réu não teria suportado tais despesas se soubesse que o autor se furtaria ao cumprimento da prestação a que se vinculara!
Isso, todavia, não se provou! Quer dizer, não houve um único facto alegado e submetido ao questionário que fizesse essa relacionação, que estabelecesse essa conexão.
b) Em segundo lugar, e talvez de modo decisivo, que se provasse que durante aquele período, entre 12/06/2007 e 15/12/2007, o réu não pôde ter em funcionamento o estabelecimento.
Na verdade, podia bem acontecer que ele, réu/reconvinte (ora recorrente) já estivesse a gerir o negócio quando contratou a autora. Isso não é alegado, nem dos autos nada resulta que o inculque ou o desminta. Podia dar-se o caso de, no momento da contratação, o réu já estar a explorar o negócio. E nessa hipótese, se admitirmos como possível que ele o continuou a explorar enquanto a autora ia fazendo o projecto para posterior submissão à aprovação e consequente licença, então a circunstância de a autora não o ter concluído e submetido à aprovação pela entidade administrativa competente já não é causa de prejuízos.
Aliás, a este respeito, é até possível que isso mesmo tenha acontecido, se for de considerar aquilo que a autora, em sede de resposta ao recurso, afirma ao dizer, precisamente, “…que a loja em causa esteve a ser explorada, e daí, ter sido multada por duas vezes pelos Serviços de Turismo durante o período em que alega ter estado encerrada”.
Neste sentido, apenas temos por seguro que a falta do projecto de prevenção contra incêndio era motivo para não ser concedida a licença (resposta ao quesito 9º). O que, apesar de tudo, não significa que fosse causa de prejuízo (dano emergente) correspondente ao período em que o recorrente pagou renda até ceder a sua posição contratual, conforme invocou no art. 29º da contestação.
A prova de falta do dano está, aliás, muito clara no seguinte: no artigo 9º da Base instrutória era quesitado se durante o período acima referido o réu não teria podido explorar o estabelecimento por falta do projecto. E o que ficou provado? Apenas que, sem projecto não podia aceder à licença. Isso, contudo, não é o mesmo que dizer que no período a que se reporta o valor das rendas pagas ele “não pôde explorar o estabelecimento”.
Portanto, estamos de acordo com a conclusão da sentença, ainda que com base num fundamento diferente. Quer dizer, a improcedência não se deve tanto à inexistência da falta de nexo causal entre facto (omissão, no caso em apreço) e dano, mas sim à falta de prova do próprio dano.
Sendo assim, não conseguiu o réu/reconvinte fazer a prova dos factos constitutivos do direito invocado por si na reconvenção (art. 335º, nº1, do C.C.). E, por conseguinte, a improcedência impõe-se, não a partir do art. 477º do CC, que se refere à responsabilidade por factos ilícitos (responsabilidade extracontratual), mas por falta de dano (art. 556º e 558º do CC).
Basta isto para a reconvenção ser improcedente.
***
IV - Decidindo
Face ao exposto, acordam em negar provimento ao recurso, confirmando a sentença recorrida.
Custas pela recorrente.
TSI, 27 de Março de 2014

_________________________
José Cândido de Pinho
(Relator)

_________________________
Lai Kin Hong
(Primeiro Juiz-Adjunto)

_________________________
João Augusto Gonçalves Gil de Oliveira
(Segundo Juiz-Adjunto)