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Processo nº 181/2009
(Autos de recurso contencioso)

Data: 3/Abril/2014

Assunto: Indeferimento tácito
Competência para atribuição de direito de uso prolongado de campa
Rejeição de recurso contencioso por falta de objecto

SUMÁRIO
    - A formação de acto de indeferimento tácito pressupõe que a entidade a quem seja dirigida a pretensão tem competência material para apreciar e decidir sobre a questão.
    - Salvo nos casos em que o Chefe do Executivo pode conceder, a título excepcional, o direito de uso prolongado de sepultura a determinada individualidade em virtude de factos considerados relevantes, nomeadamente, dos seus méritos pessoais, contributo para a sociedade, serviços prestados à RAEM ou por ter a vida em defesa do interesse público, ao abrigo do disposto no artigo 14º do Regulamento Administrativo nº 37/2003, fora daquelas situações, já não cabe ao Chefe do Executivo apreciar as restantes pretensões formuladas pelo requerente.
    - Carecendo o Chefe do Executivo de competência para tal, quer à luz do Regulamento dos Cemitérios Municipais de 1961 quer do Regulamento Administrativo nº 37/2003, o silêncio sobre tal matéria não confere ao recorrente o direito de presumir indeferida a sua pretensão para efeitos de recurso contencioso, daí que, carecendo o recurso de objecto, deve o mesmo ser rejeitado, nos termos do artigo 74º, nº 1 e 46º, nº 2, alínea b), ambos do Código do Processo Administrativo Contencioso.
   
O Relator,

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Tong Hio Fong

Processo nº 181/2009
(Autos de recurso contencioso)

Data: 3/Abril/2014

Recorrentes:
- A, B, C, D e E, na qualidade de sucessores habilitados do recorrente falecido XXX

Entidade recorrida:
- Chefe do Executivo da RAEM

Acordam os Juízes do Tribunal de Segunda Instância da RAEM:

I) RELATÓRIO
XXX, residente da RAEM, melhor identificado nos autos, veio interpor recurso contencioso de anulação do acto tácito de indeferimento do requerimento por si apresentado ao Exmº Chefe do Executivo da RAEM, no dia 21.10.2008, no qual foi requerida a reabertura do processo respeitante à sua mulher já falecida e, consequentemente, o prosseguimento do pedido apresentado à luz do Regulamento dos Cemitérios Municipais de 1961 então em vigor, destinado à atribuição de um direito de arrendamento perpétuo de campa, em cujas alegações formulou as seguintes conclusões:
1. O acto tácito é uma fictio juris que tem por finalidade imediata a defesa do administrado contra a passividade da Administração e cuja formação depende dos seguintes requisitos: i) formulação de uma pretensão por um administrado; ii) dever legal de proferir uma decisão por parte da entidade a quem a pretensão é dirigida; iii) ausência de decisão até ao termo do prazo fixado na lei para esse efeito; e iv) da qual resulta uma lesão autónoma de direitos e interesses legalmente protegidos do particular.
2. É contenciosamente recorrível o acto tácito de indeferimento resultante da falta de decisão expressa, dentro do prazo legal, quanto à renovação de uma pretensão que não se encontre abrangida pela situação de excepção prevista no número 2 do artigo 11º do CPA.
3. A decisão da Administração de indeferimento tácito quanto à nova pretensão apresentada do recorrente, traduz-se numa lesão de direitos e interesses legítimos protegidos pelo particular, e bem assim, de toda a família da Falecida.
4. A lei só dispõe para o futuro.
5. A administração promoveu na família da Falecida através do envio de várias comunicações escritas, perspectivas optimistas quanto à futura aquisição de um direito; todavia, no final indeferiu um pedido legítimo, fundamentado na aplicação retroactiva de uma lei que não é aplicável, atendendo ao momento da verificação dos factos.
6. O dever de decisão da Administração implicava, no presente caso, não só uma apreciação dos pressupostos em que se baseou a renovação da pretensão, atendendo às alterações das circunstâncias fáctico-jurídicas, mas também uma ponderação sobre a matéria nova, constante das considerações aduzidas no requerimento de 21 de Outubro de 2008 do ora recorrente.
7. O acto recorrido padece do vício de violação de lei, violando nomeadamente o disposto no artigo 5º do CPA, conjugado com o disposto no artigo 114º do mesmo diploma legal.
8. Na cultura religiosa dos familiares da Falecida, a memória cultiva-se por referência a um determinado lugar, sendo fundamental para a preservação dessa memória, suporte da personalidade moral, que o sítio onde aquela repousa se mantenha intacto, tendo em conta os usos, os costumes, as convicções e as práticas pelos os quais esse culto se expressa.
9. O recorrente apresentou, em 17 de Fevereiro de 2009, nos termos do disposto nos artigos 141º e seguintes do CPAC, providência preventiva ou conservatória não especificada, destinada ao decretamento judicial da abstenção, por parte do IACM, de qualquer acto, decisão, diligência ou actividade administrativa, no sentido de ordenar a exumação oficiosa da sepultura da Falecida, até decisão definitiva, judicial e administrativa, do caso sub judice.
Conclui, pedindo que se conceda provimento ao recurso e anulado o acto recorrido nos termos do artigo 124º do Código do Procedimento Administrativo e da alínea d) do nº 1 do artigo 21º do Código do Processo Administrativo Contencioso.
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Regularmente citada, pela entidade recorrida foi apresentada a contestação constante de fls. 87 a 138 cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais, pugnando pela rejeição do recurso, e subsidiariamente, pelo não provimento do recurso, por não verificação de quaisquer vícios no acto recorrido.
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No uso da faculdade prevista no artigo 68º do Código do Processo Administrativo Contencioso, apresentou o recorrente alegações facultativas, tendo formulado as seguintes conclusões:
A) No dia 14 de Dezembro de 2001, a CMMP deliberou aprovar o Regulamento Interno, cuja concretização dependeria da disponibilidade dos cemitérios e da aprovação da Instituição.
B) E, nos termos do qual, seriam admitidos, anualmente, 10 (dez) pedidos de arrendamento perpétuo de sepulturas, procedendo-se a sorteio no caso de o total dos pedidos apresentados excedesse o máximo estabelecido.
C) Ora, o primeiro requerimento, deu entrada na CMMP em 28 de Dezembro de 2001, ou seja, durante a vigência desse Regulamento Interno.
D) Contudo, tal requerimento não chegou a ser considerado no conjunto de pedidos apresentados durante o ano de 2001, por o prazo de candidaturas ao arrendamento perpétuo em sepulturas alugadas correspondente a esse ano alegadamente terminar no dia 19 de Dezembro (nos termos da Informação n.º XXX/SAZV/2001, de 19 de Dezembro de 2001).
E) Encontra-se, pois, por esclarecer o que sucedeu aos pedidos de atribuição de arrendamento perpétuo de campas que deram entrada na CMMP entre os dias 20 e 31 de Dezembro de 2001.
F) Em particular, a razão pela qual o requerimento inicial não mereceu acolhimento ao abrigo do Regulamento Interno, não tendo sido seleccionado no grupo dos vários pedidos que deram entrada durante esse ano de 2001.
G) Estas questões são de particular interesse para o caso sub judice, em especial se for tida em conta a Informação mencionada na Conclusão D) acima, através da qual é possível observar que, no ano de 2001, foram concedidas por arrendamento sepulturas perpétuas, com dispensa de sorteio, por não excederem dez pedidos.
H) Acresce que a análise e decisão do requerimento original tampouco transitou para o(s) ano(s) subsequente(s), já que durante 2002 e 2003 não se realizaram quaisquer sorteios, nem foram concedidas sepulturas de arrendamento perpétuo (cfr. confirmado pelos próprios SAL, Informação n.º XXX/SAL-c/2009, emitida pelo Coordenador, XXX, em 25 de Fevereiro de 2009).
I) Em resultado de um eventual cancelamento do Regulamento Interno, proposto pelo Chefe dos SAL na Informação n.º XXX/SAL/2002, de 23 Agosto de 2003, mas que, na verdade, poderá não ter chegado a ser validamente aprovado, já que em relação a essa proposta somente existe um Despacho, emitido pela Vice-Presidente do Conselho de Administração do IACM, de 11 de Abril de 2003, no qual é mencionado o seguinte: “Já estão a elaborar o projecto do regulamento do cemitério, pode arquivar a presente informação.”
J) Por outro lado, situando-se o indeferimento no âmbito de poderes discricionários da Administração, afigura-se de especial importância o conhecimento concreto das razões que justificam a decisão.
K) A falta de decisão reporta-se ao indeferimento silente de que se recorre, o qual se encontra associado ao requerimento inicial.
L) Não obstante em Dezembro de 2001 – isto é, na data do envio do segundo ofício (com ref. n.º XXX/634/SAL/2002) pelo IACM à família da Falecida – fosse já do conhecimento dos SAL qual era a situação real da concessão de arrendamento de sepulturas perpétuas com que o IACM se confrontava.
M) Jamais foi mencionado por esse Instituto, nas várias comunicações que dirigiu à família de Falecida, durante os anos de 2002 e 2003, e também nunca foi fundamento de qualquer decisão administrativa tomada no âmbito deste processo, a indisponibilidade de campas vagas nos cemitérios públicos de Macau.
N) Entende o ora recorrente, com o devido respeito, que andou mal a Administração ao protelar no tempo a tomada de uma decisão, que criou falsas expectativas em toda a família de XXX quanto ao possível deferimento do primitivo requerimento.
O) Sabendo ab initio que o número de sepulturas que era passível de utilização nos cemitérios municipais era limitado para efeitos de atribuição de um direito permanente de sepultura perpétua.
P) É evidente que o IACM deixou ficar sem qualquer tipo de regulamentação o primeiro requerimento, socorrendo-se, para protelar a tomada de uma decisão, do argumento de que estavam a decorrer estudos relativos ao projecto de um novo regulamento dos cemitérios.
Q) E, no final, limitou-se a informar a família da Falecida que a venda de sepultura perpétua não se encontra contemplada no Novo Regulamento Administrativo datado de 24 de Novembro de 2003, o qual só veio a entrar em vigor já no decorrer do ano de 2004.
R) A título conclusivo, não será demais relembrar, que a discricionariedade da Administração Pública não pode simbolizar, por não ser sinónimo, arbitrariedade, quer relativamente à tomada das suas decisões, quer no que toca à respectiva fundamentação.
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De igual modo, sustentou a entidade recorrida a rejeição do recurso, e subsidiariamente, o não provimento do mesmo.
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Findo o prazo para alegações, o Ministério Público deu o seguinte parecer:
“Sendo objecto do presente recurso o pretenso acto de indeferimento tácito do Chefe do Executivo relativamente ao requerimento formulado pelo recorrente em 21/10/88, atinente à pretensão de reabertura do processo e consequente prosseguimento do pedido destinado à atribuição de um direito de arrendamento perpétuo de campa, questão que haverá, primacialmente, que dirimir prende-se com a existência efectiva, com a formação desse acto.
Para tal, atém do mais, caberá aferir da existência do dever de decidir por parte do órgão a quem a pretensão é dirigida, o que, como é evidente, pressupõe a competência material para o efeito.
No caso, cremos assistir inteira razão à recorrida – cujas judiciosas considerações, a tal propósito, subscrevemos – no sentido de carecer a mesma de competência para a decisão sobre aquela pretensão do recorrente, quer à luz do Regulamento dos Cemitérios Municipais de 1961, quer do Regulamento Administrativo 37/2003.
E, sendo certo que, nos termos do art.º 14º deste último diploma, a recorrida poderia, de facto “… conceder o direito de uso prolongado de sepultura a determinada individualidade em virtude de factos considerados relevantes, nomeadamente dos seus méritos pessoais, contributo para a sociedade, serviços prestados à RAEM ou por ter perdido a vida em defesa do interesse público”, não é menos verdade não ser este o caso, nem ter sido requerido como tal. Aliás, bem vistas as coisas, tal disposição, por si, inculca precisamente a ideia de que, fora daquelas situações específicas, não cabe, de facto, na esfera de competência material do Chefe do Executivo a apreciação dos restantes casos, como o que agora nos ocupa.
Acresce tornar-se, a propósito, inócuo esgrimir com o poder de tutela (o qual, aliás, se encontrará delegado na Secretária para a Administração e Justiça, através das Ordens Executivas 1/2000 e 6/2005): não detendo, como não detém, a entidade recorrida poderes de tutela substitutiva, pode, em sede de recurso tutelar facultativo, revogar actos do IACM, mas não poderá, em princípio, modificá-los ou substitui-los, o que significa, por outras palavras, que aquele poder tutelar não inibe que os actos da entidade tutelada, uma vez praticados, não sejam imediatamente sujeitos a controle jurisdicional, pela via contenciosa.
Por outra banda, as “vicissitudes” eventualmente ocorridas a propósito do encaminhamento, processamento e notificações decorrentes da apresentação do requerimento a órgão incompetente, como terá acontecido ao que o recorrente agora apelida de “direito de petição” não são passíveis de alterar o sistema legal de competências, já que este é de interesse e ordem públicas, tendo como fonte única a lei, não sendo permissíveis a eventuais modificações por parte de qualquer autoridade administrativa.
Em conclusão: o Chefe do Executivo não detinha e não detém competência material para decidir sobre a matéria subjacente à pretensão formulada pelo recorrente, razão por que o “silêncio" sobre tal matéria não faculta o direito de presumir indeferida essa pretensão para efeitos de recurso contencioso, o mesmo é dizer, não se ter formado o pretendido acto de indeferimento tácito sobre a matéria.
Donde, por falta de objecto e de acordo com o previsto na al b) do n.º 2 do art.º 46º, CPAC, haver que rejeitar o presente recurso.
Este, o nosso entendimento.”
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Na pendência do recurso, faleceu o recorrente, tendo sido procedida a habilitação dos sucessores da parte falecida.
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O Tribunal é o competente e o processo o próprio.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas, e têm interesse processual.
Não existe outras nulidades, excepções nem questões prévias que obstem ao conhecimento do mérito da causa.
Cumpre decidir.
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II) FUNDAMENTOS DE FACTO E DE DIREITO
Resulta provada dos elementos constantes dos autos, designadamente do processo administrativo, a seguinte matéria de facto com pertinência para a decisão do recurso:
Em XX.XX.20XX, faleceu a senhora XXX. (cfr. fls. 251 do processo administrativo – 2ª Pasta)
A falecida foi enterrada no dia XX.XX.20XX. (cfr. fls. 248 do processo administrativo – 2ª Pasta)
No dia XX de XX de 20XX, B, na qualidade de filha da falecida, apresentou um requerimento junto da Câmara Municipal de Macau Provisória, visando o arrendamento perpétuo de campas. (cfr. fls. 77 do processo administrativo – 1ª Pasta)
Em Março de 2002, o Chefe dos Serviços de Ambiente e Licenciamento do IACM comunicou que o pedido acima mencionado tinha sido admitido condicionalmente e que o mesmo apenas iria ser objecto de análise no último mês do ano de 2002 conforme o “Regulamento Interno de Arrendamento Perpétuo de Campas Alugadas”. (cfr. fls. 57 do processo administrativo – 1ª Pasta)
Em Dezembro de 2002, o Chefe dos Serviços de Ambiente e Licenciamento do IACM informou a B da situação do seu requerimento de XX de XX de 20XX. (cfr. fls. 80 do processo administrativo – 1ª Pasta)
A 15 de Dezembro de 2003, o Chefe dos mesmos Serviços informou a requerente “…que de acordo com o Regulamento Administrativo publicado no B.O. em 24/11/2003, não vem contemplado a venda de sepultura perpétua. Todavia, de acordo com o artigo nº 14º do capítulo III do mesmo regulamento, (o Chefe do Executivo pode conceder o direito de uso prolongado de sepultura a determinada individualidade em virtude de factos considerados relevantes, nomeadamente, dos seus méritos pessoais, contributo para a sociedade, serviços prestados à RAEM ou por ter perdido a vida em defesa do interesse público). (cfr. fls. 59 do processo administrativo – 1ª Pasta)
Não se conformando com a solução, o recorrente XXX entregou, no dia 10.09.2004, um requerimento dirigido ao Chefe do Executivo da RAEM. (cfr. fls. 60 e 61 do processo administrativo – 1ª Pasta)
O recorrente nunca obteve qualquer resposta verbal ou escrita a este seu pedido.
Em 31.07.2008, foi publicado Aviso no jornal “Ponto Final”, avisando-se os interessados de que determinadas sepulturas, incluindo a da falecida, estavam integradas na lista de sepulturas dos Cemitérios Públicos de Macau e que o termo do prazo legal de inumação de 7 anos terminaria no período compreendido entre 1 de Agosto de 2008 e 31 de Janeiro de 2009. (cfr. fls. 62 a 64 do processo administrativo – 1ª Pasta)
A 21.10.2008, o recorrente apresentou novo requerimento junto do Chefe do Executivo pedindo a reabertura do processo desencadeado por B e, consequentemente, a sua reavaliação à luz do Regulamento dos Cemitérios Municipais de 1961. (cfr. fls. 46 a 56 do processo administrativo – 1ª Pasta)
Decorridos 90 dias contados da dada do referido requerimento, o recorrente ainda não obteve do Chefe do Executivo qualquer resposta verbal ou por escrito.
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Defende a entidade recorrida que o recurso deve ser liminarmente rejeitado com fundamento na falta de objecto, em virtude de o Chefe do Executivo não ter competência para deferir a pretensão do recorrente, daí que não há lugar a formação do pretenso acto de indeferimento tácito.
O recorrente discorda da excepção invocada, entendendo que sendo da competência do Chefe do Executivo da RAEM atender petições e queixas conforme se estipula na Lei Básica, o mesmo tem a obrigação de se pronunciar sobre quaisquer pedidos, isto é, na opinião do recorrente, a formação de acto de indeferimento tácito pressupõe que o órgão competente seja colocado em situação de poder apreciar e decidir a pretensão mediante acto expresso, ainda que o Chefe do Executivo não tenha competência para decidir sobre a questão.
Começamos, então, pela apreciação desta questão levantada pela entidade recorrida, cuja procedência obsta ao conhecimento do mérito do recurso.
A questão que aqui se coloca é saber se o silêncio sobre a pretensão do recorrente dirigida ao Exmº Chefe do Executivo pedindo a reabertura do processo desencadeado pela filha da falecida destinado à atribuição de um direito de arrendamento perpétuo da campa confere ao recorrente o direito de a presumir indeferida, no fundo, é para saber se há ou não aqui a formação de acto de indeferimento tácito.
Preceitua-se no nº 1 do artigo 102º do Código do Procedimento Administrativo que “sem prejuízo do disposto no artigo anterior, a falta, no prazo fixado para a sua emissão, de decisão final sobre pretensão dirigida a órgão administrativo competente confere ao interessado, salvo disposição em contrário, a faculdade de presumir indeferida essa pretensão, para poder exercer o respectivo meio legal de impugnação.”
Tanto na doutrina como na jurisprudência entende-se que a formação de acto tácito de indeferimento, ao abrigo do disposto no artigo 102º do Código do Procedimento Administrativo de Macau, implica a existência de um dever de decidir por parte do órgão a quem a pretensão é dirigida.
Por vezes, ao silêncio da Administração, quando ela tenha o dever de decidir, permite-se que se lhe atribua um efeito de indeferimento tácito.1
O silêncio da Administração gera o indeferimento quando se verifiquem os seguintes pressupostos:
- Haja apresentação de uma pretensão concreta pelo interessado;
- A pretensão seja dirigida ao órgão competente para a decisão;
- O órgão tenha o dever legal de decidir; e
- O órgão competente não profira uma decisão expressa dentro do prazo legal.2
In casu, para se poder presumir que o acto foi tacitamente indeferido, cabe aferir da existência do dever de decidir por parte do órgão a quem a pretensão é dirigida, o qual pressupõe a competência material para o efeito.
No caso vertente, o requerimento do recorrente foi dirigido ao Chefe do Executivo da RAEM.
Terá o Chefe do Executivo competência para decidir a pretensão do recorrente?
Não nos parece, senão vejamos.
Nos termos do artigo 1º dos Estatutos do Instituto para os Assuntos Cívicos e Municipais, aprovados pela Lei nº 17/2001, prescreve que o Instituto para os Assuntos Cívicos e Municipais é uma pessoa colectiva de direito público, com a natureza de instituto, incumbido pelo Governo da RAEM de servir a população nos termos previstos nos Estatutos e nas demais leis e regulamentos aplicáveis.
Por sua vez, nos termos do artigo 13º do Regulamento Administrativo nº 37/2003, verifica-se que compete ao IACM, e não ao Chefe do Executivo apreciar pedidos sobre a utilização de sepultura, gaveta-ossário ou câmara de cinzas.
Mesmo que o presente caso tivesse que ser apreciado à luz do Regulamento dos Cemitérios Municipais de 1961, o Chefe do Executivo também não detinha o dever legal de decidir, porquanto na altura em que deu entrada o pedido de B, em XX.XX.20XX, a competência de atribuir sepulturas perpétuas era da Câmara Municipal Provisória, ao abrigo do disposto nos artigos 25º e 28º do Regulamento dos Cemitérios Municipais de 1961 e artigo 29º da Lei nº 24/88/M, conjugados com a norma prevista no artigo 15º da Lei nº 1/1999 (Lei de Reunificação), segundo a qual os poderes detidos anteriormente pelos órgãos municipais foram transferidos para os órgãos municipais provisórios, os quais passaram a ficar na dependência tutelar da Exmª Secretária para a Administração e Justiça, ao abrigo da Ordem Executiva nº 11/2000.
Por outro lado, não obstante que, a título excepcional, o Chefe do Executivo pode conceder o direito de uso prolongado de sepultura a determinada individualidade em virtude de factos considerados relevantes, nomeadamente, dos seus méritos pessoais, contributo para a sociedade, serviços prestados à RAEM ou por ter a vida em defesa do interesse público, ao abrigo do disposto no artigo 14º do Regulamento Administrativo nº 37/2003, mas não é menos verdade que não foi esse o pedido do recorrente apresentado em 21.10.2008, o que significa que, fora daquelas situações previstas nesse artigo, já não cabe ao Chefe do Executivo apreciar os restantes casos, por falta de competência material para o efeito, como é o caso.
Acresce ainda que, nos termos do artigo 4º dos Estatutos do Instituto para os Assuntos Cívicos e Municipais, o Chefe do Executivo exerce sobre o IACM os seguintes poderes de tutela:
- nomear, contratar e exonerar os membros do conselho de administração;
- determinar aos órgãos estatutários a apresentação dos elementos de informação que julgue necessários;
- aprovar o plano de actividade, os orçamentos privativos e suplementares, as contas de gerência, a contracção de empréstimos, a celebração de acordos com instituições de natureza similar exteriores de Macau, a abertura de concursos públicos;
- homologar as deliberações do conselho de administração sobre a estrutura interna do IACM, o estatuto privativo do pessoal e o regulamento privativo do parque automóvel; e
- exercer outros poderes especificados nos Estatutos ou em diploma legal ou suplementar.
Atentos os poderes tutelares acima descritos e conferidos por lei, é de verificar que a tutela do Chefe do Executivo mais não seja do que uma tutela meramente inspectiva e correctiva, no sentido de que a entidade tutelar tem poderes de fiscalização sobre a organização e funcionamento da entidade tutelada, bem como poderes de correcção dos inconvenientes que possam resultar do conteúdo dos actos projectados ou decididos pelos órgãos tutelados3, e não uma tutela substitutiva, caso em que a entidade tutelar pode suprir as omissões da entidade tutelada, modificando ou substituindo o acto recorrido, em sede de recurso tutelar facultativo, quando for especialmente previsto.
No vertente caso, salvo o devido respeito, entendemos que, sendo pessoas colectivas distintas e cabendo a decisão da pretensão apresentada pelo recorrente ao IACM, a entidade recorrida não pode obviamente modificar ou substituir os actos praticados por aquele Instituto, sendo certo que nem recurso tutelar de tais actos se encontra legalmente previsto.
Finalmente, pese embora seja verdade que o recorrente não está inibido de apresentar petições ao Chefe do Executivo, nos termos consagrados na Lei nº 5/94/M, mas o que está aqui em causa é a impugnação contenciosa de um acto administrativo, para o efeito terá o recorrente que respeitar as regras fixadas por lei, sendo uma delas o sistema legal de competências que está ligado a interesse e ordem públicos e que, tendo como fonte única a lei, não é passível de modificações por parte de qualquer autoridade administrativa, sendo certo ainda que, aquela Lei não se aplica, conforme o seu artigo 1º, à defesa dos direitos e interesses perante os tribunais e à impugnação dos actos administrativos, através de reclamação ou recursos hierárquicos.
Face aos fundamentos acima expostos, e atentas as considerações tecidas pelo Digno Magistrado do Ministério Público no parecer, podemos concluir que o Chefe do Executivo não detinha e não detém competência material para decidir sobre a matéria subjacente à pretensão formulada pelo recorrente, razão pela qual o silêncio sobre tal matéria não confere ao recorrente o direito de presumir indeferida a sua pretensão para efeitos de recurso contencioso, daí que, carecendo o recurso de objecto, deve o mesmo ser rejeitado, nos termos do artigo 74º, nº 1 e 46º, nº 2, alínea b), ambos do Código do Processo Administrativo Contencioso.
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III) DECISÃO
Face ao exposto, acordam em rejeitar o presente recurso contencioso.
Custas pelos recorrentes, com a taxa de justiça de 5 U.C.
Registe e notifique.
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Macau, 3 de Abril de 2014
Tong Hio Fong
Lai Kin Hong
João A. G. Gil de Oliveira

Presente
Victor Manuel Carvalho Coelho
1 José Cândido de Pinho, in Manual Elementar de Direito Administrativo, Centro de Formação de Magistrados de Macau, 1996, pág. 75
2 Lino José Baptista Ribeiro e José Cândido de Pinho, in Código do Procedimento Administrativo de Macau Anotado e Comentado, Fundação Macau, pág. 513 a 516
3 Lino José Baptista Ribeiro e José Cândido de Pinho, in Código do Procedimento Administrativo de Macau Anotado e Comentado, Fundação Macau, pág. 895
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