打印全文
Processo n.º 9/2013
Recurso Civil
Recorrentes: A e B
Recorrido: C
Data da conferência: 7 de Maio de 2014
Juízes: Song Man Lei (Relatora), Sam Hou Fai e Viriato Manuel Pinheiro de Lima

Assuntos: - Contrato-promessa de compra e venda
- Mora
 - Perda de interesse na celebração do contrato
 
SUMÁRIO

1. Nos termos do art.º 793.º n.º 2 do Código Civil, considera-se o devedor constituído em mora quando, por causa que lhe seja imputável, a prestação não foi efectuada no tempo devido.
2. Considera-se, para os efeitos constantes do art.º 790.º do Código Civil, como não cumprida a obrigação se, em consequência da mora, o credor perder o interesse, objectivamente apreciado, que tinha na prestação - art.º 797.º n.º l, al. a) e n.º 2 do Código Civil.
3. Face à cláusula expressamente estipulada no contrato-promessa sobre a compra e venda da fracção autónoma livre de ónus e encargos, prometida pelos promitentes vendedores, à pendência da acção judicial de execução específica que tinha como objecto o mesmo imóvel e a não comunicação ao promitente comprador quanto à existência dum contrato-promessa de compra e venda da mesma fracção anteriormente celebrado, é legítimo concluir que o incumprimento da prestação foi imputável aos promitentes vendedores e o promitente comprador perdeu o interesse na aquisição do imóvel.
  
A Relatora,
Song Man Lei
  ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU:
  
  
1. Relatório
C, melhor identificado nos autos, intentou uma acção de condenação com processo ordinário contra A e sua mulher B, pretendendo que:
a) se declare que os Réus, por facto voluntário seu que lhes é exclusivamente imputável, não cumpriram as obrigações que haviam assumido para com o Autor, através do contrato-promessa a que alude nos artigos 1.º e 4.º da petição inicial;
b) declare resolvido o contrato-promessa celebrado entre o Autor e os Réus, por incumprimento definitivo e culposo destes; e consequentemente,
c) condene os Réus a pagarem ao Autor a quantia de HKD$1.140.000,00, correspondente ao dobro do sinal, acrescida de juros de mora à taxa legal;
d) Devem finalmente os Réus ser condenados no pagamento das custas.

Contestaram os Réus, deduzindo a reconvenção, pedindo a sua absolvição do pedido e a condenação do Autor no pagamento do montante de MOP$4.316,00, dispendido com a marcação da escritura pública de compra e venda a que o Autor faltou, declarando-se ainda resolvido o contrato promessa de compra e venda, por incumprimento definitivo e culposo do Autor, com a consequente perda do sinal por este prestado.

Por sentença proferida em 5 de Novembro de 2009, o Tribunal Judicial de Base decidiu:
1.- julgar procedente a acção e:
a) Declarar resolvido o contrato celebrado entre o Autor e os Réus no dia 28 de Março de 2007, melhor identificado na supra al. B) dos factos assentes.
b) Condenar os Réus a pagar ao Autor a quantia total de HKD$1,140,000.00, (um milhão e cento e quarenta mil patacas), correspondente ao sinal já pago, em dobro, acrescida de juros, à taxa legal, desde o trânsito da presente sentença, até integral e efectivo pagamento.
2.- Julgar improcedente a reconvenção e absolvendo o Autor do pedido convencional.

Inconformados com a decisão, recorreram os Réus A e B para o Tribunal de Segunda Instância, que decidiu negar provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida.

Deste Acórdão vêm agora os Réus A e B recorrer para o Tribunal de Última Instância, apresentando as alegações com a formulação das seguintes conclusões:
A) Não são aplicáveis aos factos dados como assentes por provados, os arts. 790º e 797º do Código Civil na integração jurídica que lhes foi efectuada.;
B) Os Recorrentes não estiveram impossibilitados de, tempestiva e legalmente, celebrarem o contrato definitivo, nem incorreram em mora;
C) Os Recorrentes tentaram celebrar o contrato prometido, o que não aconteceu porque o A., recorrido, o não cumpriu, embora estivesse devidamente interpelado para o fazer;
D) Os Recorrentes interpelaram admonitória e finalmente o recorrido e, mesmo assim, ele não cumpriu;
E) O recorrido manteve-se sempre silente e inactivo, nada dizendo ou fazendo;
F) Não se apuraram os factos essenciais a aferir objectivamente da perda de interesse do A. no cumprimento do contrato.
G) Ainda que se tivessem apurado, nunca estariam cumpridos os requisitos dos arts. 790º e 797º do C.C,
H) Os recorrentes não incumpriram o contrato, antes o quiseram cumprir, conforme a factualidade assente e apurada, donde não se pode operar a cominação do art. 436º, nº 2 do C.C.;
I) O A., recorrido, incumpriu definitiva e culposamente o contrato, nos termos do disposto nos arts. 400º, 752º, 790º e 797º do C.C.;
J) Existiu erro de julgamento e violação de todas as normas apontadas.
K) A Sentença proferida é, ainda, nula por violação do art. 571º, alíneas b) , c) e d) do Código de Processo Civil.

O Autor não apresentou contra-alegações.
Foram corridos os vistos.
Cumpre decidir.

2. Factos Provados
Foram dados como provados os seguintes factos:
“Factos assentes
A) Em 28 de Março de 2007, o Autor celebrou com os Réus um contrato-promessa.
B) Nos termos do qual aquele prometeu comprar, e estes prometeram vender, livre de quaisquer ónus ou encargos e devoluta, [Endereço], descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº XXXXX (cfr. Docs. n.ºs 1 a 3 junto com a p.i.)
C) Conforme resulta do contrato celebrado entre o Autor e os Réus, as partes acordaram expressamente que o preço do imóvel seria de HKD$2,850,000.00 (cfr. Doc. n.º 1 junto com a p.i.)
D) O Autor procedeu ao pagamento de HKD$570,000.00 – HKD$520,000.00 mediante o cheque visado n.º HXXXXXX e HKD$50,000.00 em numerário – aos Réus, em 28 de Março de 2007, a título de sinal. (cfr. Docs. n.º 1 e 4 juntos com a p.i.)
E) Tendo ficado acordado entre as partes que o remanescente em dívida, no montante de HKD$2,280,000.00, seria pago pelo Autor aos Réus no acto da celebração pública que titularia o contrato-prometido. (cfr. cláusula 1ª do Doc. n.º 2 junto com a p.i.)
F) Ficou igualmente acordado, por escrito, no contrato-promessa, entre o Autor e os Réus que a escritura de compra e venda deveria ser outorgada antes do dia 28 de Maio de 2007.
G) Sobre a supra aludida fracção autónoma pendia uma acção junto do Tribunal Judicial de Base que havia sido registada em 25 de Abril de 2007. (cfr. Doc. n.º 3 junto com a p.i.)
H) O Autor deixou de ter interesse na compra do apartamento.
Da base instrutória:
1. A situação a que alude a alínea G) da matéria dos factos assentes nunca foi comunicada ao Autor pelos ora Réus.
2. O Autor quando soube da acção perdeu todo o interesse na aquisição da fracção que prometeu comprar, e que os Réus lhe prometeram vender.
3. Os réus marcaram junto de um notário a data para a realização da escritura de compra e venda.
4. E comunicaram ao autor através de carta registada datada de 18 de Maio de 2007 que a escritura iria ser celebrada no Cartório Notarial do Notário Privados Sr. Dr. D, no dia 28 de Maio entre as 10:00h e as 11.00h.
5. E este recebeu em 26 de Maio de 2007.
6. Em 22 de Maio de 2007, os Réus mandaram nova carta registada com aviso de recepção ao autor mais uma vez o notificando da data, hora e local da outorga da escritura pública de compra e venda.
7. Os réus conseguiram obter todos os documentos necessários para a realização da escritura de compra e venda, tendo chegado, inclusivamente, a convocar o Banco F, S.A.R.L., para distratar a hipoteca que impende sobre a fracção autónoma.
8. O autor não compareceu ao notário acima aludido.
9. Os Réus pagaram MOP$4,316.00 para a marcação da escritura e do cancelamento da hipoteca.
10. Em 11 de Junho de 2007, os réus voltaram a enviar nova carta registada ao Autor na qual o convocavam para a outorga da escritura pública no dia 20 de Junho de 2007.
11. E, expressamente, mencionavam que, caso o Autor desta vez também não comparecesse, considerariam o contrato promessa resolvido, e fariam seu o sinal entregue.
12. O Autor recebeu esta carta em 18 de Junho de 2007.
13. No dia 20 de Junho de 2007 o Autor voltou a não comparecer no cartório notarial para outorgar a escritura pública de compra e venda.”

3. Direito
Alegam os recorrentes que o Acórdão recorrido incorreu nos vícios de erro de julgamento e de violação da lei, sendo ainda nulo por violação do art.º 571.º n.º 1, al.s b), c) e d) do Código de Processo Civil de Macau.

Desde logo, é evidente sem razão dos recorrentes ao invocar a nulidade da sentença, pois se limitaram a fazer uma mera e genérica imputação, sem que tenham concretizado, nas suas alegações do recurso, tais vícios, referentes respectivamente à não especificação dos fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão, à oposição dos fundamentos com a decisão e à omissão de pronúncia ou excesso de pronúncia sobre questões suscitadas pelas partes.
E não se cortina no Acórdão ora posto em causa a ocorrência dos vícios susceptíveis de conduzir à nulidade da decisão.

Entendem ainda os recorrentes que não se apuraram os factos essenciais a aferir objectivamente da perda de interesse do Autor, ora recorrido, no cumprimento do contrato, sendo este quem incumpriu definitiva e culposamente o contrato, nos termos do disposto nos art.ºs 400.º, 752.º, 790.º e 797.º do Código Civil de Macau.
A questão que se coloca é, no fundo, a de violação da lei.
Trata-se de saber se, para efeitos do disposto no art.º 797.º do Código Civil, há perda de interesse na prestação por parte do credor, o Autor promitente-comprador.

Ora, nos termos do art.º 400.º n.º 1 do Código Civil, “o contrato deve ser pontualmente cumprido, e só pode modificar-se ou extinguir-se por mútuo consentimento dos contraentes ou nos casos admitidos na lei”.
E é admitida a resolução do contrato fundada na lei ou em convenção, ao abrigo do n.º 1 do art.º 426.º do Código Civil.
No caso dos autos, não houve, sem dúvida, mútuo consentimento nem convenção das partes quanto à extinção do contrato-promessa em causa.
Há que ver a previsão legal que admite a resolução do contrato.
A este propósito, estipula o art.º 790.º do Código Civil que:
Artigo 790.º
(Impossibilidade culposa)
1. Tornando-se impossível a prestação por causa imputável ao devedor, é este responsável como se faltasse culposamente ao cumprimento da obrigação.
2. Tendo a obrigação por fonte um contrato bilateral, o credor, independentemente do direito à indemnização, pode resolver o contrato e, se já tiver realizado a sua prestação, exigir a restituição dela por inteiro.

E prevê ainda o art.º 797.º do Código Civil o seguinte:
Artigo 797.º
(Perda do interesse do credor ou recusa do cumprimento)
1. Considera-se para os efeitos constantes do artigo 790.º como não cumprida a obrigação se, em consequência da mora:
a) O credor perder o interesse que tinha na prestação; ou
b) A prestação não for realizada dentro do prazo que, por interpelação, for razoavelmente fixado pelo credor.
2. A perda do interesse na prestação é apreciada objectivamente.
3. No caso da alínea b) do n.º 1, o credor pode, em alternativa às sanções cominadas pelo artigo 790.º, optar por exigir a realização coactiva da prestação e a indemnização pela mora, se o contrário não resultar da interpelação; contudo, o devedor pode fixar ao credor um prazo razoável para o exercício desta opção, sob pena de caducidade do direito do credor a exigir a realização coactiva da prestação.
4. O disposto nos números anteriores não prejudica a aplicação, com as necessárias adaptações, do regime constante do artigo 791.º para os casos de incumprimento parcial.

No contexto legal supra transcrito, considera-se para os efeitos constantes do art.º 790.º como não cumprida a obrigação se, em consequência da mora, o credor perder o interesse que tinha na prestação - art.º 797.º n.º l, al. a) do Código Civil.
E verifica-se o incumprimento definitivo quando o credor perder, em consequência da mora do devedor, o interesse na prestação devida.
Por sua vez, considera-se o devedor constituído em mora quando, por causa que lhe seja imputável, a prestação não foi efectuada no tempo devido - art.º 793.º n.º 2 do Código Civil.
E o devedor que falta culposamente ao cumprimento da obrigação torna-se responsável pelo prejuízo que causa ao credor - art.º 787.º do Código Civil.
Por outro lado, e quanto ao incumprimento do contrato-promessa de compra e venda, aquele que constitui o sinal vai perdê-lo ou tem o direito de exigir o dobro do que houver prestado, consoante se o não cumprimento é imputável a ele ou a outro contraente – art.º 436.º n.º 2 do Código Civil.
Há que apurar se o incumprimento é culposo.

No caso vertente, o Acórdão recorrido considerou haver mora dos Réus na medida em que na data fixada para a escritura pública estava registada uma acção de execução específica de contrato-promessa de compra e venda da fracção dos autos proposta contra os Réus, sendo certo que as partes acordaram que os promitentes-vendedores se comprometiam a assegurar que a fracção era vendida livre de ónus e encargos.
Afigura-se que o Acórdão recorrido julgou bem ao considerar haver mora do devedor.
Na realidade, da factualidade apurada nos autos resulta que a 28 de Março de 2007 foi celebrado o contrato-promessa de compra e venda da fracção autónoma dos autos entre o Autor (promitente-comprador) e os Réus (promitentes-vendedores).
No contrato-promessa de compra e venda estipulou-se que os promitentes-vendedores se comprometiam a assegurar que a coisa era vendida livre de quaisquer ónus e encargos.
Em 25 de Abril de 2007 foi registada uma acção, junto do Tribunal Judicial de Base, de execução específica de contrato-promessa de compra e venda da mesma fracção dos autos, proposta contra os Réus dos autos por um terceiro promitente-comprador.
O Autor não compareceu no notário para celebrar a escritura pública de compra e venda prometida, não obstante várias convocações feitas pelos Réus.
E tal como se constata na sentença de primeira instância, não ficou provado o alegado pelos Réus que “os réus, na altura em que celebraram o contrato promessa de compra e venda com o Autor, mencionaram expressamente que tinham, anteriormente, celebrado um outro contrato promessa de compra e venda sobre o mesmo imóvel e que estavam em negociações com esses promitentes compradores para lhes entregarem o dobro do sinal. E esta situação foi aceite pelo Autor sem quaisquer problemas”.
Daí que é legítimo tirar conclusão de que foi a pendência da acção judicial de execução específica de contrato-promessa de compra e venda da mesma fracção dos autos, proposta contra os Réus por um terceiro promitente-comprador, que determinou a não comparência do Autor no acto marcado para a escritura pública, já que eram a intenção e a expectativa deste que compraria a fracção autónoma livre de quaisquer ónus e encargos, o que também foi prometido pelos Réus a assegurar, através da estipulação expressa no contrato celebrado, situação esta que fez constituir os Réus em mora, em consequência da qual o Autor perdeu o interesse na aquisição do imóvel objecto do contrato-promessa.
Salienta-se que, face à referida cláusula sobre a compra e venda da fracção autónoma livre de ónus e encargos, à pendência da acção judicial de execução específica que tinha como objecto o mesmo imóvel e a não comunicação ao Autor quanto à existência dum contrato-promessa de compra e venda da fracção anteriormente celebrado, é de crer que o incumprimento da prestação foi imputável aos Réus.
E não se constata nos autos que o Autor promitente comprador agiu com alguma culpa ou não procedeu de boa fé, violando o disposto no art.º 752.º do Código Civil.
É verdade que a apreciação sobre a perda do interesse deve seguir o critério objectivo estabelecido no n.º 2 do art.º 797.º do Código Civil.
Face à factualidade apurada nos autos, afigura-se-nos razoável afirmar que um homem qualquer medianamente considerado em termos de inteligência, sensatez e diligência, colocado na mesma situação do Autor, não teria mais interesse na outorga da escritura pública de compra e venda da fracção autónoma em causa, sob pena de correr o risco de, mesmo se pagando no acto de escritura pública o remanescente do preço no montante de HKD$2,280,000.00, a sua pretensão de comprar o imóvel cair no insucesso, sendo evidente que ninguém queira correr tal risco, pelo que é forçado a concluir que se verifica a perda do interesse objectiva na prestação por parte do Autor.
Resumindo, afigura-se que o Acórdão recorrido julgou bem também no que respeita à perda de interesse objectiva do Autor na prestação, embora a expressão “perda de interesse” seja conclusiva e de direito e se deva considerar não escrita, como entendeu o voto de vencido anexo ao Acórdão recorrido.
Estando em causa o incumprimento definitivo e culposo (dos Réus promitentes vendedores), há que reconhecer ao Autor o direito de resolver o contrato-promessa vertido nos autos e exigir o dobro do sinal já pago.
Deve ser negado provimento ao recurso.

4. Decisão
Face ao exposto, acordam em negar provimento ao presente recurso.
Custas pelos recorrentes.

                 Macau, 7 de Maio de 2014
                 
   Juízes: Song Man Lei (Relatora) – Sam Hou Fai –
Viriato Manuel Pinheiro de Lima



15
Processo n.º 9/2013