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Processo nº 284/2014 Data: 22.05.2014
(Autos de recurso penal)

Assuntos : Crime de “tráfico de estupefacientes”.
Erro notório na apreciação da prova.
Atenuação especial.
Pena.
Princípio da margem da liberdade.



SUMÁRIO

1. “Erro” é toda a ignorância ou falsa representação de uma realidade. Daí que já não seja “erro” aquele que possa traduzir-se numa “leitura possível, aceitável ou razoável, da prova produzida”.

O erro notório na apreciação da prova existe quando se dão como provados factos incompatíveis entre si, isto é, que o que se teve como provado ou não provado está em desconformidade com o que realmente se provou, ou que se retirou de um facto tido como provado uma conclusão logicamente inaceitável. O erro existe também quando se violam as regras sobre o valor da prova vinculada, as regras de experiência ou as legis artis. Tem de ser um erro ostensivo, de tal modo evidente que não passa despercebido ao comum dos observadores.

É na audiência de julgamento que se produzem e avaliam todas as provas (cfr. artº 336º do C.P.P.M.), e é do seu conjunto, no uso dos seus poderes de livre apreciação da prova conjugados com as regras da experiência (cfr. artº 114º do mesmo código), que os julgadores adquirem a convicção sobre os factos objecto do processo.
Assim, sendo que o erro notório na apreciação da prova nada tem a ver com a eventual desconformidade entre a decisão de facto do Tribunal e aquela que entende adequada o Recorrente, irrelevante é, em sede de recurso, alegar-se como fundamento do dito vício, que devia o Tribunal ter dado relevância a determinado meio probatório para formar a sua convicção e assim dar como assente determinados factos, visto que, desta forma, mais não se faz do que pôr em causa a regra da livre convicção do Tribunal.

Sempre que a convicção do Tribunal recorrido se mostre ser uma convicção razoavelmente possível e explicável pelas regras da experiência comum, deve a mesma ser acolhida e respeitada pelo Tribunal de recurso.

O princípio da livre apreciação da prova, significa, basicamente, uma ausência de critérios legais que pré-determinam ou hierarquizam o valor dos diversos meios de apreciação da prova, pressupondo o apelo às “regras de experiência” que funcionam como argumentos que ajudam a explicar o caso particular com base no que é “normal” acontecer.

2. A atenuação especial da pena só deve ter lugar em situações “excepcionais” ou “extraordinárias”, ou seja, “quando a conduta em causa se apresente com uma gravidade tão diminuída que possa razoavelmente supor-se que o legislador não pensou em hipóteses tais quando estatuiu os limites normais da moldura cabida ao tipo de facto respectivo.

3. Na determinação da medida da pena, adoptou o Código Penal de Macau no seu art.º 65.º, a “Teoria da margem da liberdade”, segundo a qual, a pena concreta é fixada entre um limite mínimo e um limite máximo, determinados em função da culpa, intervindo os outros fins das penas dentro destes limites.

O relator,

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José Maria Dias Azedo


Processo nº 284/2014
(Autos de recurso penal)






ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:





Relatório

1. Sob acusação pública e em audiência colectiva respondeu, no T.J.B., A, (1°) arguido com os sinais dos autos.

Realizado o julgamento, decidiu o Colectivo, condenar o dito arguido como autor da prática em concurso real de:

- 1 crime de “tráfico de estupefacientes” p. e p. pelos art°s 8°, n.° 1 da Lei n.° 17/2009, na pena de 4 anos e 9 meses de prisão;
- 1 crime de “detenção para consumo” e 1 outro de “detenção de utensilagem”, p. e p. pelos art°s 14° e 15° da mesma Lei n.° 17/2009, nas penas parcelares de 2 meses de prisão cada; e,
Em cúmulo jurídico, foi o arguido condenado na pena única de 5 anos de prisão; (cfr., fls. 365 a 371 que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).

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Inconformado, o (1°) arguido A recorreu, imputando à decisão recorrida o vício de “erro notório na apreciação da prova” e pedindo a redução das penas aplicadas; (cfr., fls. 407 a 415-v).

*

Respondendo, é o Exmo. Magistrado do Ministério Público de opinião que a decisão recorrida não merece nenhuma censura, devendo ser objecto de confirmação; (cfr., fls. 418 a 422).

*

Admitido o recurso, e remetidos os autos a este T.S.I., em sede de vista emitiu o Ilustre Procurador Adjunto o seguinte douto Parecer:

“Na Motivação de fls.407 a 415v. dos autos, a recorrente assacou, ao douto Acórdão de fls.365 a 371v., o «erro notório na apreciação de prova» previsto na alínea c) do n.°2 do art.400° do CPPM, e ainda a violação do disposto no n.°1 do art.8° da Lei n.°17/2009 ex vi arts.65°, 40° e 48° do CP por gravidade desproporcional da pena aplicada.
Antes de mais, sufragamos inteiramente as criteriosas explanações da Exma. Colega na Resposta (cfr. fls.418 a 422 dos autos). E, com efeito, nada temos, de relevante, a acrescentar-lhes.
Quanto ao significado do «erro notório na apreciação de prova», é pacífica e consolidada a jurisprudência de (por exemplo, Acórdãos do Venerando TUI nos Processo n.°l7/2000, n.°16/2003, n.°46/200S, n.°22/2009 e n.°52/2010): O erro notório na apreciação da prova existe quando se dão como provados factos incompatíveis entre si, isto é, que o que se teve como provado ou não provado está em desconformidade com o que realmente se provou ou não provou, ou que se retirou de um facto tido como provado uma conclusão logicamente inaceitável. O erro existe também quando se violam as regras sobre o valor da prova vinculada ou as legis artis. Tem de ser um erro ostensivo, de tal modo evidente que não passa despercebido ao comum dos observadores, ou seja, quando o homem de formação média facilmente dele se dá conta.
No caso sub iudice, o que é concludente é que as materiais estupefacientes aprendidas na posse e da casa da recorrente excedem, em larga medida, ao dose (do consumo pessoal) diário normal. Daí que não fere do «erro notório na apreciação de prova» a conclusão extraída pelo Tribunal a quo e transcrita no art.16° da Motivação.
Ora bem, os argumentos da recorrente a pretexto de «erro notório na apreciação de prova» mostram nitidamente que pretende pôr em crise, no fundo, a apreciação e livre convicção do Tribunal a quo sobre os vários meios de prova, tentando sobrepor a sua valorização sobre a do Tribunal.
O que justifica que se recordar o ensinamento do Venerando TUI no seu Processo n.°13/2001: O recorrente não pode utilizar o recurso para manifestar a sua discordância sobre a forma como o tribunal a quo ponderou a prova produzida, pondo em causa, deste modo, a livre convicção do julgador.
De outro lado, interessa não olvidar(Acórdão do Venerando TSI no Processo n.°132/2004): A invocação do vício de erro notório na apreciação da prova não pode servir para pôr em causa a livre convicção do Tribunal, pois que o mesmo nada tem a ver com a eventual desconformidade entre a decisão de facto do Tribunal e aquela que entende adequada o recorrente.
E mais (Acórdão do Venerando TSI no Processo n.°470/2010): Assim, sendo que o erro notório na apreciação da prova nada tem a ver com a eventual desconformidade entre a decisão de facto do Tribunal e aquela que entende adequada o Recorrente, irrelevante é, em sede de recurso, alegar-se como fundamento do dito vício, que devia o Tribunal ter dado relevância a determinado meio probatório para formar a sua convicção e assim dar corno assente determinados factos, visto que, desta forma, mais não se faz do que pôr em causa a regra da livre convicção do Tribunal.
Em esteira das sensatas jurisprudências, temos por certo que não se verifica o invocado «erro notório na apreciação de prova», e a arguição do recorrente deste vício encontra-se legalmente proibida nos termos do art.114° do CPP.
Atendendo ao grau da ilicitude, à intensidade da culpa e também à molduras penais correspondentes aos 3 crimes cometidos pela recorrente na autoria material, não descortinamos a demasiada severidade das penas parcelares ou da pena única.
De qualquer modo, e sendo mesmo susceptíveis de redução estas penas, as exigências da prevenção geral e da especial não consentem ao pedido a recorrente de aplicar-lhe a pena de prisão inferior a 3 anos com a suspensão da execução.
Por todo o expendido acima, propendemos pela improcedência do recurso em apreço”; (cfr., fls. 436 a 437).

*

Nada obstando, cumpre apreciar e decidir.

Fundamentação

Dos factos

2. Estão provados os factos como tal elencados no Acórdão recorrido a fls. 367-v a 368, e que aqui se dão como integralmente reproduzidos.

Do direito

3. Diz o recorrente que o Acórdão recorrido está inquinado com o vício de erro notório na apreciação da prova e que excessivas são as penas que lhe foram aplicadas pelo crime de “tráfico de estupefacientes”, “detenção para consumo” e “detenção de utensilagem”, p. e p. pelos art°s 8°, n.° 1, 14° e 15° da Lei n.° 17/2009, pedindo a sua atenuação, (redução).

Vejamos.

–– Quanto ao “erro”.

Repetidamente tem este T.S.I. entendido que o vício de erro notório na apreciação da prova “existe quando se dão como provados factos incompatíveis entre si, isto é, que o que se teve como provado ou não provado está em desconformidade com o que realmente se provou, ou que se retirou de um facto tido como provado uma conclusão logicamente inaceitável. O erro existe também quando se violam as regras sobre o valor da prova vinculada, as regras de experiência ou as legis artis. Tem de ser um erro ostensivo, de tal modo evidente que não passa despercebido ao comum dos observadores”, e que “é na audiência de julgamento que se produzem e avaliam todas as provas (cfr. artº 336º do C.P.P.M.), e é do seu conjunto, no uso dos seus poderes de livre apreciação da prova conjugados com as regras da experiência (cfr. artº 114º do mesmo código), que os julgadores adquirem a convicção sobre os factos objecto do processo.
Assim, sendo que o erro notório na apreciação da prova nada tem a ver com a eventual desconformidade entre a decisão de facto do Tribunal e aquela que entende adequada o Recorrente, irrelevante é, em sede de recurso, alegar-se como fundamento do dito vício, que devia o Tribunal ter dado relevância a determinado meio probatório para formar a sua convicção e assim dar como assente determinados factos, visto que, desta forma, mais não se faz do que pôr em causa a regra da livre convicção do Tribunal”; (cfr., v.g., Ac. de 12.05.2011, Proc. n° 165/2011, e mais recentemente de 13.02.2014, Proc. n.° 754/2013 do ora relator).

De facto, importa ter presente que:
- «Erro» é toda a ignorância ou falsa representação de uma realidade. Daí que já não seja “erro” aquele que possa traduzir-se numa “leitura possível, aceitável ou razoável, da prova produzida”;
- Sempre que a convicção do Tribunal recorrido se mostre ser uma convicção razoavelmente possível e explicável pelas regras da experiência comum, deve a mesma ser acolhida e respeitada pelo Tribunal de recurso; e que,
- O princípio da livre apreciação da prova, significa, basicamente, uma ausência de critérios legais que pré-determinam ou hierarquizam o valor dos diversos meios de apreciação da prova, pressupondo o apelo às “regras de experiência” que funcionam como argumentos que ajudam a explicar o caso particular com base no que é “normal” acontecer; (cfr., v.g., Ac. de 10.10.2013, Proc. n.° 235/2012).

E impugnando o arguido a matéria de facto onde se dá nota que ele consumia apenas uma pequena parte do estupefaciente que possuía, destinando a restante (maior parte), para a cedência ou venda a terceiros, diz, (em síntese), o mesmo que o Tribunal a quo errou ao decidir tal matéria porque “não tinha provas” para tal e que sendo ele “doente”, violou assim as “regras de experiência”.

Ora, atento ao que se deixou exposto em relação ao sentido e alcance do vício aqui em questão, evidente é que não tem o ora recorrente razão.

Com efeito, a “falta de prova” não constitui “erro notório na apreciação da prova”, e certo sendo que em audiência prestaram declarações 2 arguidos, o ora recorrente e um outro, tendo-se ainda lido as deste último e de um outro (terceiro), tendo-se também inquirido uma testemunha, manifesto é que adequado não é dizer-se que existe “falta de prova”, limitando-se o recorrente a (tentar) sindicar a livre apreciação da prova, princípio consagrado no art. 114° do C.P.P.M., que como é sabido, não colhe.

Por sua vez, não se pode olvidar que “provado” está que o ora recorrente dedicava-se ao tráfico desde princípios do ano de 2013, que apenas foi detido em finais de Maio do mesmo ano, e que a droga que possuía encontrava-se acondicionada em embalagens individuais, em pequenos sacos de plásticos com porções de estupefaciente, normalmente utilizados no “tráfico” de produtos estupefacientes ou psicotrópicos, o que, também por aqui se vê que lógica e adequada foi a decisão recorrida na parte em questão.

–– Dúvidas não havendo assim que a conduta do ora recorrente (dada como provada) integra os crimes em questão, (até porque não vem impugnados os crimes de “consumo” e “utensilagem” do art. 14° e 15°), vejamos agora das penas.

Ao crime de “tráfico de estupefacientes” cabe a pena de 3 a 15 anos de prisão; (cfr., art. 8°, n.° 1 da Lei n.° 17/2009).

E, não sendo caso de “atenuação especial da pena” – pois que como temos entendido, esta só deve ter lugar em situações “excepcionais” ou “extraordinárias”, ou seja, “quando a conduta em causa se apresente com uma gravidade tão diminuída que possa razoavelmente supor-se que o legislador não pensou em hipóteses tais quando estatuiu os limites normais da moldura cabida ao tipo de facto respectivo”, (cfr., v.g., o recente Ac. deste T.S.I. de 14.04.2011, Proc. n°130/2011 e, mais recentemente de 05.12.2013, Proc. n° 715/2013) – há pois que se confirmar a pena de 4 anos e 9 meses de prisão fixada, já que se encontra, ainda assim, próxima do seu limite mínimo, e a mais de 10 anos do seu limite máximo.

Por sua vez, e no que toca aos crimes de “consumo de estupefacientes” e de “detenção de utensilagem”, p. e p. pelos art°s 14° e 15° da Lei n.° 17/2009, eis o que se nos oferece dizer.

A estes crimes cabe a pena de prisão até 3 meses ou pena de multa até 60 dias.

Prevê o art. 64° do C.P.M. que:

“Se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade, o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição”.

Porém, entendeu o Colectivo a quo que, nomeadamente, face às necessidades de prevenção criminal, que a pena de multa não realizava, adequada e suficientemente, as finalidades da punição.

E, mostra-se efectivamente de confirmar o assim decidido, já que atenta a natureza dos crimes em questão, prementes são as ditas necessidades de prevenção criminal.

Nesta conformidade, (e no que toca à “medida da pena”), cabe apenas dizer que tendo em conta os critérios dos art°s 40° e 65° do C.P.M., e estando as penas em questão a meio da moldura penal aplicável, excessivas não se mostram de considerar.

Com efeito, e como tem este T.S.I. entendido, “na determinação da medida da pena, adoptou o Código Penal de Macau no seu art.º 65.º, a “Teoria da margem da liberdade”, segundo a qual, a pena concreta é fixada entre um limite mínimo e um limite máximo, determinados em função da culpa, intervindo os outros fins das penas dentro destes limites”; (cfr., v.g., o Ac. de 03.02.2000, Proc. n° 2/2000, e, mais recentemente, de 14.11.2013, Proc. n° 549/2013).

Tudo visto, confirmando-se as penas parcelares impugnadas, assim como a pena única resultante do seu cúmulo, pois que em conformidade com o estatuído no art. 71° do C.P.M., e não padecendo a decisão recorrida de qualquer outro vício de conhecimento oficioso, impõe-se a improcedência do recurso.

Decisão

4. Nos termos que se deixam expostos, acordam julgar improcedente o recurso do (1°) arguido A.

Pagará o arguido a taxa de justiça de 6 UCs.

Honorários ao Exmo. Defensor no montante de MOP$1,800.00.

Macau, aos 22 de Maio de 2014
José Maria Dias Azedo [Não obstante ter relatado o acórdão que antecede, mantenho a posição que assumi na minha declaração de voto que anexei ao Acórdão desde T.S.I. de 31.03.2011, Processo n.° 81/2011].
Chan Kuong Seng
Tam Hio Wa
Proc. 284/2014 Pág. 4

Proc. 284/2014 Pág. 5