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  ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU:
  
1. Relatório
A e B interpuseram recurso contencioso de anulação do despacho do Exmo. Senhor Chefe do Executivo da RAEM proferido em 5 de Dezembro de 2008 que ordenou a desocupação, no prazo de 20 dias a contar da data de notificação, das parcelas do terreno assinaladas com as letras “A2” e “B1a” na planta cadastral n.º 1060/1989, situado na ilha da Taipa, na Estrada Coronel Nicolau Mesquita, a remoção dos materiais e equipamentos depositados bem como a entrega das mesmas ao governo da RAEM, sem direito a qualquer indemnização.
Por Acórdão proferido em 21 de Novembro de 2013, o Tribunal de Segunda Instância decidiu negar provimento ao recurso, mantendo o acto administrativo recorrido.
Inconformados com a decisão, vêm A e B recorrer para este Tribunal de Última Instância, apresentando as seguintes conclusões:
1- O Venerando Tribunal a quo analisou o pedido dos recorrentes no pressuposto de que estes estariam a invocar o direito de propriedade dos referidos terrenos, quando efectivamente os recorrentes não fizeram esse pedido ao tribunal.
2- O que os recorrentes pediram ao Venerando Tribunal de Segunda Instância foi o reconhecimento do direito de posse pública e de boa fé, face à prova produzida, quer por documentos, quer por testemunhas no julgamento, e ao seu enquadramento jurídico nos dispositivos legais do Código Civil em vigor na R.A.E.M..
3- Face à omissão de informação e factos relevantes para a análise e decisão do Senhor Chefe do Executivo da R.A.E.M, o seu despacho foi proferido com base em erros irreparáveis que conduzem necessariamente à anulação do mesmo.
4- Apesar do art.º 7.º da Lei Básica da R.A.E.M. considerar que são propriedade do Estado os terrenos considerados vagos e que não tenham sido reconhecidos como propriedade privada, por sentença transitada em julgado antes da existência da R.A.E.M., há realidades jurídicas, como a do presente caso, que possuem um outro enquadramento jurídico que nos conduz forçosamente à apreciação dos factos com base nos normativos contemplados no Código Civil e reguladores do direito de posse.
5- O art.º 7.º da Lei Básica contém em si a questão do direito de propriedade dos terrenos da R.A.E.M., e refere claramente uma data limite a partir da qual os terrenos que não passaram a propriedade privada devem ser considerados terrenos públicos e pertencentes ao governo da R.A.E.M..
6- Mas, a verdade é que pode haver situações em que os particulares, como os ora recorrentes, invocam um direito diferente do direito de propriedade, como por exemplo o direito de posse, que existe efectivamente, direito esse que em apreciação jurídica de rigor, não pode ser negado aos cidadãos, desde que o provem.
7- A análise, em nossa modesta opinião, não pode só ser feita unicamente com base no art.º 7.º da Lei Básica da R.A.E.M., mas também deverá ser feita com base nas restantes normas onde os factos se enquadram, e oportunamente invocadas.

A entidade recorrida apresentou contra-alegações, com as seguintes conclusões:
1. De acordo com o certificado emitido pelo Conservatório do Registo Predial no dia 18 de Agosto de 2008, o terreno ocupado ilegalmente pelo recorrente não tem registo de direito real a favor de particulares. De acordo com os dispostos no art.º 7.º da Lei Básica da RAEM, o terreno em causa é propriedade do Estado.
2. Após o estabelecimento da RAEM, o recorrente não pode obter o reconhecimento de propriedade privada ou domínio útil dos terrenos ilegalmente ocupados através de decisão judicial.
3. O recorrente ocupa ilegalmente os terrenos da RAEM sem nenhuma licença legal, pelo que, os factos como fundamentos no despacho proferido pelo Chefe do Executivo em 5 de Dezembro de 2008 na informação n.º XXXX/DURDEP/2008 não têm erros, e não há vícios quanto a este despacho.

E o Exmo. Procurador-Adjunto do Ministério Público emitiu o douto parecer, entendendo que não merece provimento o presente recurso.
Foram corridos os vistos.
Cumpre decidir.

2. Factos Provados
Nos autos foram apurados os seguintes factos:
- De acordo com a certidão emitida pela Conservatória do Registo Predial em 18 de Agosto de 2008, sobre as parcelas do terreno assinalado com as letras “A2” e “B1a” na planta cadastral nº 1060/1989, de 14/4/2008, não se encontra registado a favor de pessoa singular ou colectiva o direito de propriedade ou qualquer outro direito real de gozo, nomeadamente de concessão por arrendamento ou por aforamento.
- Nem foi emitida qualquer licença de ocupação temporária para as referidas parcelas do terreno.
- As parcelas do terreno em causa estão a ser utilizadas pelos recorrentes para depósito de materiais e equipamentos de construção civil, nelas existindo construções não autorizadas.
- Por despacho de 5 de Dezembro de 2008, o Senhor Chefe do Executivo da RAEM concordou com a proposta elaborada pela Direcção dos Serviços de Solos, Obras Públicas e Transportes, tendo ordenado aos recorrentes para no prazo de 20 dias proceder à desocupação das supra identificadas parcelas do terreno indevidamente ocupadas pelos recorrentes, bem como remover os materiais e equipamentos nelas depositados e entregá-las ao Governo da RAEM.
- Através do ofício XXXXX/DURDEP/2009, de 15 de Janeiro de 2009, foram os recorrentes notificados do referido despacho do Senhor Chefe do Executivo.
- Foi emitida em 5 de Agosto de 1976 a favor de C, moradora numa barraca de madeira, pela então Secção da Polícia Municipal, a autorização nº X/76 para efeitos de reparação e ampliação do curral para suínos (doc. de fls. 16).
- Foi emitida em 23 de Junho de 1977 a favor de C1, moradora numa barraca de madeira sita em Sám Ká Chun - Taipa, pela então Secção da Polícia Municipal, a autorização nº XX/77 para efeitos de reparação da sua barraca de madeira para habitação (doc. de fls. 17).
- O recorrente A é utente da Companhia de Electricidade de Macau (doc. de fls. 18).
- O recorrente A está munido de cópia de um “Sá Chi Kai” (doc. de fls. 19).

3. Direito
Na óptica dos recorrentes, o Tribunal de Segunda Instância analisou o pedido dos recorrentes num pressuposto errado, pois eles não invocaram o direito de propriedade dos terrenos em causa, mas sim pretenderam que o Tribunal reconhecesse o seu direito de posse pública e de boa fé, face à prova produzida, quer por documentos, quer por testemunhas no julgamento.
Ora, não é verdade que o Tribunal de Segunda Instância recorrido não atendeu à questão de posse suscitada pelos recorrentes, apreciando-a embora num contexto global da abordagem sobre o direito real ou direito real de gozo.
Nota-se desde já que, logo no início dos fundamentos de direito do seu Acórdão, o Tribunal recorrido destacou claramente a questão colocada no recurso contencioso, que é de saber “se a decisão que ordenou a desocupação de parcelas do terreno identificados nos autos e remoção dos materiais e equipamentos pelos recorrentes era ilegal, ou por outras palavras, se os recorrentes possuem algum título legítimo que lhes permitam ocupar o terreno em causa, seja em termos de posse ou outro direito real” (o sublinhado é nosso), fazendo ainda referência à alegação dos recorrentes quanto ao exercício da posse e do domínio útil do terreno pelos seus familiares há mais de 80 anos, mediante uma licença emitida pela então Administração do Concelho das Ilhas a favor da avó do recorrente A (cfr. fls. 79v dos autos).
E no que respeita à apreciação dos documentos apresentados pelos recorrentes, considerou o Tribunal recorrido que não se descortina que tais documentos “sejam suficientes para demonstrar que foi concedido algum direito real ou qualquer outro direito real de gozo, nomeadamente de concessão por arrendamento ou por aforamento, ou licença de ocupação temporária, a favor dos eventuais antecessores dos recorrentes, apenas ficou provado que as parcelas do terreno em causa e eventualmente uma barraca que lá existia foram ocupadas há algum tempo pelos recorrentes e eventualmente por alguns seus antecessores, desconhecendo-se, no entanto, em que termos e a que título consistia essa ocupação”, tendo depois concluído que não lograram os recorrentes “provar qualquer aquisição válida das parcelas do terreno em causa, nem qualquer pressuposto que legitime a sua posse”.

Para demonstrar a alegada posse sobre o terreno, invocaram os recorrentes que, para além da prova testemunhal, existem documentos suficientes nos autos que provam haver título de autorização de ocupação e exploração do terreno, que se referem nomeadamente às licenças atribuídas pelo então Governo de Macau aos antepassados do recorrente A, que colocaram nas suas mãos a exploração agrícola do terreno.
De facto, encontram-se nos autos dois documentos emitidos nos anos de 1976 e 1977 pela então Administração do Concelho das Ilhas, com os quais foi autorizada C/ C1, moradora numa barraca de madeira, s/n, sita na povoação de Sanm Ka Chun, Taipa, a reparar a sua barraca de madeira e ampliar o curral para suínos (cfr. fls. 16 e 17 dos autos).
É de salientar desde logo que, contrariamente à pretensão dos recorrentes, a autorização para reparar uma barraca de madeira e ampliar o curral para suínos existentes no terreno é bem distinta da licença de ocupação temporária que legitime a ocupação do mesmo terreno e permita o desenvolvimento da actividade agrícola ou de outra natureza, não constituindo fundamento suficiente nem válido para ocupação ou utilização do terreno em causa.
Nos termos da Lei n.º 6/73, publicado no Boletim Oficial de Macau, de 22 de Setembro de 1973, vigente na altura em que foram emitidas as licenças juntas aos autos pelos recorrente e revogada pela Lei n.º 6/80/M (Lei de Terras), de 5 de Julho, o uso ou ocupação dos terrenos é permitido por meio de licença especial e a título precário (Base VIII, Base XIII e Base XVI) e a ocupação por licença especial baseia-se em contrato de arrendamento, celebrado pelo prazo de um ano tacitamente renovável por períodos iguais e sucessivos (Base XXIV, n.º 1).
Ao abrigo do art.º 194.º da Lei n.º 6/80/M, “as ocupações por licença autorizadas antes da entrada em vigor desta lei, por esta se passam a reger, sem necessidade, porém, de substituição do título”.
Ora, as licenças apresentadas pelos recorrentes aos autos não se destinam à autorização de uso ou ocupação do terreno em causa, limitando-se a permitir a reparação da barraca de madeira e a ampliação do curral para suínos aí existentes.
Os recorrentes também não apresentaram nenhuma licença de ocupação emitida nos termos da Lei n.º 6/80/M, vigente até 28 de Fevereiro de 2014, que tem a previsão semelhante, quanto à ocupação dos terrenos, à da Lei n.º 6/73, segundo a qual a ocupação por licença se baseia em contrato de arrendamento que pode ser denunciado a todo o tempo por qualquer das partes e a licença de ocupação é outorgada pelo período de um ano e considera-se caducada no caso de não ser requerida a sua renovação no prazo legal (art.ºs 3, 31.º, 39.º, 69.º e seguintes da Lei n.º 6/80/M).
Em relação aos outros documentos apresentados pelos recorrentes, tais como a factura emitida pela Companhia de Electricidade de Macau em 2 de Fevereiro de 2009, a cópia de “Sá Chi Kai” e a planta cadastral do terreno elaborada pela Direcção dos Serviços de Cartografia e Cadastro (cfr. fls. 18 a 21 dos autos), os mesmos não podem assumir relevância no sentido de comprovar a ocupação válida e justificada dos recorrentes ou dos seus antecessores sobre o terreno, sendo ainda de notar uma declaração expressa constante na planta cadastral emitida pela Direcção dos Serviços de Cartografia e Cadastro com o teor de que tal planta “não constitui qualquer presunção quanto à titularidade do terreno representado”.
E quanto ao documento de fls. 22 e 23 dos autos, trata-se dum pedido apresentado pelos recorrentes à Administração para concessão do terreno dos presentes autos, nada relevando para demonstrar a ocupação válida nem a posse pretendida pelos recorrentes.
Por outro lado e quanto à prova testemunhal, vigorando o princípio da livre apreciação das provas consagrados no art.º 558.º do Código de Processo Civil, aplicável aos presentes autos por força do art.º 1.º do Código de Processo Administrativo Contencioso, segundo o qual o tribunal aprecia livremente as provas, decidindo segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto, os depoimentos das testemunhas estão sempre sujeitos à livre apreciação do julgador.
No caso dos autos e após a inquirição das testemunhas, o Tribunal recorrido não formou a convicção no sentido defendido pelos recorrentes.
Concluindo, uma vez provado que sobre o terreno dos autos não se encontra registado a favor de particular qualquer direito de propriedade nem os recorrentes ou a sua família possuem qualquer documento comprovativo legal de uso ou ocupação do terreno, não merece censura o acto administrativo impugnado.
E o despacho impugnado não padece de qualquer vício de erro nos pressupostos de facto imputado pelos recorrentes, pois não lhe assiste razão ao afirmar que o despacho foi proferido com base em erros irreparáveis que conduzem necessariamente à anulação do mesmo.

Alegam ainda os recorrentes que, não obstante a impossibilidade de invocar o direito de propriedade sobre o terreno em causa, face à disposição no art.º 7.º da Lei Básica da RAEM, pretendem ver reconhecida uma realidade jurídica que é a posse que eles tiveram ao longo de várias décadas, fazendo apelo ao instituto jurídico de posse que o Código Civil contempla.
No entanto, sabe-se que não é este processo, de recurso contencioso que é de mera legalidade, o meio processual próprio para o efeito pretendido pelos recorrentes, de reconhecimento da posse, que deve ser submetido a uma acção declarativa de simples apreciação, que se destina a emitir uma declaração da existência ou inexistência de um direito ou de um facto (art.º 11.º n.º 2, al. a) do Código de Processo Civil), com observância de todas as tramitações processuais legais.

4. Decisão
Pelo exposto, acordam em negar provimento ao recurso.
Custas pelos recorrentes.

   Macau, 25 de Junho de 2014
  
   Juízes: Song Man Lei (Relatora) – Sam Hou Fai –
Viriato Manuel Pinheiro de Lima

O Magistrado do Ministério Público
presente na conferência: Vítor Manuel Carvalho Coelho
  



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Processo nº 9/2014