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Proc. nº 677/2013
Relator: Cândido de Pinho
Data do acórdão: 22 de Maio de 2014
Descritores:
-Acção de preferência
-Venda de quotas sociais
-Validade e eficácia
-Doação de quotas

SUMÁRIO:

I - Há três formas de preferência:
- A preferência convencional simples, também chamada preferência obrigacional (cfr. art. 408º, CC);
- A preferência convencional com eficácia real, também designada preferência real (cfr. art. 415º, CC);
- A preferência legal, de que é exemplo, a do comproprietário (art. 1309º, CC), do proprietário de prédio onerado com servidão legal de passagem na venda ou dação em cumprimento (art. 1446º, CC) ou do co-herdeiro na venda ou dação em cumprimento de quinhão hereditário (art. 1970º, CC).

II - A disciplina legal da preferência objecto de pactos está toda ela gizada para os negócios onerosos. Daí que o art. 408º do CC estabeleça que o pacto de preferência consiste na «convenção pela qual alguém assume a obrigação de dar preferência a outrem na venda de determinada coisa». O art. 409º navega na mesma onda quando pressupõe a onerosidade do negócio ao falar da «obrigação de dar preferência na venda…» e o mesmo se passa com os artigos 410º («Querendo vender a coisa…»), no art. 411º («Venda de coisa juntamente com outrem»). E até no art. 1308º do mesmo código se consagra a preferência do comproprietário na venda ou na dação em cumprimento da quota de qualquer dos seus consortes.

III - Na doação não há direito de preferência, em virtude de ela ter uma marca claramente intuitu personae.

IV - O exercício do direito de preferência ou preempção através da acção pressupõe a violação da obrigação de preferência pela consumação da alienação, mediante a venda ou dação em cumprimento, sem satisfação prévia da comunicação do projecto e cláusulas relevantes do contrato ou por irregular cumprimento desse dever.

V - Estando em causa títulos nominativos de acções, a transmissão opera mediante endosso lavrado no próprio título cumulativamente com o averbamento no livro de registo de acções, sob pena de não ser eficaz externamente.




Proc. nº 677/2013

Acordam no Tribunal de Segunda Instância da R.A.E.M.

I – Relatório
1 - “A, SA”, com sede na Av. de XXX, 9º andar, em Macau, intentou no Tribunal Judicial de Base da RAEM acção declarativa comum, com processo ordinário, contra:
1ª ré: B, aliás, XXX, aliás, XXX, viúva, natural de Hong Kong, de nacionalidade chinesa, residente em XXX, Hong Kong;
2ª ré: “C Inc.”, sociedade comercial constituída no Panamá, com escritório de representação em XXX, em Hong Kong; e
3ª ré: “D Limited”, com sede em XXX, Hong Kong (3ª ré).
Pretendeu, basicamente, a A que o tribunal decretasse a ineficácia ou a nulidade da transmissão feita pela 1ª ré às 2ª e 3ª rés de duas acções de que era titular no seu capital social e das quais, pelo preço que indica (e de que pretendia fazer depósito judicial), fosse ela (autora) declarada dona pelo efectivo exercício do direito de preferência.
*
Contestaram as rés, (fls. 273-307 e fls. 328-338), tendo a primeira suscitado a caducidade do exercício do direito de preferência por parte da autora e a segunda invocado a sua ilegitimidade, por considerar que a acção que lhe foi doada (nº 83-N) não pode ser objecto de preferência.
*
2 - Foi proferido o despacho saneador, onde foi julgada legítima a 2ª ré, a excepcionante “C Limited” (fls. 472 e vº), e improcedente a excepção de caducidade da preferência suscitada pela 1ª ré, a excepcionante B (fls. 472 vº-478).
*
As três rés recorreram desse despacho (1º recurso interlocutório), em cujas alegações formularam as seguintes conclusões:
«I
No caso subjudice, a legitimidade da ré “C Limited” (MVFL), ora recorrente, depende da resposta à questão prévia de se saber se a preferência é admissível no caso das doações.
II
Com efeito, se a resposta for negativa, não há causa de pedir contra a Fundação “C Limited”, devendo esta ré/recorrente ser absolvida da instância.
III
E trata-se de uma questão eminentemente de direito.
IV
Como bem já o referia o douto Acórdão da RL, de 12.1.1973 (BMJ, 223º-273),
Deve o juiz conhecer no saneador de qualquer questão e envolva o afastamento de uma ou mais causas de pedir na acção (...).
V
Salvo melhor entendimento, o Distinto Tribunal a quo não deveria ter remetido para decisão final, uma questão de direito que, em caso de procedência, afasta uma causa de pedir e, concomitantemente, ditará a qualidade, ou não, de arte legítima de um dos intervenientes processuais.
VI
Por maioria de razão, não podia o Distinto tribunal a quo decidir pela verificação do pressuposto processual da legitimidade quanto a esse mesmo interveniente, sem, previamente, decidir se o direi to de preferência é compaginável com a doação.
VII
Ao decidir como decidiu, o Distinto Tribunal a quo vem violar a alínea a) do nº 1 do artigo 429º do Código de Processo Civil.
VIII
E comete um erro de interpretação do direito ao decidir, prematuramente, pela aplicabilidade do artigo 58º do CPC, quando a resposta àquela questão é inseparável da resposta à invocada excepção de ilegitimidade.
IX
A configuração da presente acção perfilhada pela Autora não é a de uma Acção de Simulação, mas apenas a de uma Acção de Preferência, onde pretende ver discutido o, preço real das acções representativas do capital social da A.
X
Não basta que a Autora coloque em dúvida o preço praticado pelas rés relativamente ao objecto do negócio jurídico em causa para se considerar que estamos face a uma invocação de um acordo simulatório.
XI
É, também, imprescindível que se alegue de forma expressa e fundamentada que as rés celebraram o negócio em questão em conluio, com o intuito de enganar a Autora (ou terceiros) - vd. artigo 232º, nº 1 do Código Civil.
XII
Percorrendo toda a petição inicial, não encontramos nenhuma imputação de que, ao celebrarem o negócio jurídico em apreço, as rés hajam estabelecido um conluio com o intuito de enganar terceiros.
XIII
A autora afirma mesmo, nos artigos 41º e 42º da petição que na presente acção apenas pretende ver reconhecido o direito de preferência que alega, por preço a ar pelo tribunal.
XIV
E analisando o Pedido formulado pela autora, também em nenhuma parte se vislumbra que a autora haja peticionado ao tribunal a declaração de que o negócio em causa fosse siderado um negócio simulado.
XV
Ora, nos termos da douta lição do recentíssimo Acórdão de 28/09/2006 do Supremo Tribunal de Justiça (www.dgsi.pt, documento nº SJ200609280026151):
- O destino da acção fica determinado com a sua propositura – a forma do processo, o seu valor, a competência do tribunal, a legitimidade das partes, etc., é determinado pelo pedido.
- Quem configura a acção é o A. e não o R. (e muito menos o juiz).
- Não tendo o A. configurado a acção como sendo de anulação de deliberações sociais, não é lícito que o juiz a considere como tal e julgue a mesma tendo em conta a sua própria perspectiva.
XVI
O mesmo raciocínio tem plena aplicação no caso subjudice: não tendo a autora configurado a presente acção como uma acção de simulação, tanto que nunca alega, verdadeiramente, a existência de simulação, nem pede a declaração de simulação, não podia o Distinto Tribunal a quo configurá-la de acordo com este tipo e, em função de tal procedimento, julgar improcedente a excepção de caducidade invocada.
XVII
Ainda que assim se não entendesse (o que não se concede), também, não teria razão a douta decisão recorrida, ao considerar que em virtude de uma tal configuração, o prazo de caducidade apenas começa a contar a partir do momento em que seja fixado o preço real.
XVIII
Na forma de articulação entre a comunicação do negócio preferível ao titular do respectivo direito, com a arguição que este pretenda fazer dos vícios do contrato projectado, há a distinguir duas situações:
a) Quando o preferente está disposto a exercer o seu direito relativamente ao preço constante do contrato, mesmo que o pedido de declaração de simulação improceda;
b) Quando o preferente apenas quer preferir em relação ao preço real (ou seja, só se o pedido de simulação, proceder).
XIX
Com efeito, na Anotação Jurisprudencial de que se o despacho saneador recorrido, diz o Professor Varela, o seguinte:
“Se o preferente está disposto a exercer o seu direito relativamente ao preço constante do contrato, compreende-se que seja compelido a intentar a acção dentro dos seis meses subsequentes ao conhecimento dele e que a arguição da simulação não seja utilizada como um pretexto para se ganhar o tempo necessário à reunião dos meios que a preferência requer.”
XX
A dicotomia acima referida é, aliás, o ponto de partida de um Estudo Doutrinário do mesmo Mestre, o qual, logo, no seu início, adverte (RLJ, ano 100º, pág. 211):
“Quando assim seja, nada repugnará, de facto, impor ao preferente o ónus de exercer imediatamente o seu direito sobre o preço aparente, sob a cominação de o perder por caducidade, com a expectativa de poder recuperar mais tarde o excesso sobre o preço real que o tribunal apurar.
Mas pode perfeitamente suceder que o titular notificado esteja disposto a preferir em relação ao preço real e não possa ou não queira fazê-lo relativamente ao preço (simulado) do contrato-promessa.” E, só nesta última hipótese, tem aplicação o raciocínio do douto despacho recorrido.
XXI
Mais à frente, no mesmo Estudo (pág. 227), são apontadas as vantagens da solução adoptada, cujo resumo consta da motivação que antecede e para onde se remete.
XXII
No caso subjudice, a autora está disposta a exercer o direi to de preferência que se arroga pelo preço declarado de HKD$2.960.000,00, relativamente à acção 83-N (a acção vendida), caso o tribunal não estipule um preço inferior.
XXIII
E está disposta a preferir pelo preço que acha (sob sua própria conta e risco) que as recorrentes consideram “razoável”, para a acção 83-O (acção doada), caso tribunal considere que há preferência face às doações e caso o tribunal não fixe um preço inferior.
XXIV
Dúvidas não há, pois, de que a Autora, caso não proceda a sua pretensão quanto à fixação do preço real das acções, está disposta a exercer o direi to de preferência que se arroga pelo preço declarado, conforme melhor se pode constatar pelo doc. nº 16 junto à pi. e pelo teor da alínea e) do Pedido por ela formulado.
XXV
Assim, o depósito do preço declarado impunha-se, desde logo, assim que a autora recebeu a carta de 19 de Maio de 2005 da 1ª ré, comunicando-lhe a projectada venda e não, como se defende no saneador, apenas a partir do momento em que ficar estabelecido o preço real das acções em causa.
XXVI
Em consequência, pelos motivos expostos na contestação, a existir o direito de preferência que a autora se arroga, já o mesmo caducou.
XXVII
Ao decidir como decidiu, o douto despacho recorrido laborou num erro de julgamento, devendo, por isso ser revogado e proceder a invocada excepção de caducidade.
Nestes termos e nos mais de direito aplicável, sempre com o mui douto suprimento de V. Exas., deve ser revogado o despacho saneador na parte em que julgou improcedentes as excepções de ilegitimidade e caducidade invocadas em sede de contestação.
Em consequência, deve a recorrente C Limited ser absolvida da instância por via da primeira excepção (dilatória). E devem todas as recorrentes ser absolvidas do pedido por via da procedência da segunda excepção (peremptória).».
*
A autora respondeu a este recurso, tendo apresentado as seguintes conclusões alegatórias:
« A) Quanto à Excepção de “Ilegitimidade Passiva da Segunda Ré”:
1. A qualidade de donatária da ora Segunda Recorrente no negócio de transmissão da acção representativa do capital social da ora Recorrida com o número 83-N não está em discussão nos presentes Autos mostrando-se, antes, expressamente confessada por todas as Recorrentes;
2. Tal circunstância basta para, nos termos do disposto no Artigo 58º do Código de Processo Civil, justificar a legitimidade processual passiva daquela;
3. Por outro lado, constata-se que a decisão que possa vir a ser proferido nos Autos quanto ao mérito dos pedidos nos mesmos deduzidos não logra alcançar plenamente a respectiva eficácia subjectiva sem que possa ser oposta, no respectivo julgado, à ora Segunda Recorrente;
4. Porque assim é, ainda que esta justificação surja, em rigor, como excessiva e, por isso desnecessária, a legitimidade da ora Segunda Recorrente acha-se também firmada pelo teor do disposto no no. 2 do Artigo 61º do Código de Processo Civil;
5. A questão de saber se a doação está ou não subordinada ao direito de preferência previsato e disciplinado no Artigo Sétimo dos Estatutos da ora Recorrida constitui uma questão de direito, atinente ao fundo da causa, de cujo conhecimento resultará a decisão de mérito que, a final, deverá vir a ser produzida;
6. Porque assim é, a mesma é insusceptível de qualificar-se como excepção dilatória de ilegitimidade ou, tão pouco, muito menos, como questão prévia de cujo conhecimento dependa a possibilidade, por parte do Tribunal, de conhecer em termos processualmente devidos a excepção de ilegitimidade suscitada;
7. Na hipótese, que só por exigência de exaustão do patrocínio foi considerada nas presentes contra-alegações, em que a mesmas questão devesse qualificar-se como excepção ou como questão prévia, o despacho recorrido, ao relegar para final o conhecimento dessa mesma questão, constitui-se como insusceptível de recurso, na presente fase processual, nos termos do conjugadamente disposto no nºs 1 e 3 do Artigo 429º do Código de Processo Civil.
B) Quanto à Excepção de Caducidade
8. Compulsados os Autos e analisado, em particular, o despacho que assentou a matéria de facto julgada assente, consta-se que nenhuma das Recorrentes invocou na respectiva contestação qualquer facto susceptível de qualificar-se como facto extintivo do direito a adquirir as acções propostas transmitir em exercício do direito de preferência da ora Recorrido nos termos em que o mesmo se acha previsto e disciplinado no Artigo Sétimo dos respectivos estatutos;
9. De todo o modo, o argumento suscitado pelas Recorrentes mostra-se desde logo sem objecto no que à acção 83-N diz respeito: sendo a mesma objecto de proposta doação entre as ora Primeira e Segunda Recorridas, o preço que i deverá ser pago pela ora Recorrida pela respectiva aquisição em exercício do direito de preferência que estatutariamente lhe assiste está, e permanece, por natureza, não determinado;
10. Porque assim é, o pressuposto de que pode depender o surgimento da obrigação de proceder ao depósito acha-se ausente; mais rigorosamente, aliás, e seguindo a doutrina cuja autoria vai referida pelas Recorrentes, acha-se ausente o pressuposto de que depende o início da contagem de um qualquer prazo de caducidade para a propositura da acção de preferência;
11. O mesmo ocorre, aliás, no que à acção no. 83-O diz respeito, ainda que com diverso fundamento:
12. A ora Recorrida disputa o valor comunicado como contrapartida para a proposta transmissão para a Terceira Recorrente por entender que o mesmo não correspondente ao valor real da acção em questão, independentemente de tal falta de realidade poder resultar, ou não, de simulação (cujos elementos indiciários foram, de todo o modo, no seu articulado inicial invocados e que justificam o pedido alternativo de declaração de nulidade da venda;
13. A ora Primeira Recorrente aceitou que o preço pelo qual a aquisição em exercício da preferência fosse fixado por arbitramento, sendo, justamente, esse um dos pedidos fundamentais endereçados pela Recorrida ao Tribunal a quo, relativamente, aliás, a ambas as acções propostas transmitir;
14. Porque assim é, também relativamente à acção no. 83-O se verifica a indeterminação do elemento essencial de que dependeria o surgimento na esfera da ora Recorrida de qualquer obrigação de proceder ao depósito do preço ou, mais rigorosamente até, de, sob pena de caducidade, propor a acção de preferência no tempo em que o fez.
Nestes termos, e nos mais em Direito consentidos que esse Tribunal muito doutamente suprirá, se requer seja o presente recurso julgado improcedente, por não provado e por legalmente não justificado, com a consequente conformação do despacho recorrido,
Mais devendo as recorrentes ser solidariamente condenadas nas respectivas custas,
Pedindo também a ora Recorrida vos digneis ordenar os demais termos da lide até final, para que, pelo Vossa douta decisão, se cumpra a consueta JUSTIÇA!».
*
3 - Tendo os autos prosseguido, a autora da acção, na oportunidade, numa perícia determinada pelo tribunal, apresentou algumas questões como devendo constituir o seu objecto.
*
O tribunal, porém, rejeitou-as.
*
Contra esse despacho insurgiu-se a A (2º recurso interlocutório), tendo nas respectivas alegações de recurso formulado as conclusões seguintes:
«1. O Despacho pelo qual o Tribunal a quo rejeitou as questões indicadas pela ora Recorrente como devendo constituir objecto de perícia mostra-se desprovido de qualquer fundamentação;
2. Mais rigorosamente, o despacho em questão mostra-se totalmente silente quanto à (só mais tarde) expressamente indicada rejeição, nessa parte, do requerimento de prova;
3. O Despacho de aclaração que veio a ser proferido na sequência de instância da ora Recorrente não pode qualificar-se como fundamentação, sequer indirecta, daquele primeiro;
4. Porém, se assim devesse ser entendido o despacho de aclaração, ainda assim o mesmo manter-se-ia totalmente omisso quanto à verificação, em abstracto ou concretamente, de qualquer dos dois fundamentos legalmente apontados como admissíveis para a decisão de rejeição;
5. Nos termos do disposto na alínea b) do no. 1 do Artigo 571º do Código de Processo Civil, a falta absoluta de fundamentação constitui causa de nulidade, razão porque deve o despacho recorrido assim ser julgado e como tal declarado, com a respectiva e consequente substituição por um outro que ordene o prosseguimento da diligência pericial ordenada para conhecimento integral do objecto para a mesma indicado pela ora Recorrente.
6. O requerimento de prova pericial formulado pela ora Requerente não colheu, nomeadamente no que ao respectivo objecto diz respeito, oposição por parte das ora Recorridas;
7. Nenhum dos dois fundamentos únicos, legalmente admissíveis, para a rejeição do objecto da perícia tal como o mesmo haja sido indicado pelo requerente da mesma ou consensualizado entre as partes foi invocado nos Autos para justificar o teor da decisão recorrida; sendo que
8. Por um lado, tal objecto verifica o requisito processual de admissibilidade, tal como o mesmo deve ser entendido em face do disposto, inter alia, nas normas dos Artigos 433º e 435º do Código de Processo Civil; e
9. Por outro lado, o mesmo objecto revela-se como relevante, quer em face do teor dos quesitos elaborados pelo Tribunal no termo do saneamento do processo, quer em face do teor do pedido formulado nos Autos e da consequente definição de matéria relevante para a produção do juízo de mérito e da decisão que, a final, deva vir a ser proferida,
10. Razões estas pelas quais, ainda que não devesse concluir-se no sentido da nulidade do despacho recorrido, achar-se-á justificada a respectiva revogação e a respectiva e consequente substituição por um outro que ordene o prosseguimento da diligência pericial ordenada para conhecimento integral do objecto para a mesma indicado pela ora Recorrente.
INDICAÇÃO DAS NORMAS LEGAIS EM CUJA VIOLAÇÃO A DOUTA SENTENÇA RECORRIDA INCORRE, PARA CUMPRIMENTO DO DISPOSTO NO NO. 2 DO ARTIGO 598º. DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: Art. 571º, no. 1, al. b); Art. 498º, no. 2; Arts. 433º a 435º, todos do Código de Processo Civil.
Nestes termos, e nos mais em Direito consentidos que Vós, Excelentíssimos Juízes, muito doutamente suprireis, se requer:
a) Seja o despacho recorrido declarado nulo, por ausência absoluta de fundamentação, e substituído por um outro que ordene o prosseguimento da diligência pericial ordenada para conhecimento integral do objecto para a mesma indicado pela ora Recorrente;
Ou, no caso em que assim se não deva concluir
b) Seja o despacho recorrido revogado, por substantivamente não justificado em face dos pressupostos previstos na lei para a formação do objecto sobre que deva incidir a prova pericial, com a consequente e respectiva substituição por um outro que ordene o prosseguimento da diligência pericial ordenada i para conhecimento integral do objecto para a mesma indicado pela ora Recorrente;
Mais requerendo vos digneis ordenar os demais termos da lide, até final,
Para que, pela vossa douta palavra, se cumpra a consueta JUSTIÇA!».
*
Em resposta a este recurso, as rés formularam as seguintes conclusões:
«I
É verdade que o despacho recorrido e supra transcrito, visto isoladamente, carece de fundamentação.
II
Todavia, nada impede que a falta de fundamentação de uma decisão possa vir a ser suprida por ulterior despacho emanado pela mesma entidade, conforme aliás o prevê o artigo 573º do Código de Processo Civil.
III
Entendemos que o despacho de esclarecimento de fls. 571, veio suprir a falta de fundamentação do despacho recorrido.
IV
No despacho de fls. 571, o tribunal recorrido não se limitou a prestar o esclarecimento solicitado pelas ora Recorrentes e adianta que as respostas dos peritos incluirão considerações de natureza técnica que fundamentem a resposta e que, após a notificação da perícia, podem as partes solicitar esclarecimentos.
V
Deste modo, a Meritíssima Juiz a quo justifica a sua decisão por entender que a ampliação solicitada pela ora Recorrente já se encontra abrangida na resposta a dar pelos peritos e que, se, a final, assim se não verificar, podem as partes solicitar quaisquer esclarecimentos complementares.
VI
O que inclui, obviamente, a faculdade de a Recorrente pedir esclarecimentos por forma a ver contemplados os pontos que compõem o seu pedido de ampliação do objecto da perícia, caso tal venha a ser necessário.
VII
Pelo que, a ampliação requerida pode ser irrelevante por redundante, por já se encontrar abrangida no objecto determinado pelo tribunal.
VIII
Daí entendermos que a decisão recorrida se encontra legalmente justificada.
IX
A posição das Recorridas coincide com a da Meritíssima Juiz a quo, porém, caso esse Venerando Tribunal de provimento ao presente recurso, deverá seguir-se igual critério quanto ao pedido subsidiário formulado pelas ora Recorridas em 20/10/2006 e em 04/12/2006, sendo o mesmo deferido.
X
A alínea b) do pedido da Recorrente não é subsumível em nenhum dos preceitos legais que aquela considera haverem sido violados pelo despacho recorrido.
Nestes termos e nos mais de direito aplicável, sempre com o mui douto suprimento de v. Exas., deve ser considerada suprida a falta de fundamentação do despacho recorrido e indeferido o pedido para a sua revogação e substituição.
Se assim se não entender, então deverá, por igual critério, ser deferido o pedido de ampliação que as Recorridas formularam a título subsidiário.».
*
4 - O processo prosseguiu os seus trâmites, vindo oportunamente a ser proferida a sentença de fls. 1394 e sgs., que julgou a acção improcedente, como improcedente o pedido de condenação da autora como litigante de má fé (fls. 1404).
*
5 - Inconformada, dela interpôs recurso jurisdicional a autora A, cujas alegações sintetizou do seguinte modo:
«A. Especificamente quanto à verificação dos pressupostos de aquisição preferencial da acção 83-O (Títulos I a III das Alegações supra):
1) Estando a Sociedade obrigada, legal e estatutariamente, a recusar o averbamento de transmissões de acções a terceiros que não respeitem o direito de preferência estutariamente consagrado a favor da sociedade, a falta de averbamento da transmissão da acção 83-O não pode qualificar-se como não verificação de pressuposto de que dependa o exercício da preferência pela Sociedade;
2) O argumento e conclusão lavrados pelo Meritíssimo Juiz a quo têm a dupla consequência, contraditória nos termos, que ora se enuncia:
a) Por um lado, nem o alienante, nem o adquirente, podem opor à sociedade os efeitos do negócio em que são partes porque, devendo a sociedade abster-se de proceder ao respectivo registo, falha o pressuposto de que depende a eficácia daquele perante a mesma;
b) Por outro lado, nem a sociedade, nem os sócios, podem exercer os direitos de preferência que estatutariamente lhes assistem, porque se acha ausente o pressuposto cuja verificação tal exercício depende - o de que, por força do registo, haja ocorrido uma transmissão oponível à Sociedade.
3) O exercício do direito potestativo de emissão da declaração unilateral não receptícia de preferência não permite o aperfeiçoamento do negócio de transmissão designadamente nas situações em que a lei subordina. a transmissão do objecto mediato da preferência (a acção incorporada no título que a representa) ao negócio cambiário de endosso e ao averbamento da transmissão no livro de registo da sociedade emitente;
4) Porém:
c) A celebração de um contrato de compra e venda de acções nominativas faz surgir, na esfera jurídica do vendedor, o dever de ordenar os actos de que, nos termos da lei da circulação, depende a legitimação do adquirente para o exercício dos direitos de socialidade incorporados no título, fazendo outrossim surgir, na esfera jurídica do comprador, um direito de conteúdo oposto, mas convergente, com aquele dever (neste preciso sentido, cf., por todos SOVERAL MARTINS, in Cláusulas do Contrato de Sociedade que Limitam a Transmissibilidade de Acções, Coimbra, 2006, p.233)
d) E, constituindo a acção de preferência sobre negócio de alienação o mecanismo jurisdicional de garantia do direito potestativo do preferente a ingressar (a sub-rogar-se) nos direitos do transmissário, a garantia efectiva do direito do preferente depende de que o mesmo possa exercer o direito que o transmissário tem de (i) exigir a execução específica do dever do transmitente de endossar o título representativo da acção objecto do contrato de alienação e de (ii) exigir o averbamento da transmissão legal e estatutariamente regular no registo da sociedade emitente.
5) A ausência de legitimação do transmissário para o exercício dos direitos de socialidade1 - consequência da falta de averbamento da transmissão no livro de registo de acções da sociedade emitente e titular do direito de preferência, não pretere, não pretere nem limita o direito desta de preferir em vista do negócio causal.
6) As conclusões antes enunciadas - e de que se extrai a necessária e final conclusão de que a ausência do registo da transmissão não é juridicamente qualificável como não verificação de pressuposto de que depende o válido e eficaz exercício da preferência pela Recorrente - não é, tão pouco, contrariada pela alegada natureza constitutiva do registo da transmissão no livro de registo de acções da sociedade emitente:
7) (Procede-se à indicação de algumas decisões desse Venerando Tribunal quanto a esta matéria, destacando o facto de que V. Exas hajam concluído pela qualificação do registo como mera condição de eficácia perante a sociedade e perante terceiros da transmissão de que se trata);
8) (Anota-se também ser essa a posição adoptada por Menezes Cordeiro em Parecer de Direito instruído pelas ora Recorridas);
9) A natureza e efeitos não constitutivos do registo da transmissão no livro de registo da sociedade emitente é ainda confirmada, expressis verbis, pelo estatuído nos Artigos 1127º e 1128º do Código Comercial de Macau em conjugação sistemática com os quais deve ser interpretado o disposto no no. 2 do Artigo 424º do mesmo Código.
B. Especificamente quanto à verificação dos pressupostos de aquisição preferencial da acção 83-N (Títulos IV e V das Alegações supra):
10) A configuração estatutária do direito de preferência como limitação à transmissão de acções em sociedade anónima constitui uma expressão concreta do princípio da liberdade contratual;
11) No contexto societário, o exercício dessa liberdade constitui a realização de interesses da sociedade e/ou dos sócios, tal como prefigurados pelos sócios fundadores, de restringir o ingresso de terceiros no grémio societário, sem precludir o direito do sócio proposto transmitente de daquele se apartar ou de reduzir a respectiva participação capitalística no mesmo;
12) Sob o ponto de vista desses interesses - os relativos à limitação à transmissão de acções como forma de ingresso de terceiros no grémio - a circunstância de que a proposta transmissão seja feita com ou sem contrapartida é absolutamente irrelevante, razão por que o legislador não limitou as preferências estatutárias sobre a transmissão de acção aos negócios onerosos;
13) É correcta a abordagem seguida pelo Tribunal recorrido ao impostar o problema como um de interpretação das estipulações estatutárias relevantes - em particular o Artigo Sétimo dos Estatutos, da ora Recorrente. É, porém, incorrecto o resultado interpretativo a que chega, fundamentalmente porque:
e) O Artigo Sétimo não estabelece qualquer distinção entre transmissões onerosas e transmissões gratuitas, não tendo um mínimo de correspondência no seu texto a entendimento de que o mesmo se reporte apenas a transmissões onerosas;
f) Antes, e ao contrário, as expressões utilizadas quer no proémio desse artigo, quer em alíneas que se lhe seguem, estabelecem como resultado interpretativo inarredável o de que as preferências ali consagradas se exercem como direito sobre quaisquer actos entre vivos que tenham como efeito típico tomar alheias as acções representativas do capital da ora Recorrente;
g) (Procede-se, sobretudo nos parágrafos 26 a 37 da alegação supra, à análise interpretativa das estipulações estatutárias pertinentes);
h) Anota-se, outrossim, que a interpretação do Tribunal a quo teria um efeito prático equivalente ao da admissão - não consentida pelos Estatutos da ora Recorrente - da conversão das acções nominativas em acções ao portador, com a consequente defraudação dos direitos de preferência estatutariamente consagrados;
i) Nos parágrafos 48 a 51 da alegação supra, recordam-se os factos assente3s pelo Tribunal a quo de que resulta, concludente e inequivocamente, que a própria Primeira Recorrida mantém o entendimento aqui sustentado quanto ao escopo e ao âmbito objectivo dos direitos de preferência estatutariamente consagrados.
C. Da Irrelevância da não previsão estatutária do modo de determinação da contrapartida que deva ser paga pelo preferente, designadamente na situação em que a preferência seja exercida sobre alienações sem contrapartida:
14) A ausência de regulamentação nos Estatutos da Recorrente quanto à determinação da contrapartida que deva ser paga pela aquisição em exercício da preferência ocorre, quer quando a mesma tenha por objecto um negócio gratuito, quer quando a mesma tenha por objecto um negócio oneroso;
15) Compreende-se, assim, designadamente, que os Estatutos da ora Recorrente (i) não façam qualquer a “compra e venda” ou a “dação em cumprimento” e (ii) não imponham sequer que o obrigado à preferência proceda à indicação à sociedade, na notificação que é obrigado a dirigir-lhe, ao preço da transmissão (designadamente na hipótese em que a mesma deva ocorrer com causa em compra e venda);
16) O ordenamento jurídico em vigor dispõe de soluções bastantes, e especificamente adequadas, para a determinação do valor da contrapartida a liquidar pelo preferente designadamente na situação em que o negócio objecto da preferência seja um negócio sem contrapartida economicamente apreciável:
j) O primeiro estalão legal de determinação do valor nominal da contrapartida, ou do critério para a sua ulterior determinação, é a vontade das partes em acordo;
k) Valendo, na dele, o que estatui o Artigo 873º do Código Civil.
17) Sob o ponto de vista do posicionamento do credor da e do obrigado à preferência, é absolutamente irrelevante que o negócio objecto da preferência seja um negócio com contrapartida e/ou com uma contrapartida pré-determinada, ocorrendo apenas que, quando assim seja, o preferente corre o risco de poder ter de vir a adquirir contra pagamento de um preço que desconhecia antecipadamente;
18) In casu:
l) É facto assente que as partes acordaram no modo e no critério para a determinação do preço a pagar pelo exercício da preferência: a determinação, por entidade independente, do valor real das acções;
m) Mas, ainda que tal acordo não houvesse sido alcançado - ou que o seu exacto conteúdo não tivesse, como foi, sido provado - valeria ainda o mesmo critério, por força da estatuição legal previsto no Artigo 873º do Código Civil.
19) O cumprimento desse critério, quer com base no acordo alcançado, quer por aplicação da disposição legal invocada, garantem plenamente os direitos que, impreterivelmente, a proposta transmitente deve ver preservados perante o exercício da preferência:
a) A manutenção do direito de dispor das acções, exonerando-se do grémio ou reduzindo a sua participação no respectivo capital, não lhe sendo imposta a permanência na sociedade;
b) E a integração do seu património pelo valor real da propriedade que transmite.
D. Da Irrelevância do “Preço” in casu subjudice:
20) Ao invés do que tipicamente decorre da celebração de uma compra e venda, a transmissão da acção pela Primeira Ré à Terceira Ré não importaria, fosse qual fosse o preço estabelecido, qualquer enriquecimento ou empobrecimento patrimonial para qualquer uma das Primeira ou Terceira Rés.
21) Sendo a Primeira Ré a “dona” da Terceira Ré, o preço a pagar por esta seria sempre, afinal, um preço a pagar por aquela, pelo que a determinação do preço para este negócio se mostrava livre e totalmente arbitrário para a Primeira e Terceira Rés, pelo que, na verdade, a Primeira e a Terceira Rés sempre celebrariam o negócio de compra e venda, quer o preço estabelecido fosse de “X” ou de “Y”, pois sempre esse preço constituiria uma mera operação contabilística de transferência de valores entre dois patrimónios totalmente dominados e pertencentes à Primeira Ré.
22) Do mesmo modo, em relação à acção titulada pelo certificado 83-N, proposta transmitir por doação, também não há um verdadeiro animus donandi, porquanto o doador não dispõe verdadeiramente do seu património, antes o transferindo para um outro património de que o próprio transmitente é o beneficiário. A única razão pela qual a Primeira Ré se dispôs a prescindir gratuitamente do seu património a favor da Segunda Ré reside no facto de o adquirente desse bem ser, indirectamente, a própria Primeira Ré, enquanto accionista e administradora da Segunda Ré.
23) Ora, tal significa, muito concretamente, que, em tais negócios, a fixação da contrapartida, ou ausência da mesma, traduziu um mero exercício arbitrário desprovido dos típicos interesses negociais subjacentes a tais transacções.
24) O que constituem razões adicionais pelas quais se deve concluir no sentido de que a preferência possa, também em concreto, ser exercida pelo valor real, independentemente do “preço” da transmissão por “compra e venda”, ou da ausência de preço, no caso da transmissão por “doação”.
E. O Direito à transmissão das acções em Cumprimento de Contrato Da Irrelevância do “Preço”:
25) Sem prejuízo da alegação anterior, está assente nos Autos que a ora Recorrente declarou a sua vontade de aquisição das acções objecto da declaração de preferência pelo valor unilateralmente fixado pela ora Recorrente;
26) Procede-se à indicação do rol de factos assentes pelo qual tal resulta provado.
27) A recusa em reconhecer o direito da Recorrente à aquisição das acções pelas ora Recorridas constituiria, assim, em qualquer caso, uma violação de contrato a reintegrar por esta mesma acção.
F. Recurso quanto à Matéria de Facto:
28) Requer-se que seja dada nova formulação às as alíneas seguintes do rol de factos assentes:
Alínea P)
“A 1ª Ré e E, são, juntamente com outros, sócios e directores da C Limited”
Alínea R)
“A ora 1ª Ré é a sua única directora”.
Indicação das disposições violadas em cumprimento do disposto no Artigo 598º, nº 2, al a) do Código de Processo Civil): artigo 7º dos Estatutos da ora Recorrente, artigos 424º, nº 2, 1126 a 1133º do Código Comercial, artigos 873º e 326º e 228º do Código Civil e artigos 410º e 471 º do Código de Processo Civil.
Nestes termos, e nos mais em Direito consentidos que V. Exa. doutamente suprirá se requer que o presente recurso seja julgado procedente, por provado e por legalmente justificado, com a consequente revogação da decisão proferida e a sua substituição por outra que conclua julgando procedentes os pedidos originariamente deduzidos.».
*
Contra-alegaram as rés a este recurso, em termos que aqui damos por reproduzidos.
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Cumpre decidir.
***
II – Os Factos
1 – A sentença deu por assente a seguinte factualidade:
«A 19 de Maio de 2005, a R. B comunicou à A. a sua intenção de proceder à transmissão de duas acções representativas do capital social da A., com os n.ºs 83-N e 83-O, tudo nos termos constantes do documento junto aos autos a fls. 30 cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido. (A)
Em 30 de Maio de 2005, o Conselho de Administração da A. reuniu, tendo deliberado, a propósito da referida transmissão, por unanimidade de votos:
a) assegurar que o identificado propósito da accionista B - de, contra a vontade da sociedade e dos seus accionistas, introduzir quaisquer estranhos seu capital social - não seja alcançado, atenta a gravidade das suas consequências para o futuro da sociedade;
b) tomar as diligências judiciais ou outras que se mostrem necessárias e adequadas para sustar as referidas pretensões da accionista B, designadamente, e salvo melhores pareceres de especialistas na matéria;
c) que a sociedade entende que a projectada doação de uma acção está sujeita ao direito de preferência pelo valor que resultar de uma independente ou do valor que a accionista B vier a atribuir a tal projectada doação desde que esse valor seja razoável e fundamentado;
d) que a sociedade entende que a projectada venda de uma acção pelo preço de HKD$2.960.000,00 está viciada de simulação de preço, sem prejuízo de estar também sujeita aos direitos de preferência estatutariamente estabelecidos;
e) que a sociedade, atentas as considerações já feitas, e independentemente dos valores reais que se vierem a apurar para a projectada doação bem como apura a projectada venda, quer exercer a preferência a que tem direito nos termos estatutários, o que desde já delibera fazer;
f) responder à carta da accionista B comunicando as deliberações tomadas neste Conselho a este propósito, bem como convidando a accionista, no prazo de três dias após o recebimento da resposta da sociedade, a comunicar o valor que atribui à projectada doação;
g) comunicar igualmente aos projectados adquirentes que as transmissões em causa se encontram estatutariamente sujeitas ao direito prioritário da A de as adquirir para si. Assim, tendo esse direi to sido agora e validamente exercido pela A, encontra-se impossibilitada a aquisição das mesmas acções pelo C Limited e D Limited, clarificando-se que a transmissão das referidas acções em desrespeito dos direitos da A será ineficaz em face da sociedade, não sendo por esta averbados os negócios celebrados sobre as referidas acções de que a accionista B seja titular;
h) solicitar, desde já, a uma entidade idónea e independente a avaliação das duas acções que a accionista projecta transmitir por forma a se poder ajuizar da razoabilidade do valor que a accionista vier a atribuir à projectada doação bem como fundamentar a arguição de simulação do preço no que respeita à projectada venda da outra acção;
i) interpor os necessários procedimentos judiciais que impeçam que B consume os seus propósitos de transmissão das acções a terceiros estranhos à sociedade e que garantam o efeito útil de eventuais acções judiciais que tenham de ser intentadas pela A para salvaguarda dos seus direitos, dos seus interesses e do cumprimento dos estatutos da sociedade;
j) que, das deliberações agora tomadas deverá ser dado conhecimento aos senhores accionistas em assembleia geral extraordinária cuja convocatória será pedida por este Conselho, entre outros, também para esse efeito.
Tais deliberações, após terem sido confirmadas pelo colectivo dos sócios em reunião da Assembleia Geral da A., foram comunicadas à 1ª R., em 31 de Maio de 2005, e deste modo manifestada a declaração de preferência da A. (C)
Tais deliberações foram comunicadas às 2ª e 3ª RR., em 3 de Junho de 2005, e deste modo manifestada a declaração de preferência da A. (D)
Por comunicação datada de 13 de Junho de 2005 que chegou ao conhecimento da A. a 14 daquele mesmo mês ano, a 1ª R. nomeou corno perito para analisar os livro da A, tendo em vista o apuramento do valor das duas acções, o Sr. XXX. (E)
A 26 de Junho de 2005, a 1ª R. comunicou à A. que considerava extinto o direito de preferência relativo à transmissão das acções às 2º e 3º RR., por não exercício tempestivo. (F)
A 27 de Junho de 2005, a 1ª R. comunicou à A. que considerava extinto o direito de preferência relativo à transmissão das acções às 2º e 3º RR., por não exercício tempestivo, solicitando o averbamento dessa mesma transmissão no livro de registo de acções da Sociedade. (G)
A 4 de Julho de 2005, a 1ª R. declarou estar disponível para que se procedesse a uma avaliação do valor das acções da A. (H)
Em resposta remeteu a A. à 1ª R. a carta junta aos autos a fls. 138 e 139, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido. (J)
Em 22 de Julho de 2005 respondeu a 1ª R. nos termos constantes dos documentos juntos aos autos a fls. 140 a 142 e 143 a 145, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido. (J)
A A. rege-se pelos Estatutos juntos aos autos a fls. 147 a 169, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido. (L)
As 2ª e 3ª RR. não são sócias da A., não detendo, até então, qualquer participação no capital social da A. (M)
A 1ª R. recusou entregar à A. as acções. (N)
A C, Limited, é uma pessoa colectiva constituída e regida segundo a lei em vigor Região Administrativa Especial de Hong Kong. (O)
A ora 1º R. e E, são, juntamente com outros, directores da C, Limited. (P)
A D Limited é uma sociedade constituída e regida segundo a lei em vigor na Região Administrativa Especial de Hong Kong e foi constituída em Abril de 2005. (Q)
A ora 1ª R. é a sua única directora. (R)
As acções representadas pelos títulos n.ºs 83-N 83-O são acções ordinárias. (S)
Em Maio de 2005, o valor das acções ordinárias representativas do capital da A. é de MOP$901.000,00. (1º)
Em Maio de 2005, o valor das acções priviligiadas representativas do capital da A. é de MOP$1.298.000,00 (2º).
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Dos autos, documentalmente e por confissão, decorre ainda o seguinte, que, para os devidos efeitos, se passa a consignar:
- Em Junho de 2005 a 1ª ré doou a acção ordinária nº 83-N a “C Limited” (fls. 102) e vendeu a acção ordinária nº 83-O a “D Limited” pelo preço de Mop$ 2.960.000,00 (fls. 103).
- Tais acções não chegaram a ser averbadas no livro de registo de acções da A.
***
III – O Direito
1 – Do 1º recurso interlocutório
O Juiz do tribunal “a quo”, a propósito da excepção de ilegitimidade suscitada pela 2ª ré da acção “C Limited”, decidiu no saneador o seguinte:
«…O Tribunal é competente em razão da matéria, hierarquia e nacionalidade.
O processo é o próprio e a petição inicial não é inepta.
As partes têm personalidade e capacidade judiciária.
Na sua contestação vem a Ré C Limited arguir a sua ilegitimidade e pedir a sua absolvição da instância, porquanto a acção a si transmitida - 83-N- o foi a título de doação e, como tal, tal transmissão não onerosa não comporta o direito de preferência.
Na réplica vem a Autora pugnar pela improcedência de tal excepção porquanto a Ré C Limited não afasta a sua qualidade de donatária da acção 83-N, sendo certo que a Autora exerceu sobre ela a sua preferência estatutariamente consagrada.
Cumpre decidir.
Estabelece o artº 58º do Código de Processo Civil que “na falta de indicação da lei em contrário, possuem legitimidade os sujeitos da relação material controvertida, tal como é configurada pelo autor”.
Resulta do preceito citado que ou a legitimidade para intentar acção judicial ou para contestar acção judicial, resulta da lei ou, a não ser assim, esta é determinada pela relação material controvertida, na configuração que lhe é dada pelo Autor.
Ora, no caso sub judice, vem a Autora arguir que perante a notícia da venda e da doação de duas acções, por parte da Ré, exerceu o seu direito de preferência relativamente a ambas. Ora, da relação material controvertida, tal como é configurada pela Autora, o seu direito de preferência e seu exercício, resulta que é aquela Ré parte interessada para ser demandada, até porque não põe em causa a sua posição de donatária da acção 83-N.
Coisa distinta, é se face à forma de transmissão - doação - a Autora poderá ou não exercer o direito de preferência, mas tal questão não tem a ver com a legitimidade para ser demandada, mas antes com a procedência ou não da acção (trata-se de uma questão de mérito).
Assim sendo, julgo parte legitima a Ré C Limited. As partes são legítimas e encontram-se devidamente patrocinadas.».
*
E sobre a excepção de caducidade, decidiu o seguinte:
«Na sua contestação vem a Ré B arguir a caducidade do direito a exercer a preferência porquanto aquele, designadamente no que ao depósito do preço diz respeito, não foi exercido no prazo estabelecido de três dias, a contar do termo do prazo para declarar a intenção de exercer aquele direito.
Na sua réplica vem a Autora pedir que se julgue improcedente a invocada excepção porquanto não foram postos em causa os factos por si alegados quanto àquele exercício.
Cumpre decidir.
Com relevo para a decisão ficaram apurados os seguintes factos:
A) A 19 de Maio de 2005 a Ré B comunicou à Autora a sua intenção de proceder à transmissão de duas acções representativas do capital social da Autora, com os nºs 83-N e 83-O, tudo nos termos constantes do documento junto aos autos a fls. 30 cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido.
B) Em 30 de Maio de 2005 o Conselho de Administração da Autora reuniu, tendo deliberado, a propósito da referida transmissão, por unanimidade de votos:
a) assegurar que o identificado propósito da accionista B - de, contra a vontade da sociedade e dos seus accionistas, introduzir quaisquer estranhos no seu capital social - não seja alcançado, atenta a gravidade das suas consequências para o futuro da sociedade;
b) tomar as diligências judiciais ou outras que se mostrem necessárias e adequadas para suster as referidas pretensões da accionista B, designadamente, e salvo melhores pareceres de especialistas na matéria;
c) que a sociedade entende que a projectada doação de uma acção está sujeita ao direito de preferência pelo valor que resultar de uma avaliação independente ou do valor que a accionista B vier a atribuir a tal projectada doação desde que esse valor seja razoável e fundamentado;
d) que a sociedade entende que a projectada venda de uma acção pelo preço de HK$ 2.960.000,00 está viciada de simulação de preço, sem prejuízo de estar também sujeita aos direitos de preferência estatutariamente estabelecidos;
e) que a sociedade, atentas as considerações já feitas, e independentemente dos valores reais que se vierem a apurar para a projectada doação bem como para a projectada venda, quer exercer a preferência a que tem direito nos termos estatutários, o que desde já delibera fazer;
f) responder à carta da accionista B comunicando as deliberações tomadas neste Conselho a este propósito, bem como convidando a accionista, no prazo de três dias após o recebimento da resposta da sociedade, a comunicar o valor que atribui à projectada doação;
g) comunicar igualmente aos projectados adquirentes que as transmissões em causa se encontram estatutariamente sujeitas ao direito prioritário da A de as adquirir para si. Assim, tendo esse direito sido agora e validamente exercido pela A, encontra-se impossibilitada a aquisição das mesmas acções pela C Limited e D Limited, clarificando-se que a transmissão das referidas acções em desrespeito dos direitos da A será ineficaz em face da sociedade, não sendo por esta averbados os negócios celebrados sobre as referidas acções de que a accionista B seja titular;
h) solicitar, desde já, a uma entidade idónea e independente a avaliação das duas acções que a accionista projecta transmitir por forma a se poder ajuizar da razoabilidade do valor que a accionista vier a atribuir à projectada doação bem como fundamentar a arguição de simulação do preço no que respeita à projectada venda da outra acção;
i) interpor os necessários procedimentos judiciais que impeçam que B consume os seus propósitos de transmissão das acções a terceiros estranhos à sociedade e que garantam o efeito útil de eventuais acções judiciais que tenham de ser intentadas pela A para salvaguarda dos seus direitos, dos seus interesses e do cumprimento dos estatutos da sociedade;
j) que, das deliberações agora tomadas deverá ser dado conhecimento aos senhores accionistas em assembleia geral extraordinária cuja convocatória será pedida por este Conselho, entre outros, também para esse efeito.
C) Tais deliberações, após terem sido confirmadas pelo colectivo dos sócios em reunião da Assembleia Geral da Autora, foram comunicadas à 1ª Ré, em 31 de Maio de 2005, e deste modo manifestada a declaração de preferência da Autora.
D) Tais deliberações foram comunicadas às 2a e 3a Rés, em 3 de Junho de 2005, e deste modo manifestada a declaração de preferência da Autora.
E) Por comunicação datada de 13 de Junho de 2005 e que chegou ao conhecimento da Autora a 14 daquele mesmo mês e ano, a 1 a Ré nomeou como perito para analisar os livros da A, tendo em vista o apuramento do valor das duas acções, o Sr. Ian Robinson.
F) A 26 de Junho de 2005, a 1ª Ré comunicou à Autora que considerava extinto o direito de preferência relativo à transmissão das acções às 2º e 3º Rés, por não exercício tempestivo.
G) A 27 de Junho de 2005, ala Ré comunicou à Autora que considerava extinto o direito de preferência relativo à transmissão das acções às 2º e 3º Rés, por não exercício tempestivo, solicitando o averbamento dessa mesma transmissão no livro de registo de acções da Sociedade.
H) A 4 de Julho de 2005 a 1ª Ré declarou estar disponível para que se procedesse a uma avaliação do valor das acções da A.
I) Em resposta remeteu a Autora à 1ª Ré a carta junta aos autos a fls. 138 e 139, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido.
J) Em 22 de Julho de 2005 respondeu a 1ª Ré nos termos constantes dos documentos juntos aos autos a fls. 140 a 142 e 143 a 145, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido.
L) A Autora rege-se pelos Estatutos juntos aos autos a fls. 147 a 169, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido.
M) As 2º e 3º Rés não são sócias da Autora, não detendo, até então, qualquer participação no capital social da Autora.
N) A 1ª Ré recusou entregar à Autora as acções.
O) A C, Inc é uma sociedade constituída e regida segundo a lei em vigor na Região Administrativa Especial de Hong Kong.
P) A ora 1º Ré e E, são, juntamente com outros, directores da C, Inc.
Q) A D Limited é uma sociedade constituída e regida segundo a lei em vigor na Região Administrativa Especial de Hong Kong e foi constituída em Abril de 2005.
R) A ora 1ª Ré é a sua única directora.
S) As acções representadas pelos títulos nºs 83-N e 83-O são acções ordinárias.
Estabelece o artº 408º do Código Civil que “o pacto de preferência consiste na convenção pela qual alguém assume a obrigação de dar preferência a outrem na venda de determinada coisa”.
Resulta deste preceito que a obrigação que o promitente assume é uma obrigação condicionada, como refere Almeida Costa in Obrigações, 3ª edição, pág. 297. Ele fica adstrito a dar preferência a outrém na realização de certo contrato, mas somente se compromete a preferi-lo, tanto por tanto, se vier a existir um projecto de realização desse contrato e se tal projecto, comunicado ao promissário, for por ele aceite.
Ora, no caso sub judice, e de acordo com o artº 7º, nº 1 dos Estatutos da Autora “é livre a cedência de acções ordinárias simples ou privilegiadas entre os accionistas mas a sua alienação a estranhos não terá efeitos com relação à sociedade, nem o adquirente obterá o direito ao respectivo averbamento sem a observância do seguinte:
a) o accionista que desejar ceder ou alienar qualquer acção, assim o comunicará, por escrito, ao Conselho de Administração, indicando o número de acção e o nome da pessoa ou entidade à qual pretende fazer a alienação ou cedência.
b) o Conselho de Administração deliberará no prazo de dez dias se a sociedade pretende usar o direito de preferência, e não o querendo, avisará, por carta registada, os accionistas que tenham acções na sede da sociedade para, no prazo de cinco dias, a contar da recepção do aviso, declararem, também por carta registada, se querem usar desse direito.
c) (...).
d) não pretendendo a sociedade nem os accionistas optar, pode a alienação ou cedência ser feita livremente, passando o Conselho de Administração a necessária declaração de não ter usado o direito de preferência.
e) a propriedade e a transmissão de acções somente produzem efeitos para coma sociedade após o averbamento no competente livro de registo e desde a data desse averbamento.
Ora, resulta deste preceito o direito de preferir na cedência ou alienação das acções, primeiro por parte da sociedade ora Autora e depois por parte dos seus accionistas.
E tal direito de preferência, no que à sociedade Autora diz respeito, terá de ser exercido, após a comunicação por escrito da intenção de alienação ou cedência da acção, cujo número tem de ser indicado e o nome da pessoa ou entidade a quem se pretende alienar ou ceder, no prazo de dez dias, sob pena de caducidade, como decorre do nº 2 do art. 410º do Código Civil.
Na verdade, o prazo para exercer o direito de preferência conta-se a partir da data em que o preferente teve conhecimento dos elementos essenciais da alienação ou cedência, devendo entender-se como elementos essenciais todos aqueles factores capazes de influir decisivamente na formação da vontade de preferir ou não, todos os elementos reais do contrato que possam ter importância no estabelecimento duma decisão num sentido ou noutro [Por todos e a título meramente exemplificativo, o Ac. RPorto de 19.6.1970, JR 16º, 560; Ac. R. Porto de 25.6.1970, JR 16º, 562, Ac STJPortuguês de 12.11.1974, in BMJ 241º, 290, e RLJ 108º, 351], designadamente a identidade dos outorgantes, o objecto do contrato e o preço fixado [Por todos, e a titulo meramente exemplificativo, o Ac. STJPortuguês de 3.7.1984, in BMJ, 339, 383].
Ora, conforme se apurou, a 19 de Maio de 2005 a Ré B, comunicou à Autora a sua intenção de proceder à transmissão de duas acções representativas do capital social da Autora, com os nºs 83-N e 83-O, tudo nos termos constantes do documento junto aos autos a fls. 30 cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido, referindo o beneficiário da alienação e, quanto à segunda das acções, o preço da venda.
Daqui decorre que, pela 1ª Ré, foi respeitado o dever de comunicação ao titular do direito de preferência, da sua intenção de ceder - num caso vender e noutro doar - das acções 83-N e 83-O, de que é titular.
Por outro lado, apurado ficou que em 30 de Maio de 2005 o Conselho de Administração da Autora reuniu, tendo deliberado, a propósito da referida transmissão, por unanimidade de votos:
a) assegurar que o identificado propósito da accionista B - de, contra a vontade da sociedade e dos seus accionistas, introduzir quaisquer estranhos no seu capital social - não seja alcançado, atenta a gravidade das suas consequências para o futuro da sociedade;
b) tomar as diligências judiciais ou outras que se mostrem necessárias e adequadas para suster as referidas pretensões da accionista B, designadamente, e salvo melhores pareceres de especialistas na matéria;
c) que a sociedade entende que a projectada doação de uma acção está sujeita ao direito de preferência pelo valor que resultar de uma avaliação independente ou do valor que a accionista B vier a atribuir a tal projectada doação desde que esse valor seja razoável e fundamentado;
d) que a sociedade entende que a projectada venda de uma acção pelo preço de HK$ 2.960.000,00 está viciada de simulação de preço, sem prejuízo de estar também sujeita aos direitos de preferência estatutariamente estabelecidos;
e) que a sociedade, atentas as considerações já feitas, e independentemente dos valores reais que se vierem a apurar para a projectada doação bem como para a projectada venda, quer exercer a preferência a que tem direito nos termos estatutários, o que desde já delibera fazer;
t) responder à carta da accionista B comunicando as deliberações tomadas neste Conselho a este propósito, bem como convidando a accionista, no prazo de três dias após o recebimento da resposta da sociedade, a comunicar o valor que atribui à projectada doação;
g) comunicar igualmente aos projectados adquirentes que as transmissões em causa se encontram estatutariamente sujeitas ao direito prioritário da A de as adquirir para si. Assim, tendo esse direito sido agora e validamente exercido pela A, encontra-se impossibilitada a aquisição das mesmas acções pela C Limited e D Limited, clarificando-se que a transmissão das referidas acções em desrespeito dos direitos da A será ineficaz em face da sociedade, não sendo por esta averbados os negócios celebrados sobre as referidas acções de que a accionista B seja titular;
h) solicitar, desde já, a uma entidade idónea e independente a avaliação das duas acções que a accionista projecta transmitir por forma a se poder ajuizar da razoabilidade do valor que a accionista vier a atribuir à projectada doação bem como fundamentar a arguição de simulação do preço no que respeita à projectada venda da outra acção;
i) interpor os necessários procedimentos judiciais que impeçam que B consume os seus propósitos de transmissão das acções a terceiros estranhos à sociedade e que garantam o efeito útil de eventuais acções judiciais que tenham de ser intentadas pela A para salvaguarda dos seus direitos, dos seus interesses e do cumprimento dos estatutos da sociedade;
j) que, das deliberações agora tomadas deverá ser dado conhecimento aos senhores accionistas em assembleia gerai extraordinária cuja convocatória será pedida por este Conselho, entre outros, também para esse efeito.
Ora, tais deliberações, após terem sido confirmadas pelo colectivo dos sócios em reunião da Assembleia Geral da Autora, foram comunicadas à 1 a Ré, em 31 de Maio de 2005, e deste modo manifestada a declaração de preferência da Autora e foram comunicadas às 2a e 3a Rés, em 3 de Junho de 2005, e também deste modo manifestada a declaração de preferência da Autora.
E não se diga que a 1 a Ré dela não teve conhecimento uma vez que, por comunicação datada de 13 de Junho de 2005 e que chegou ao conhecimento da Autora a 14 daquele mesmo mês e ano, aquela nomeou como perito para analisar os livros da A, tendo em vista o apuramento do valor das duas acções, o Sr. XXX.
Destes factos se conclui que as Rés tomaram conhecimento da declaração de preferência emitida pela Autora e da intenção desta discutir o valor das acções em causa - daí a necessidade da 1º Ré ter nomeado um perito para examinar os livros da A.
Por outro lado, resulta que com a comunicação das deliberações do colectivo de sócios da A, tomaram as Rés conhecimento que aquela iria solicitar, a uma entidade idónea e independente, a avaliação das duas acções que a accionista projectava transmitir por forma a se poder ajuizar da razoabilidade do valor que a accionista viesse a atribuir à projectada doação bem como fundamentar a arguição de simulação do preço no que respeita à projectada venda da outra acção.
Ou seja, a Autora deu a conhecer às Rés que discordava do valor atribuído à acção que a 1ª Ré pretendia vender porque entendia haver simulação do preço, questão que é suscitada nos presentes autos, conforme resulta do artº 50 da PI e do pedido formulado sob a alínea d).
Ora, em relação à simulação do preço nos casos de exercício do direito de preferência e no que ao Direito Português diz respeito, ponderou Antunes Varela in RLJ, 100º, 352, nos termos seguintes: “Em face do novo preceito, art.1410º nº1 do Código Civil, a única dúvida legítima que pode suscitar-se, no caso especial de simulação de preço, é a de saber se o prazo deve contar-se a partir do momento em que, informado da simulação, o preferente teve conhecimento do preço real ou antes da data em que a decisão proferida na acção de simulação fixou o preço real da operação. E continuou - por nossa parte, inclinamo-nos francamente para a segunda solução.
Antes de julgada a acção, o titular da preferência não terá muitas vezes senão uma convicção ou uma suspeita, mais ou menos fundamentada, acerca da simulação; mesmo quando a convicção seja firme, bem documentada; há que contar sempre com os riscos e os imponderáveis próprios da acção judicial. Por isso, de verdadeiro conhecimento dos elementos essencial que é o preço só poderá falar-se, com inteira propriedade, a partir do momento em que, instruída e julgada a causa, o tribunal o apurou e declarou. Contra esta dilação do prazo não pode argumentar-se com qualquer interesse sério do alienante ou do adquirente, visto que ela só funciona quando a simulação se prove, e, nesse caso, o intuito com que as partes agiram de enganar ou prejudicar terceiros pode não merecer a protecção da lei. Quanto ao titular da preferência, volta a dizer-se que não há nenhuma razão válida para que não se lhe concedida, após conhecimento firme, seguro do preço real, por que a venda foi efectuada, o mesmo prazo que lhe é facultado, quando a venda não seja simulada, para decidir sobre o exercício do seu direito e para obter os meios necessários”.
Neste mesmo sentido, parece pronunciar-se Vaz Serra in RLJ 111º, 260, quando diz que na hipótese de ter existido simulação de preço, sendo o preço real inferior ao declarado e o titular do direito de preferência querer exercer o respectivo direito por aquele, o prazo para a acção de preferência só começa a correr após o trânsito em julgado da decisão - proferida na acção de simulação - que fixe qual foi o preço real; sendo julgada improcedente a acção de simulação o direito do preferente, que não tenha proposto a acção de preferência dentro do prazo legal a contar do seu conhecimento do contrato e do preço nele declarado, ou não tenha efectuado o depósito desse preço no prazo do nº 1 do art. 1410º, só caduca quando ele preferente conhecesse que tal preço era o verdadeiro e hajam decorrido seis meses após esse conhecimento.
Perante estes ensinamentos, entendemos que face à invocada simulação quanto ao preço da acção a vender e à necessidade de fixação do preço da acção a doar, simulação que foi na presente acção invocada e fixação do valor que é pedida, entendemos improcedente a invocada caducidade».
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Vejamos.
Este 1º recurso interlocutório foi interposto pelas rés, sendo que a sentença da 1ª instância foi objecto de recurso pela autora. Circunstância que, pela cronologia e lógica retiradas do art. 628º, nº2, do CPC, nos obrigará a conhecê-lo somente no caso de a sentença não vir a ser confirmada.
Veremos, oportunamente, se haverá necessidade disso.
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2 – Do 2º recurso interlocutório
Uma vez que este recurso foi interposto pela mesma parte (autora) que recorreu da sentença, impor-se-á o seu conhecimento, face ao disposto no art. 628º, nº3, do CPC, uma vez que a sua procedência pode exercer influência no exame e desfecho da causa.
Pois bem. A A, autora da acção, tinha requerido uma perícia com vista ao apuramento do valor das suas acções, formulando um naipe de questões que queria fossem respondidas. O requerimento foi este:
“2. Para efeitos de ulterior fixação, pelo Tribunal, do objecto da perícia, e considerando o disposto no Artigo 498º do Código de Processo Civil, requer seja solicitado aos Senhores peritos que se pronunciem sobre as questões seguintes:
1. Qual o valor real (“fair market value”) de uma acção ordinária representativa do capital social da A. S.A.?
2. Qual o valor real (“fair market value”) de uma acção privilegiada representativa do capital social da A. S.A.?
3. O valor real (“fair market value”) de uma acção representativa do capital social da A, S.A. é, ou não, condicionado pelo direito de preferência a que faz referência o Artigo Sétimo dos Estatutos da Sociedade? Em caso de resposta afirmativa, porquê e, concretamente, em que termos?
4. A política histórica seguida pela A, S.A. em matéria de distribuição de dividendos condiciona, ou não, e, em caso de resposta afirmativa, em que termos, o valor real (“fair market value”) das acções representativas do respectivo capital?
5. A concreta repartição do capital social da A, S.A. condiciona, ou não, e, em caso de resposta afirmativa, em que termos, o valor real (“fair market value”) das acções representativas do respectivo capital?”
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O despacho que recaiu sobre este requerimento foi do seguinte teor (fls. 561):
“Admite-se, face ao disposto no art. 490º do Código de Processo Civil, a realização da perícia para resposta aos itens 1º e 2º da base instrutória, conforme requerido”.
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A requerente A pediu esclarecimento sobre o teor do despacho e, em resposta, foi proferido o seguinte despacho:
“O despacho em que se determinou a realização da perícia é claro: devem os Srs. Peritos responder à matéria quesitada sob os números 1 e 2 da base instrutória, e apenas a esta, sem prejuízo de, para assim responderem, tecerem considerações de natureza técnica que fundamentem a resposta.
Diga-se, no entanto, que após a notificação da perícia, podem as partes solicitar esclarecimentos.”
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Apreciando
Considera a recorrente que o despacho em apreço (fls. 561) é nulo porque desprovido de qualquer fundamentação, que a aclaração de fls. 571 não chegou a suprir. Estaria assim cometida a invalidade a que respeita o art. 571º, nº1, al. b), do CPC.
Antes de mais nada, não é verdade que o juiz tenha indeferido ou rejeitado o pedido de realização da perícia ou que se tenha “recusado” a fixar o seu objecto, ao contrário do que, de uma maneira mais ou menos clara, o recorrente aduz nas suas alegações (ver art. 3º a 5º do respectivo articulado).
Ao admitir a perícia no primeiro despacho não se pode de maneira nenhuma aceitar que o facto de o juiz não ter feito expressa alusão às questões formuladas pela requerente significaria que a todas elas a perícia deveria responder. Esse é, quanto a nós, o primeiro vício das alegações do recurso. O juiz admitiu a perícia, mas para responder às questões enunciadas nos artigos 1º e 2º da Base Instrutória. Essas eram as questões únicas a que os senhores peritos deveriam dar resposta. Ao fixar dessa maneira o objecto da perícia, obviamente estava a restringir o objecto da prova nos termos em que ela foi requerida. Para o tribunal, e até mesmo para a requerente, essencial era apurar o valor das acções ordinárias e privilegiadas da A. As outras questões apresentadas pela requerente não pareceram essenciais para o objectivo da perícia. É isto o que se deve colher da interpretação fria do dito despacho.
Quer isto dizer que quando o despacho de fls. 561 admitiu a realização da diligência, logo fixou o seu objecto e enunciou as questões de facto a que os peritos deveriam responder. Eram para si essenciais os factos constantes dos artigos 1º e 2º da base instrutória, referentes ao valor das acções ordinárias e privilegiadas da A. Cumpriu-se, assim, o art. 499º, nºs 1 e 2, do CPC.
Ora, como bem se sabe, o juiz pode restringir o âmbito preciso da diligência se considerar irrelevantes algumas das questões propostas pelo requerente. Note-se, aliás, que se é certo que o requerente deve enunciar as questões que pretende ver esclarecidas (art. 498º, nº1, CPC), verdade é também que ao juiz cabe o poder de acolher ou não o objecto proposto nos termos em que a pretensão tiver sido formulada (art. 499º, nº1, do CPC). Por isso mesmo, o nº2 deste artigo permite ao juiz rejeitar, alargar ou restringir o objecto da “proposta”, consoante os casos.
O que o juiz fez com o despacho de fls. 461 foi, precisamente, restringir o objecto da perícia. Evidentemente, o nº2 do art. 499º citado não confere um poder arbitrário. Sendo discricionário o poder que o legislador confere ao juiz, certo é que o juiz deve exprimir minimamente as razões do alargamento ou da restrição do objecto da perícia assentes na inadmissibilidade ou irrelevância parcial da proposta pela parte requerente. Nesta ordem de ideias, aqui já é vinculado o poder do titular do processo, isso é certo. O juiz deve, portanto, dizer por que determina a realização da perícia num sentido e não noutro. E se não o disser expressamente, ao menos deve ele inferir-se do teor da sua decisão em termos que não deixem margem de suspeita acerca da sua vontade.
Justificava-se a aclaração?
A requerente da perícia achou que devia colocar o tribunal na necessidade de esclarecer o âmbito do despacho de fls. 561, apesar de ele ser bem claro, na nossa opinião.
E o que foi que o despacho de fls. 571 disse? Disse aquilo que, certamente, já a requerente sabia: que o objecto da perícia estava restringido à matéria dos artigos 1º e 2º da base instrutória (“apenas a esta”) e que, portanto, as “questões” eram só duas. Mas o despacho disse mais alguma coisa. Acrescentou que os senhores peritos podiam fundamentar o seu laudo com considerações de ordem técnica e que, até mesmo após o resultado da perícia, podiam as partes solicitar esclarecimentos a que eles podiam de novo responder. Ora, isto não é mais do que um reforço daquilo que da lei se conhece, nomeadamente do art. 500º do CPC.
Este despacho “esclarecedor”, no que à matéria do recurso concerne, complementa substancialmente o anterior e, por conseguinte, o seu conteúdo passa a integrar o despacho aclarado (cfr. art. 569º, nº 3 e 573º, nº2, do CPC).
Da concatenação de ambos resulta mais do que evidente que apenas duas seriam as questões a responder e que todas as outras que saíssem desses limites materiais, e que tivessem sido formuladas pela requerente, não seriam objecto de incidência da perícia, ainda que sobre elas pudessem os senhores peritos fazer pronúncia, não em termos de resposta vinculada individual e específica, mas em termos de adição de elementos acessórios se por eles julgados pertinentes.
Ou seja, o tribunal, ao admitir que a matéria das restantes questões apresentadas pela requerente pudesse ser objecto de atenção dos peritos em termos de “considerações de natureza técnica” (não em termos de resposta individual às respectivas perguntas) estava a considerar que ela não era “inadmissível”. Mas, por outro lado, ao limitar a resposta dos senhores peritos às duas questões enunciadas na base instrutória, implícita ou tacitamente (permita-se-nos o uso analógico do comando legal do art. 209º, nº1, 2ª parte, do CC para a integração do conceito de declaração tácita) estava a considerar que as restantes para si eram irrelevantes.
Relevante, para todas as partes, incluindo a própria recorrente - de acordo com o teor das suas alegações e conclusões respectivas - era saber do valor das acções, até mesmo para efeito da eventual fixação do preço de cada uma, caso o tribunal viesse a dar razão à autora e reconhecer-lhe a preferência na alienação por parte da 1ª ré. E isso, reconheça-o humildemente a recorrente, é o que ressuma do despacho de fls. 561, esclarecido a fls. 571 em moldes que não deixam margem para dúvida.
Eis, pois, por que se não pode dizer que ocorre falta de fundamentação ou injustificação para a restrição do objecto da perícia determinada pelo juiz.
Sendo assim, o recurso não pode proceder, por não se julgarem violadas as normas invocadas nas alegações de recurso e respectivas conclusões.
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3 – Do recurso da sentença
3.1 – Recurso quanto à matéria de facto
Por razões de método lógico, comecemos pela análise do recurso jurisdicional pela parte respeitante à matéria de facto (Capítulo VIII do recurso).
Defende a recorrente que a alínea P) da matéria de facto assente (“A ora 1º R. e E, são, juntamente com outros, directores da C, Limited.”) deve sofrer alteração.
Em sua opinião, deve passar a constar que “A ora 1º R. e E, são, juntamente com outros, sócios e directores da C, Limited”.
Isto o defende na esteira do que consta do documento de fls. 53 dos autos, que não foi impugnado.
Tem razão. O documento de fls. 32, bem como o de fls. 45 a 53 vº mostra que aqueles membros são sócios fundadores. Assim, provido o recurso nesta parte, proceder-se-á à alteração da respectiva factualidade nos termos propostos.
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Pugna, ainda, a recorrente que a alínea R da especificação, reportada à sociedade que nos autos figura como 3ª ré, “D Limited” (“A ora 1ª Ré é a sua única directora), passe a ter a seguinte redacção A ora “1ª ré é a sua única sócia e única directora”.
A razão de ser para a impugnação prende-se com o teor dos documentos de fls. 196 a 199.
Na medida em que tais documentos não foram impugnados, acha a recorrente que se deve fixar o conteúdo daquela alínea nos termos acima referidos.
Tem razão mais uma vez, face ao que consta do documento de fls. 196 a 211, bem assim como dos de fls. 404 e 405 dos autos. Assim, também provido o recurso nesta parte, proceder-se-á à alteração da respectiva factualidade nos termos propostos.
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3.2 – Do mérito da sentença
Pretendia a recorrente, recorde-se, que a transmissão de duas acções que a 1ª ré, B, detinha no capital da A, fosse declarada nula ou ineficaz e que, pelo exercício do direito de preferência, delas fosse reconhecida dona pelo preço de HK$3.900.000,00.
A sentença separou o estudo das acções.
Em relação à que fora objecto de doação (acção incorporada no título 83-N), entendeu que a autora não tinha direito de preferência, por se tratar de negócio gratuito.
Em relação à que fora objecto de venda (acção 83-O), e com base no art. 424º, nº2, do Código Comercial, entendeu que não podia o pedido ser julgado procedente, em virtude de a acção continuar a pertencer à 1ª ré, B, por não ter sido feito ainda o seu averbamento, formalidade para si essencial para a consumação ou concretização da transmissão. Ou seja, por a 1ª ré ainda continuar a ser proprietária da acção, não podia ser exercido o direito de preferência por parte da autora.
Vejamos.
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3.2.1- Da acção doada (83-N)
Trata-se de uma acção que a 1ª ré chegou a doar à 2ª, “C Limited”.
A sentença considerou que, tanto pela natureza do direito de preferência, como pela falta de previsão desse direito no art. 7º dos Estatutos da A na transmissão dessa acção por negócio jurídico gratuito, os respectivos pedidos seriam improcedentes.
Pois bem. A recorrente, nas suas alegações (capítulo IV), começou por trazer-nos um argumento não jurídico: o de que seria incongruente que o legislador permitisse que os sócios fundadores da sociedade regulassem e restringissem a entrada de elementos estranhos ao grémio social através de uma protecção manifestada pelo exercício do direito de preferência à sociedade ou aos seus actuais sócios nos negócios onerosos e, por outro lado, deixasse a porta aberta à entrada de terceiros nesse grémio, sem limitação alguma, no caso de o negócio ser gratuito.
Por outro lado, quanto ao art. 7º dos Estatutos, entende que dele se não retira exactamente aquilo que o tribunal concluiu, já que uma coisa é a cedência livre de acções entre os accionistas, outra a alienação a estranhos, sujeita a limitações. A “limitação”, em sua opinião, não pode deixar de ser interpretada com o seu sentido teleológico, logo, com o sentido restritivo na transmissão a terceiros por todo e qualquer negócio jurídico, independentemente do modo ou do meio por que ela seja feita, incluindo, portanto, os negócios gratuitos.
Isso mesmo, aliás, resulta da alínea a) do art. 7º citado, ao não incluir no elenco dos deveres do accionista transmitente o valor ou o preço da acção a transmitir.
De resto - continua a recorrente - o próprio art. 6º dos Estatutos, que consagra que todas as acções são nominativas e não ao portador, deixa claro que à sociedade não interessa qualquer accionista porque ela tem um cunho personalístico e um carácter fechado. Cunho que ainda extrai da circunstância de o próprio art. 4º dos Estatutos atribuir a qualquer deles o direito de preferência na subscrição de acções representativas de aumento de capital.
Ou seja, a qualquer título, o interesse fundacional da sociedade é limitar a entrada de terceiros para o grémio social, limitação que só pode ser alcançada através de uma protecção preferencial cujo âmbito se estenda tanto aos negócios onerosos, como aos gratuitos. A própria 1ª ré teria reconhecido essa preferência na carta de fls. 101 dos autos, pois nela se faz referência às duas acções.
Diz ainda a recorrente (capítulo V) que também não pode relevar a favor da tese da impossibilidade de preferência o facto de o art. 7º citado não estabelecer o valor da contrapartida ou o modo da sua determinação não impede o exercício dos direitos de preferência. Para isso, opera ou a vontade das partes ou o valor indicado pelo vendedor ou o do mercado ou, subsidiariamente, o que for indicado pelo tribunal nos termos do art. 873º do Código Civil.
Daí que o valor seria aquele a que as partes se sujeitaram quando livremente acolheram a perícia, sendo certo, de resto, que o valor nunca seria elemento essencial para a alienante, na medida em que ela pretendia fazer a alienação para a 2ª ré, da qual é a accionista e administradora (capítulo VI). E, por fim, sempre a preferência se haveria de considerar relevantemente exercida com a aceitação declarada pela carta de 13 de Junho de 2005 pelo valor unilateralmente fixado pela 1ª ré/recorrida.
Vejamos, então.
Como é sabido, há três formas de preferência1:
- A preferência convencional simples, também chamada preferência obrigacional (cfr. art. 408º, CC);
- A preferência convencional com eficácia real, também designada preferência real (cfr. art. 415º, CC)2;
- A preferência legal, como a reconhecida, por exemplo, ao comproprietário (art. 1309º, CC), ao proprietário de prédio onerado com servidão legal de passagem na venda ou dação em cumprimento (art. 1446º, CC) ou ao co-herdeiro na venda ou dação em cumprimento de quinhão hereditário (art. 1970º, CC).
Sem perdermos muito tempo, somos obrigados a avançar que não se está no caso em apreço perante um direito legal de preferência3, na medida em que o direito que a A quis exercer não decorre directamente da norma legal!
Também não é uma preferência convencional (pacto de preferência) a que tenha sido conferida eficácia real (art. 415º do CC).
É, antes, uma preferência simples consignada nos estatutos convencionalmente entre os sócios fundadores perante a cedência e alienação de acções ordinárias manifestada por algum dos accionistas. É uma limitação ou restrição imposta pela sociedade aos accionistas individualmente considerados sempre que pretendam ceder ou alienar as suas acções. Trata-se, pois, de uma preferência convencional societária com características peculiares nascida no âmbito do direito das sociedades4. Características especiais que decorrem da circunstância de não ter sido o obrigado à preferência a estabelecer livremente, por si mesmo, a vinculação à celebração do negócio com o preferente, mas que advém do facto de ele ficar vinculado à preferência através de um pacto social em que ele porventura não tenha intervindo. A posição de sócio ou accionista, se lhe confere direitos vários, também lhe deposita esse dever de dar preferência a quem estiver determinado nos estatutos, seja à própria sociedade, seja aos outros sócios ou accionistas, no caso de alienação onerosa de participações sociais. Estamos sempre, de qualquer maneira, perante uma preferência convencional.
Antes de mais, cremos que, perscrutando as disposições do Código Comercial de Macau, nele avistamos a consagração de um princípio geral, que decorre da concatenação das disposições dos artigos 424º e 425º. Quer dizer, se o art. 424º estabelece o modo de transmissão das acções das sociedades anónimas, o artigo subsequente (art. 425º) apenas tolera alguma restrição desde que expressamente decorrente da lei ou de disposição estatutária. Portanto, está patente, em termos que bem podiam ser mais claros, reconhece-se, o princípio da livre transmissibilidade de acções, as quais só podem ser restringidas ou limitadas dentro do que a lei permitir ou no quadro do que os estatutos estabelecerem, por transmissão onerosa ou gratuita, por acto entre vivos ou mortis causa. As limitações à livre transmissibilidade são excepcionais5 e podem passar, por exemplo, pela subordinação da alienação de acções nominativas ao consentimento da sociedade limitando, desse modo, a entrada de estranhos no seu seio, ou pela introdução de um direito de preferência no caso de alienação de acções nominativas. É, justamente, o caso em apreço.
*
E pergunta-se: tem a A alguma preferência relativamente à acção doada nº 83-N?
A sentença ateve-se à natureza do negócio (gratuito) e à ausência de regulação expressa no art. 7º dos Estatutos quanto à gratuitidade da alienação para dar uma resposta negativa.
No que respeita ao art. 7º, ele dispõe o seguinte:
“Um: É livre a cedência de acções ordinárias simples ou privilegiadas em os accionistas mas a sua alienação a estranhos não terá efeitos com relação à sociedade, nem o adquirente obterá direito ao respectivo averbamento sem a observância do seguinte:
a) O accionista que desejar ceder ou alienar qualquer acção, assim o comunicará, por escrito, ao Conselho de Administração, indicando o número de acção e o nome da pessoa ou entidade à qual pretende fazer a alienação ou cedência;
b) O Conselho de Administração deliberará no prazo de dez dias se a sociedade pretende usar o direito de preferência, e não o querendo, avisará, por carta registada, os accionistas que tenham acções averbadas na sede da sociedade para, no prazo de cinco dias, a contar da recepção do aviso, declararem, também por carta registada se querem usar desse direito;
c) Quando mais de um accionista declarar querer optar, terá preferência aquele que então tiver a propriedade de maior número de acções, e, em caso de igualdade, o que for accionista mais antigo;
d) Não pretendendo a sociedade nem os accionistas optar, pode a alienação ou cedência ser feita livremente, passando o Conselho de Administração a necessária declaração de não ter usado o direito de preferência;
e) A propriedade e a transmissão de acções somente produzem efeitos para com a sociedade após o averbamento no competente livro de registo e desde a data deste averbamento.
Dois: Sendo a sociedade uma accionista dominante da “Sociedade de Jogos de Macau, SA.,” titular de uma licença para a exploração de jogos da fortuna ou azar em Casino, por Contrato assinado com o Governo da Região Administrativa Especial de Macau, a transmissão de acções está ainda sujeita às limitações decorrentes do referido Contrato de Concessão ou das suas alterações”.
Realmente, este artigo dos Estatutos, no seu nº1, nada estabelece em concreto ou em definitivo quanto à preferência na alienação gratuita de acções. O certo é que, por outro lado, também podemos dizer que nenhuma distinção introduz a respeito do modo oneroso ou gratuito da alienação. Ou seja, a partir da letra do articulado, a se, nada pode o intérprete inferir.
E, neste ponto, nem custa muito anuir aos argumentos lançados pela recorrente a respeito de certas considerações: a) que o direito de preferência tem fonte convencional; b) que o art. 7º convencionou a limitação de entrada de pessoas estranhas à sociedade; c) que ele defere o direito de preferir num esquema de graus, sendo o primeiro conferido à sociedade e o segundo a cada um dos sócios; d) que os estatutos não prevêem a convertibilidade das acções (que são nominativas) ao portador, parecendo revelar um espectro pessoal fechado ou restrito quanto à titularidade das acções; e) que o art. 4º dos estatutos6 visa também idêntico propósito de impedir ou limitar a entrada de pessoas alheias à sociedade.
Acontece que, se tudo isso parece certo, daí não advém necessariamente a resposta à questão colocada. É que o facto de haver dificuldades ou limitações à entrada de membros novos no grémio social não constitui, por si só, impedimento à entrada de novos membros no grémio social. Ou seja, são apenas preceitos de convenção que dão à sociedade e aos accionistas o privilégio de ficar para si com acções que algum destes queira alienar ou que a sociedade queira colocar à subscrição para aumento de capital. Isso, porém, não é a chave para o problema, uma vez que razões de vária ordem podem levar a sociedade ou os sócios a não preferirem e deixarem entrar estranhos no capital da pessoa colectiva. Prevalece aqui, mais uma vez, a vontade do colectivo societário ou de cada um dos sócios quando chamados a exercer a preferência.
Quanto a isso, nem mesmo qualquer eventual posição da 1ª ré nalguma carta que tivesse escrito pode servir de farol para a solução. Quer dizer, não foi o que alguma vez possa a ré ter pensado sobre o tema que serve para contrariar a tese doutrinal ou jurisprudencial, ou mesmo a linha legal, que se descubra sobre esta temática, até por ter sido ela mesma a proceder à alienação. Ou seja, mesmo que alguma vez tivesse admitido (não estamos a dizer que sim, note-se) a preferência sobre ambas as acções, o que está precisamente agora em causa é a própria acção de preferência que tem por pressuposto que ela as não tenha alienado à sociedade autora da acção.
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Também não vem ao caso a circunstância de nada ter sido estabelecido no art. 7º dos Estatutos quanto ao valor da contrapartida a liquidar pelo preferente no caso de negócio gratuito (capítulo V das alegações). Na verdade, essa matéria que a recorrente desenvolve está a jusante. Isto é, ela representa um argumento que só teria validade se o caso não estivesse coberto pela impossibilidade situada a montante e ab origine de preferir em situações como esta. Não é, pois, um problema de proibição de preferir por não haver regras para a determinação do valor; é, antes, uma questão de impossibilidade de preferir radicada na circunstância de se estar ante um negócio não oneroso. É por essa razão que o art. 873º do CPC não presta ao caso nenhum socorro.
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Igualmente, não protege a recorrente a circunstância de a doação ter sido feita por uma pessoa (1ª ré, B) a outra (2ª ré “C”) de que aquela é accionista e administradora (capítulo VI das alegações). Tudo o que foi dito pela recorrente acerca da confusão de interesses entre elas claudica perante a circunstância jurídica de se estar em presença de pessoas jurídicas distintas: a pessoa singular B é, obviamente, distinta e autónoma da pessoa colectiva “C Limited”, as quais, para além de pontos de contacto, haverão de ter certamente muitos mais pontos de divergência na resolução de interesses.
Daí que, por muito que possamos acompanhar a arguição da recorrente no plano factual, no plano jurídico não existem razões que nos levem a subscrever a solução que nos propõe. Menos ainda quando insinua que, tanto a venda, como a doação, não tinham outra intenção senão defraudar o mecanismo de preferência previsto no art. 7º dos Estatutos, já que se trata aí de uma conclusão pessoal carecida de prova.
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Porque os sócios fundadores não quiseram introduzir com clareza o regime da preferência na alienação, é possível que se pense que, nesse aspecto, terão deixado para cada caso concreto o modo de o resolver à luz do quadro legal vigente. Se assim for, então o problema tem que ser apreciado, não pelo recurso à teleologia, mas pela natureza da preferência.
Ora, a disciplina legal da preferência objecto de pactos está toda ela gizada para os negócios onerosos. Daí que o art. 408º do CC estabeleça que o pacto de preferência consiste na «convenção pela qual alguém assume a obrigação de dar preferência a outrem na venda de determinada coisa». O art. 409º navega na mesma onda ao ter por pressuposta a onerosidade do negócio quando fala da «obrigação de dar preferência na venda…» e o mesmo se passa com os artigos 410º («Querendo vender a coisa…»), no art. 411º («Venda de coisa juntamente com outrem»). E até no art. 1308º do mesmo código se consagra a preferência do comproprietário na venda ou na dação em cumprimento da quota de qualquer dos seus consortes.
Portanto, o regime geral, parece apontar para uma onerosidade subjacente à alienação das acções.
E essa é, de resto, a opinião da generalidade da doutrina, quando, tendo por base o artigo 423º do Código de 1966 (presentemente, art. 417º do CC de 1999), refere que a obrigação de preferência se pode estender a outros contratos diferentes do de compra e venda, contanto que sejam onerosos7 e não tenham cariz intuitu personae8. Na doação não há direito de preferência9. Nós estamos em sintonia com a sentença que seguiu o caminho da doutrina maioritária. Efectivamente, não faz sentido abranger a doação no regime da preferência instituída nos Estatutos, em virtude de ela ter uma marca claramente intuitu personae. Seria estranho e aberrante que pudessem preferir na doação, tanto a sociedade, como os accionistas, como se estes fossem titulares de um direito potestativo que pudesse ser imposto à vontade do doador e, desse modo, os levassem a substituir-se à pessoa do donatário. Tendo o doador o direito de escolher a pessoa beneficiária do seu gesto, a sua vontade não pode ser pulverizada ou reduzida a uma simples miragem, nem fulminada por uma vontade de sinal contrário ou impositivo de que resulte a eliminação da vontade livre do doador e a sua submissão a um indivíduo estranho a si. Ou seja, o argumento da estranheza da pessoa que possa vir a integrar a sociedade também vale pela estranheza que a substituição do donatário por outra pessoa representa para a pessoa do doador.
Estamos perante uma liberalidade com carácter pessoal que não se conforma nem se adequa à preferência que possa ser reconhecida à sociedade ou a algum accionista em particular.
Neste sentido, não merece censura a decisão da 1ª instância.
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3.2.2 – Da acção vendida (nº 83-O)
A esta matéria dedicou a recorrente a sua atenção nos capítulos I a III e VII.
Vejamos.
Para decidir o que decidiu, a sentença estribou-se no seguinte argumento:
Não foi efectuado o averbamento da transmissão desta acção, essencial à consumação ou concretização do negócio. Logo, não tendo a 1ª ré deixado de ser proprietária da acção (de ambas, em rigor), não haveria possibilidade de a autora preferir na venda.
Trata-se de um argumento que retirou do art. 424º, nº2, do Código Comercial de Macau, mas que do mesmo modo extraiu do art. 26º, nº1 do DL nº 408/82, expressamente invocado por razões de similitude lógica.
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A recorrente, porém, acha que a recusa do averbamento está legitimada pelo art. 7º dos Estatutos (Capítulo I). O entendimento da sentença levaria a que a sociedade tivesse que primeiro fazer o averbamento registral para só depois poder preferir, o que atentaria contra o citado artigo 7º dos Estatutos, que permite a recusa de eficácia da transmissão em relação à sociedade sem que antes se tenha observado uma série de condicionantes, nomeadamente a comunicação para preferir.
Realmente, a tese da sentença é esta: O transmissário da acção (bem assim como o donatário da outra) não é o proprietário dela por falta de averbamento do registo. Logo, nem a sociedade, nem qualquer dos accionistas podem exercer a preferência, por falta desse mesmo averbamento.
Ora bem. Se estamos certos, o intento da autora da acção foi, desde o início, o exercício judicial da preferência na venda e doação de duas acções. Esta é, pois, uma acção de preferência, tal como a recorrente afirma em diversos passos das suas alegações, e tal como o fazia já na petição inicial da acção!
Constituirá a qualificação do registo do negócio objecto da preferência como pressuposto do exercício da acção de preferência um erro lógico e normológico (Capítulo I das alegações)?
À primeira vista, poderíamos dizer que sim, até porque de um argumento assim, visto a cru, parece emergir um impasse: a sociedade não podia preferir porque não registou a transmissão; mas o registo prévio para depois preferir poderia equivaler ao desrespeito do que consta no art. 7º dos Estatutos. Quer dizer, se a sociedade tem o direito de recusar o registo, parece ao mesmo tempo ficar refém dessa recusa, que desse modo a impossibilita de exercer a preferência.
Até aqui, portanto, a recorrente não anda longe da lógica. Numa coisa, porém, parece não estar certa. É quando diz que o Juiz qualifica a alienação de acções em violação das preferências estatutárias como causa de recusa do registo das mesmas. Na verdade, não o disse o juiz nestes termos, nem nada que com eles se pareça. O juiz limitou-se a afirmar que a acção não podia proceder porque as acções ainda não estavam na propriedade da 1ª ré. A autora é que atribuiu ao juiz uma qualificação que ele não fez.
De qualquer modo, o que importa é apurar se a afirmação do juiz “a quo” é correcta ou não. Isso, no entanto, é questão de mérito do recurso.
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A recorrente prosseguiu no Capítulo II das alegações para se referir às faculdades secundárias ou direitos subjectivos autónomos em que se analisa estatutária e normativamente o direito de preferência e a verificação do pressuposto de actuação do mecanismo de garantia.
Em sua opinião, num primeiro momento, a sociedade tem o direito subjectivo de receber a comunicação de alienação por parte do accionista, nos termos do art. 7º dos Estatutos, enquanto o transmitente tem o dever de fazer a comunicação.
Não se duvida disso.
Num segundo momento, a sociedade tem o direito potestativo de exercer a preferência, recaindo sobre o accionista transmitente a sujeição à preferência manifestada através de uma declaração unilateral.
Também está certo este entendimento.
Num terceiro momento, a sociedade fica constituída no dever de celebrar o negócio, adquirindo as acções objecto da proposta alienação e o accionista transmitente fica constituído no dever de alienar as acções à sociedade preferente.
Outra vez, concordamos.
Tudo isso resulta do próprio instituto da preferência, aqui mais reforçado numa convenção firmada entre os accionistas fundadores e com reflexos, portanto, no painel de deveres e direitos que emergem do citado artigo 7º. Por conseguinte, não é só a comunicação a que alude a alínea a), que faz falta. Ela, aliás, existiu no caso em apreço. Faz falta para cumprir a convenção a declaração em preferir por parte da sociedade como pressuposto do exercício judicial da preferência e, mais ainda, uma vez isso feito, faz falta a própria celebração do contrato se o preferente manifestar a sua intenção em preferir dentro do prazo10. Isso é tudo quanto resulta do art. 7ºcitado e do seu cotejo com o regime legal.
E, no caso, tudo pareceria conjugar-se, se não se desse o caso de a obrigada à preferência ter entendido que a sociedade preferente não declarou tempestivamente a intenção de preferir. Bem ou mal a 1ª ré da acção disse isto, por outras palavras: “Não te transmito a acção (ou as acções) porque não exerceste a tempo o teu direito. Por isso, vendia-a a terceiro”.
Ora, é justamente esta alienação a terceiro que constituiu o móbil da acção, a causa de pedir na presente acção de preferência, dela nascendo o pressuposto do exercício judicial do respectivo direito. A procedência eventual desta acção foi pensada como tendo por resultado a substituição, ex tunc, do adquirente pelo preferente.
Ou seja, quando foi intentada a acção, isto é, quando a autora exerceu o seu direito potestativo de se sub-rogar nos direitos do transmissário pela via judicial11 (como ela mesma diz, a fls. 7-b), das alegações) já sabia que a sua procedência teria que partir, como condição de procedibilidade, da efectivação da transmissão da acção em desrespeito do seu direito de preferência por parte da 1ª ré.
Esse é, aliás, o fundamento e escopo deste tipo de acções12. Com efeito, o exercício do direito de preferência ou preempção através da acção pressupõe a violação da obrigação de preferência pela consumação da alienação, mediante a venda ou dação em cumprimento sem satisfação prévia da comunicação do projecto e cláusulas relevantes do contrato ou por irregular cumprimento desse dever13
A questão consiste, pois, em saber se a simples celebração do contrato de compra e venda da acção nominativa sem que se lhe siga o averbamento da transmissão no livro de registo de acções da sociedade representa algum entrave sério e grave ao exercício do direito por parte da sociedade. Esse é, desde o início, o cerne do problema. E, neste aspecto, não estamos tão seguros quanto a recorrente quando diz que o facto desencadeador da preferência é mais a justa causa de transmissão do que a ocorrência do facto de que, nos termos da lei da circulação depende a eficácia perante a sociedade emitente dos efeitos a que aquela justa causa tende.
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É nesta mesma linha, afinal, que a recorrente marcha para o Capítulo III das alegações, quando atribui à sentença recorrida aquilo a que chama “erro na configuração do registo pelo emitente como facto constitutivo da transmissão” e, também, “irrelevância de tal entendimento para o juízo quanto à verificação dos pressupostos de qye depende o exercício do direito de preferência”.
Verdade é que a sentença fez uso do art. 424º, nº2 do Código Comercial14, chamando a atenção para a circunstância de, por inexistência desse averbamento, o título afinal não ter sido transmitido.
Pois muito bem. A questão divide-se entre eficácia e validade.
Se olharmos unicamente para o art. 424º, nº1, do CCM, tudo indicaria que a “transmissão” das acções se faria pela “transmissão” dos respectivos títulos. Mas, estando em causa títulos nominativos, como este aqui em análise, a transmissão opera pelo “endosso lavrado no próprio título” cumulativamente com o “averbamento no livro de registo de acções”.
Aproximando estas disposições às do artigo 326º do Código das Sociedades Comerciais português (agora revogado pelo DL nº 486/99, de 13/11 que aprovou o Código de Valores Mobiliários), pareceria que a própria eficácia translativa estaria dependente da verificação das formalidades ali previstas. Neste sentido opinou João Salvado15:
«A transmissão das acções, seja qual for a modalidade que revista, envolve a transferência da participação societária que elas representam, com todos os direitos e obrigações inerentes às acções transmitidas. É dessa transmissão que tratam os art. 326 e 327 CSC. Não há no art. 326 qualquer separação entre a titularidade e a legitimação necessária para o exercício dos direitos adquiridos seja perante terceiros seja perante a sociedade. As formalidades do art. 326 são, pois constitutivas, essenciais para que se dê a transmissão da participação social ou das acções. E assim, o mero negócio de transferência sem ser acompanhado de tais formalidades, nem tem eficácia legitimadora nem eficácia translativa da titularidade (propriedade). As acções - títulos e a participação social continuarão a pertencer ao alienante. Isso mesmo resulta do art. 327 ao separar-se aí sim a titularidade da legitimação (...) Optou-se pela natureza real do contrato quanto à constituição».
Ou Brito Correia16, para quem:
«a transmissão de valores fora da bolsa só é válida quando se utilizar o modelo aprovado além da declaração do transmitente no título e do pertence, quanto às acções nominativas e da entrega real do título quanto às acções ao portador. Isto mostra que a transmissão de um negócio jurídico causal (compra e venda, doação etc.) para cuja validade se exige como requisito de forma «ad substantiam» a apresentação da declaração para registo. De qualquer modo, um negócio de transmissão de acções fora da bolsa sem a declaração para registo (ou depósito) não é válido (art. 26 nº 1 DL 408/82) mesmo que sejam entregues os títulos com ou sem pertence».
E no sentido de que uma transmissão sem essas formalidades “ad substantiam”, com base embora no art. 26º do DL nº 408/82, não era válido, ver Ac. da RL, de 7/10/2004, Proc. nº 2503/2004.
É uma posição aparentemente defensável por quem somente transpuser o fenómeno para o direito de Macau circunscrito ao art. 424º citado.
Não podemos, porém, ignorar o que dispõem os arts. 1126º a 1133º do mesmo CCM.
O art. 1127º, nº1 dispõe:
“Para que a transmissão de títulos nominativos produza efeitos em relação ao emitente e a outros terceiros, deve o nome do adquirente ser averbado no título e no registo do emitente ou deve entregar-se ao adquirente um novo título em seu nome, averbando-se no registo a entrega” (negrito nosso).
E por outro lado, o art. 1128º, nº3 reza assim:
“A transmissão do título por endosso só produz efeitos, em relação ao emitente, com o averbamento no registo deste” (negrito nosso).
Ou seja, estamos perante dois dispositivos legais que nos evidenciam uma opção do legislador local da RAEM no sentido, não da invalidade da transmissão feita sem aquelas formalidades, mas da ineficácia em relação à sociedade e a terceiros de uma transmissão sem averbamento.
A esta conclusão chegou este TSI quando lucubrou sobre o tema nos seguintes termos sumariados:
«O negócio não registado existe para o direito, apenas não produz os seus efeitos típicos. O efeito consolidativo - exceptuadas as raras situações de efeito constitutivo do registo - é o efeito normal do registo, destinando-se este a garantir a eficácia absoluta de certo facto, constituindo, em regra, um requisito de eficácia relativa.
5. Apesar do averbamento se não encontrar ainda feito no respectivo livro de registo das acções da Sociedade, o adquirente é já titular do direito, faltando-lhe apenas a legitimação para o exercício deste, obtendo, por efeito do contrato, a titularidade do direito cartular e a propriedade do título.»17
Ineficácia que in casu tem outra raiz para além dessa, que é facto de o contrato de compra e venda da acção ter sido celebrado sem se ter possibilitado à autora o exercício da preferência (já vimos que ela apenas abriu as portas à preferência, mas logo a fechou com a alienação da acção). Na verdade, a contratação pelo obrigado à preferência com terceiro é resolvido à luz da denominada ineficácia externa das obrigações18. Ou seja, a contrato pura e simplesmente não produz efeitos para com o preferente precisamente por não ter podido exercer devidamente a sua preferência.
Mas, por outro lado, a ineficácia no caso presente não se deve apenas a esse factor, mas também ao facto de a transmissão em si mesma não gerar os efeitos secundários a que tendia – a aquisição da qualidade de accionista – por a transmissão não ter sido registada (arts. 1126º, nº1 e 1128º, nº3, do C.C.M.)19.
Quer dizer, porque a alienação se verificou nestes termos, não podemos dizer que estamos perante um acto nulo, mas sim perante um negócio externamente ineficaz.
Desta maneira, não podemos acompanhar a sentença recorrida, que seguiu o caminho da invalidade ao concluir que, por a venda efectuada não ter efeito translativo, a sua propriedade continuava na esfera da 1ª ré20.
Pelo nosso lado, cremos que podemos, em vez disso, entender que o título foi mesmo transmitido por negócio válido e eficaz inter partes, ou seja, que o contrato celebrado entre alienante e adquirente produz eficácia translativa normal21, apenas faltando o requisito do averbamento para que a eficácia afecte também a relação com a própria sociedade. Como disse Menezes Cordeiro,22, e sem prejuízo das regras próprias prescritas pelo Direito das Sociedades, por razões de segurança para a validade da transmissão de acções e das formalidades subsequentes necessárias para que a mesma se torne eficaz, “concluído o acordo transmissivo, desencadeiam-se os seus efeitos inter partes”.
No mesmo sentido, para além da já citada, a jurisprudência comparada23, “(…) 3. A compra e venda de acções não é um contrato real quo ad effectum – é um contrato com efeitos imediatos meramente obrigacionais, como os contratos do mesmo tipo tendo por objecto títulos de crédito em papel, para cuja transmissão se exige a tradição, o endosso ou acto equivalente. 4. Os actos exigidos por lei, e que integram o modo, não se referem ao contrato, mas sim à transmissão da propriedade das acções: são actos essenciais para a transmissão destas, mas não contendem com a validade formal do contrato. 5. Assim, um contrato de compra e venda de acções ao portador não deixa de ser válido pelo facto de o transmitente não ter feito entrega, ao adquirente, dos títulos representativos das acções; e este pode requerer judicialmente o cumprimento do contrato, a entrega das acções”.
Consequentemente, se o contrato de venda da acção 83-O não é inválido, claudica o pressuposto da sentença que levou o tribunal a não dar por verificado o próprio pressuposto do exercício judicial do direito de preferência.
Dito de outro modo, este fundamento da sentença não pode ser acolhido, o que implica duas coisas: que tenhamos que voltar à questão dos recursos interlocutórios e que apreciar, no uso dos nossos poderes de substituição, a pretensão da autora agora segundo o prisma das questões que não foram objecto de apreciação pelo TJB.
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3.3 - Dos pedidos da acção
A tarefa que deste TSI agora se espera é aquela que decorre da observância do disposto no nos termos do art. 630º, nº2, do CPC.
Ora bem. Quanto a nós, entendemos poder continuar a dizer que aqueles factos provados, não conduzindo à invalidade do negócio, ao menos levam à inoponibilidade dos seus efeitos em relação à sociedade emitente. Para a autora, aquele negócio é como se não existisse, pelo menos não a atinge no seu núcleo societário, não interfere imediatamente no grémio dos membros que a compõem. É ineficaz (art. 410º, nº2, CC).
Donde, poder dizer-se que ela continua a ser neste momento, tal como antes era, a pessoa colectiva que não tem no seu seio de accionistas nem o donatário ”C Limited” (o que dizemos quanto à acção vendida, é válido quando à acção doada), nem a adquirente “D Limited”. Estes não adquiriram ainda a condição de accionistas.
Mas então, quid iuris?
Uma via de solução poderia ser esta: falta um pressuposto para o exercício do direito de preferir judicialmente, que é, precisamente, uma alienação “válida” para a sociedade. Sem a validade24, não poderá a autora valer-se desta acção de preferência. É que, recorde-se, ela tem por missão permitir a substituição coerciva do adquirente na posição de sócio/accionista. Se os adquirentes não têm a qualidade de accionistas, não pode a A ocupar o seu lugar pela procedência de acção de preferência.
Ou a sociedade recorrente procede ao registo, desinteressando-se da preferência; ou a obrigada à preferência resolve o contrato com os transmissários. Se nada disto ocorrer, então caberá a algum deles procurar ultrapassar o impasse através do competente meio judicial, o qual, para a autora/recorrente, obviamente não pode ser a acção de preferência em que nos encontramos.
O que se deve questionar, presentemente, é o seguinte: Se a adquirente não é accionista, porque o título - que é nominativo, convêm sempre lembrar isto – não está registado em seu nome, e se a transmissão de facto não produz quaisquer efeitos jurídicos em relação à sociedade, tudo deverá ficar eternamente na mesma? Ou seja, deverá ficar eternamente a autora/recorrente à espera que a transmitente resolva o negócio da transmissão? E, por outro lado, deverão a transmitente ou a transmissária ficar de braços cruzados à espera que a autora/recorrente decida, finalmente, proceder ao averbamento?
Parece-nos que não.
A sociedade autora não pretende preferir na venda para se substituir ao adquirente na sua condição de accionista. A sociedade não pode ser accionista de si mesma. Pretende ela somente assumir a condição de adquirente que neste momento está conferida à “D Limited”. A substituição deve, pois, ser encarada sob esse ponto de vista.
E, claro está, só pode haver lugar a essa substituição forçada, desde que o negócio tenha sido válido, pois só a validade (não a eficácia) é pressuposto da preferência25. Mas porque o negócio não é inválido, como tivemos oportunidade de ver, então cremos que nenhum obstáculo existe a impedir, em tese geral, a preferência.
Preciso é que, para que a acção proceda, se verifiquem os restantes requisitos.
Não tendo a sentença recorrida entrado na avaliação deles, prejudicada que ficou face à solução tomada, cumpre-nos agora essa tarefa ao abrigo do art. 630º do CPC.
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3.3 – Dos pedidos (Cont.)
Na petição inicial a autora traçou facticamente o percurso ocorrido entre a 1ª ré e a A no sentido da transmissão das referidas acções. Aflorou depois o entendimento que tem sobre o valor dos títulos. Por fim, invocou o disposto nos arts. 832º e 843º do Código Civil a respeito da sua intenção de proceder à consignação em depósito do preço das acções26.
Pediu:
- a declaração de ineficácia ou nulidade do negócio efectuado entre a transmitente, 1ª ré, e a adquirente; e
- a declaração judicial de dona, pela preferência, da acção, estabelecendo-se o preço a depositar, que define em Mop$ 603.262,00 ou, subsidiariamente, HKD$ 2.960.000,00.
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3.3.1 - Do pedido de declaração de nulidade
Antes de mais nada, já vimos acima a razão pela qual o negócio não é inválido, pelo menos com os argumentos invocados na sentença. Mas, por outro lado, não percebemos com que fundamentos a autora invocou a nulidade da transmissão.
Talvez isso se deva a uma velada arguição de simulação reportada timidamente nos arts. 50º e 51ºda p.i. Todavia, nem os factos trazidos são de molde a revelar alguma situação simulatória (à autora caberia alegar e provar os factos concernentes à simulação27), nem a circunstância de a venda ser feita a uma sociedade de que a 1ª ré era única directora e sócia basta para nos revelar a presença de uma simulação. Na realidade, uma coisa é a pessoa singular – a 1ª ré alienante – e outra é a pessoa colectiva de que aquela faz parte. Têm personalidades jurídicas distintas e não se pode afirmar que, apenas porque a 2ª ré (pessoa singular) faça parte da pessoa colectiva, estejamos desde logo perante um negócio simulado.
Se esse foi o fundamento para a invocação da nulidade do negócio, contra ele esbarra a matéria da prova feita.
Mas, se a nulidade tiver assentado na circunstância de a obrigada à preferência a não ter respeitado, então também a solução não está certa, pois já vimos que só a ineficácia pode vingar no caso concreto e não a nulidade. Nessa parte o pedido da autora tem que ser improcedente.
Temos, pois, que avançar para outro patamar, o qual nos parece decisivo para o destino a dar à acção.
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3.4 – Dos requisitos da preferência
De acordo com a matéria de facto, a 1ª ré comunicou a intenção de transmitir duas acções (uma por doação; outra por venda). Essa comunicação ocorreu no dia 19/05/2005 e nela foi logo anunciado que o preço da acção a vender, com indicação da pessoa da transmissária, era de HK$ 2.960.000,00, desde logo salientando que não haveria lugar a preferência relativamente à acção a doar a “C Limited” (fls. 30 dos autos e alínea A) da especificação). A 1ª ré fez o que lhe cumpria, face ao teor do art. 7º dos Estatutos, aliás por si citados na carta (cfr. tb. art. 410º do CC).
Ora, de acordo com o teor da alínea b), do art. 7º citado, a Administração deveria reunir e deliberar se pretendia usar do direito de preferência, para o que dispunha do prazo de 10 dias. Mas, o Conselho de Administração reuniu e deliberou querer exercer a preferência (Alínea B) da especificação e doc. fls. 81 dos autos). A autora fez o que lhe era exigido estatutariamente.
Posteriormente, esta deliberação foi comunicada à1ª ré em 31/05/2005 e às 2ª e 3ª rés em 3/06/2005 (factos das alíneas C) e D) da especificação e docs. fls 97 e 99).
Em resposta, a 1ª ré, por carta datada de 13/06/2005, comunicou à autora a disponibilidade para a nomeação de um perito com vista à avaliação das acções (doc. fls. 101 e al. E), da especificação).
Mas, por cartas de 26/06/2005, a mesma 1ª ré comunicou à A que o direito de a A. preferir numa e noutra das acções se considerava extinto por ter decorrido o prazo estatutariamente previsto para o exercício do direito pelo preço indicado na carta de 19/05/2005, ou seja, de HK$ 2.960.000,00, pedindo ao mesmo tempo que a A procedesse ao registo da transmissão (fls. 102 e 103 e al. F),da Especificação).
A autora estranhou esta comunicação e apressou-se a responder por carta de 30/06/2005 (doc. fls. 107 dos autos).
Na sequência disso, a 1ª ré, no dia 4/07/2005, em relação à acção a vender, aceitou conceder novo prazo de 15 dias para que, no seio de uma comissão independente, se processe a uma avaliação das acções da A (fls. 132-134 dos autos e al. H) da Especificação).
Mas, em 18 de Julho de 2005 a A respondeu a essa missiva, dizendo, entre o mais, que aceita efectuar o pagamento do valor inicialmente peticionado pela 1ª ré e que o montante total das duas acções (1.000.000,00+2.960.000,00) se encontrava à disposição da ré no secretariado da autora contra o envio dos dois títulos devidamente endossados (fls. 138/139 dos autos e alínea i),da Especificação).
Carta que mereceu a resposta de 22/07/2005 da 1ª ré, confirmando ter já procedido à doação e à venda das referidas acções (fls. 146 dos autos).
Com estes dados, que deixam transparecer alguma incerteza quanto àquilo que as pessoas envolvidas nas comunicações trocadas acharam sobre o respeito pela preferência, estamos em crer que a razão está do lado da autora.
Quer dizer, a autora deliberou claramente a intenção de preferir. Basta ler o teor da alínea e) da deliberação de 30/05/2005 (Cfr. fls. 84). Simplesmente, logo ali mesmo discordou do valor do negócio proposto quanto à acção a vender, o qual lhe parecia ser simulado.
Ora, se para a concretização do exercício do direito de preferência bastaria responder afirmativamente à proposta feita pela 1ª ré, somente faltaria para a sua integral execução o depósito do preço. Depósito que não foi efectuado porque, na mesma deliberação em que afirma o propósito de preferir, a autora A entendeu que o valor era exagerado e que propunha, por isso, uma avaliação do valor das acções.
Ou seja, transferiu para a transmitente o ónus da fixação do preço. Se ela entendesse que o preço podia vir a ser outro que não o projectado, aceitaria a realização de uma avaliação.
Bem certo que isto nos surpreende pelo seguinte. Quando a 1ª ré efectuou a comunicação da intenção de alienar a acção, logo mencionou a identidade do futuro transmissário e o valor por que pretendia realizar a a transmissão (HK$ 2.960.000,00: fls. 30). Querendo a A preferir, na posse de todos os elementos essenciais do negócio, logo podia aceitar o indicado preço e dele fazer até o próprio depósito. Não o fez, por lhe ter parecido exagerado (até mesmo, encobrindo uma simulação).
De qualquer maneira, a A manifestou a sua intenção de adquirir as acções (falamos no plural, mas aqui apenas curamos da acção a vender, face à exclusão da preferência no que respeita à acção a doar, tal como se viu acima). Evidentemente que a 1ª ré podia não acolher a ideia proposta de avaliação da acção. Estava no seu direito de não a acolher. Mas, a partir do momento em que aceitou o diálogo com a A no sentido da realização de uma peritagem, nomeando inclusive um perito para o efeito, Sr. Ian Robinson, deixou cair imediatamente um dos elementos inicialmente indicados do proposto negócio: o preço. Desta maneira, permaneceu apenas a intenção de alienar mas, a partir desse instante, sem o valor atendível para o exercício da preferência. E como se sabe, a preferência para ser exequível, tem que ter um preço.
Ora, face à deliberação da A e à sua comunicação à obrigada à preferência no dia 31/05/2005, tendo podido a 1ª ré interpretar a atitude daquela como sendo de não aceitação dos termos do projecto do negócio e, consequentemente, de não exercício da preferência, em vez disso aceitou a declaração como sendo a afirmação de preferir, porém com uma expectável redução do preço em resultado de uma avaliação que se propunha realizar e que a 1ª ré aceitou.
Ora bem, no quadro das relações entre obrigado à preferência e titular do respectivo direito de preferência, nada obstava a que entre ambos o exercício deste pudesse ficar condicionado à peritagem e ao resultado que ela viesse a produzir. Seria uma condição resolutiva, nesse caso, se a A não viesse a concordar com o valor encontrado pela avaliação. Certo é que ambas as partes acolheram reciprocamente a ideia de avaliação, de modo que a execução material da vontade de preferir por banda da A com o depósito do preço foi deferida para momento posterior e tudo isto com o consenso de ambos. Desta certeza não se pode fugir.
Todavia, verdade é que durante o período em que as partes entabulavam os procedimentos necessários com vista à avaliação das acções, a 1ª ré acabou por proceder à alienação da acção, ainda que com o pretexto invocado do não exercício atempado pela autora do direito de preferência. Isto para nós não é senão o sinal de um corte abrupto no consenso estabelecido sobre o propósito avaliativo.
O que representa isto na prática? A resposta é simples: não havia um preço certo acordado para a realização do negócio!
Mas, sendo assim, foi a 1ª ré quem faltou ao compromisso e enveredou directamente para a solução da alienação, contra as expectativas da A. Podemos, então, assegurar que nessa fase apenas estava apurada a intenção de vender por parte da 1ª ré e a identidade da interessada adquirente, bem como a intenção de preferir por parte da autora, desconhecendo-se o valor definitivo. Rigorosamente, é possível dizer que os elementos do projectado negócio não tinham sido totalmente transmitidos à titular do direito de preferência (faltava o preço). Dito de outra maneira, a transmissão foi feita, não por a A se ter desinteressado, de ter renunciado expressa ou tacitamente ao exercício da preferência ou, sequer, de ter deixado caducar o direito (art. 7º dos Estatutos; cfr. tb. art. 410º, nº2, do CC), mas sim por a obrigada à preferência ter procedido à alienação numa fase em que ainda não estava determinado o preço da acção. Circunstância, como bem se sabe, abre o caminho para o exercício do direito pela via judicial28. Naturalmente, vendida a acção a terceiros, a acção de preferência – excluída a hipótese de simulação – visa a substituição do adquirente pelo preferente nas mesmas e exactas condições, incluindo o preço efectivamente pago.
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O que está dito, porém, não é suficiente para se dar por findo o julgamento da acção no que a esta questão concerne.
Realmente, existe um aspecto que ainda não foi referido e que propositadamente deixámos para o fim, para que nada ficasse por dizer. Referimo-nos àquilo que no início fomos assertando sobre os modos de preferência nossos conhecidos.
Recordemos que o caso, tal como foi dito, não é de preferência legal, nem de preferência convencional com eficácia real, casos em que o preferente passa a dispor de um direito real de aquisição. É de preferência convencional simples de base societária.
Ora, como é sabido, a preferência que assenta num pacto convencional29 (ao contrário de qualquer uma das restantes modalidades) é meramente obrigacional e somente dá lugar a um simples direito de crédito e indemnizatório30. Ou seja, o pacto de preferência produz unicamente efeitos obrigacionais, de modo que o seu desrespeito, ou seja, o seu incumprimento apenas permite ao preferente o direito à reparação por indemnização por perdas e danos31.
Isto quer dizer que em caso algum a autora da acção pode obter êxito pela via judicial que escolheu. Ou seja, o tribunal não pode reconhecer-lhe o direito de preferência e conferir-lhe a propriedade da acção vendida (e da acção doada, também com este argumento, para além do que acima já deixámos exposto), com este argumento, o qual, como se sabe, tem em vista o exercício judicial do direito de preferência que decorra das convenções com eficácia real ou das preferências legais (reais).
Isto significa que, do mesmo modo, estamos dispensados de apreciar a questão do valor da acção alienada, que a autora queria fosse fixada pelo tribunal, ou do depósito do preço (da proposta consignação), de cuja não efectuação feita com base no art. 1309º pretendiam as recorridas se extraísse um efeito de improcedência do pedido. Quanto a este segundo aspecto, nem o caso se subsume à previsão do art. 1309º do CC (tão pouco a sua aplicação indirecta decorre de norma do Código Comercial ou dos Estatutos da autora), nem a consignação oferecida pela autora a auxilia. Isto assim, na medida em que o pressuposto da eficácia do depósito não se verifica na hipótese sub judice. Isto é, o depósito nunca poderia valer aqui como garantia de pagamento do pagamento do preço de uma coisa, se esta não pode ser encarada como bem que possa ser adquirível à luz da causa de pedir da acção de preferência intentada.
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Nesta ordem de ideias, a solução não pode deixar de ser a improcedência da acção32, embora por fundamentos diversos dos aduzidos na sentença impugnada.
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4 – Do 1º recurso interlocutório (legitimidade passiva da 2ª ré e caducidade)
Nos termos do art. 628º, nº2, do CPC, o conhecimento dos recursos de decisões que não tenham incidido sobre o mérito da causa, apenas se fará se o recurso da decisão final interposto pela parte contrária não vier a ser julgado improvido (o mesmo é dizer, se a sentença não for confirmada). Ora, tendo o recurso sobre a sentença tido o desfecho que acabamos de ver, com a confirmação da decisão da 1ª instância, deixa de interessar o conhecimento deste recurso.
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IV- Decidindo
Face ao exposto, acordam em:
1 – Negar provimento ao 2º recurso interlocutório interposto pela autora da acção, A;
2 – Conceder provimento parcial ao recurso da sentença interposto pela autora A, no que concerne à impugnação da matéria de facto, em consequência do que:
a) Se altera o conteúdo da alínea P) da matéria de facto assente, que passará a ter o seguinte conteúdo:
“A ora 1ª R. e E são, juntamente com outros, sócios e directores da “C, Limited”;
b) Se altera o conteúdo da alínea R) da matéria de facto assente, que passará a ter o seguinte conteúdo:
“A 1ª ré é a sua única sócia e única directora”.
2.1 – Negar provimento a esse mesmo recurso na parte restante, confirmando-se a sentença recorrida, embora pelos fundamentos acima expostos.
3 – Não tomar conhecimento do 1º recurso interlocutório interposto pelas rés da acção, por prejudicado, face à decisão aqui tomada no que concerne ao recurso final da sentença.
Custas:
- Pela autora da acção, A, em ambas as instâncias, tanto pelo 2º recurso interlocutório, como pelo recurso final.
TSI, 22 de Maio de 2014
José Cândido de Pinho
Lai Kin Hong
João A. G. Gil de Oliveira
1 Sobre as diferenças, ver, v.g., António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, II, Direito das Obrigações, II, 2010, pág. 477 e sgs.; tb. Jorge Leite Ribeiro de Faria, Direito das Obrigações, Vol. I, 288-293.
2 Cfr. Ac. TSI, de 29/09/2011, Proc. nº 543/2009.
3 Preferências legais são, por exemplo, as do comproprietário (art, 1308º) ou do proprietário do prédio encravado (art. 1446º).
4 António Menezes Cordeiro, Tratado cit. II, II, pág. 479 e 486 e
5 Neste sentido, conquanto reportado a um texto legal (art. 328º do Código das Sociedades Comerciais) bem mais expressivo e claro no propósito da livre transmissibilidade, ver Armando Braga, Código das Sociedades Comerciais anotado e comentado, 2ª ed., pág. 386/387.
6 «Os accionistas gozam sempre de direito de preferência na subscrição das acções representativas de qualquer aumento de capital, beneficiando desse direito na proporção das acções que então lhe pertencerem».
7 Neste sentido, ver Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil anotado, anotação ao art. 414º. Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Vol. I, pág. 376/377 e em RLJ, ano 100, pág. 209 e 225; Jacinto Rodrigues Bastos, Notas ao Código Civil, Vol. II, pág. 212; Mário Júlio de Almeida Costa, Direito das Obrigações, 9ª ed., pág. 404; Inocêncio Galvão Telles, Direito das Obrigações, 6ª ed., 1989, pág. 146.
Porém, considerando que o pacto de preferência também pode abranger ainda os negócios gratuitos, nomeadamente a doação, ver Carlos Lacerda Barata, Da Obrigação de Preferência, 1990, Coimbra Editora, pág. 12
8 Luis Manuel Teles de Menezes Leitão, Direito das Obrigações, I, 7ª ed., pág. 251.
9 Mota Pinto, Direitos Reais, 1971, pág. 263.
10 Ac. STJ, de 11/05/1993, Proc. nº 083208.
11 Ac. STJ de 9/10/2003, Proc. nº 98B057
12 Ac. STJ, de 23/11/2010, Proc. nº 2822/03.
13 Ac. STJ, de 20/10/2009, Proc. nº 563/2001
14 Que dispõe: «Os títulos nominativos transmitem-se entre vivos por endosso lavrado no próprio título e averbamento no livro de registo de acções».
15 Das Acções das Sociedades Anónimas A.A.F.D.L, 1988
16 Direito Comercial, Vol. II. No sentido ainda de que são constitutivas esta formalidades, ver ainda Ac. da RC. De 12/12/1995, in CJ, 1995, Vol. V, pág. 58.
17 Ac. TSI, de 23/01/2003, Proc. nº 200/2002
18 A. Menezes Cordeiro, ob. cit., II, II, pág. 492-493 e II-I, pág. 402 e sgs.).
19 Não podemos, pois, subscrever a posição isolada, tanto quanto nos parece, de Carlos Lacerda Barata, quando afirma que “caso o obrigado à preferência venda a coisa a terceiro, tal compra e venda está ferida de nulidade (892º), com as legais consequências” (Da Obrigação de Preferência, Coimbra Editora, 1990, pág.-143).
20 E por assim ser, por não ter havido alienação, também não haveria lugar à acção de preferência.
21 Ac. RP, de 6/05/2010, Proc. nº 2822/03.
22 Manual de Direito das Sociedades, II Volume, 2.ª edição, 2007, pág. 683
23 Ac. STJ, de 15/05/2008, Proc. nº 08B153
24 Ac. STJ de 7/07/1988, Proc. nº 075078.
25 Cit. Ac. STJ, de 7/07/1988, Proc. nº 075078; Ac. STJ, de 26/11/1980, in BMJ nº 301, pãg. 433 e RLJ, 115º, pág. 28.
26 Já vimos que, quanto à acção doada, não há direito de preferência. Faremos o estudo quanto à acção vendida.
27 Ac. TSI, de 12/01/2012, Proc. nº 240/2010
28 Ac. STJ, de 20/10/2009, Proc. nº 563/2001.
29 O pacto de preferência tem, para alguma doutrina, origem negocial. É o caso de Pires de Lima e A. Varela, CC anot., I, pág. 389; Carlos Lacerda Barata, ob. cit., pág. 15 e 18. Outros acham que tem origem num contrato unilateral. Assim opina, por exemplo, Luis Teles Menezes Leitão, Direito das Obrigações, Vol. I, pág. 252.
30 A. Menezes Cordeiro, ob. cit., II, II, pág. 483
31 Entre outros, J. Leite Ribeiro de Faria, ob. cit., I, pág. 289; Luis M. Telles de Menezes Leitão, ob. cit., pág. 259-260.
32 Em resumo, o impasse derivado da ineficácia do negócio translativo da venda da acção da acção nº 83-0 terá que ser resolvido, segundo pensamos (não nos queremos comprometer com a solução, até porque essa não é questão que devamos incluir no âmbito da presente pronúncia) pela via do efectivo registo voluntário dessa acção por parte da sociedade autora, STDM, ou, eventualmente, pela via judicial através do meio considerado adequado a instaurar pelo interessado adquirente.

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