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Processo n.º 29/2014. Recurso jurisdicional em matéria administrativa.
Recorrente: A.
Recorrido: Secretário para a Economia e Finanças.
Assunto: Princípios da desburocratização e da eficiência. Fixação de residência em Macau. Antecedentes criminais. Reabilitação. Poderes discricionários.
Data da Sessão: 9 de Julho de 2014.
Juízes: Viriato Manuel Pinheiro de Lima (Relator), Song Man Lei e Sam Hou Fai.
SUMÁRIO:
I – Dos princípios da desburocratização e da eficiência, previstos no artigo 12.º do Código do Procedimento Administrativo, os interessados não tiram mais do que uma protecção jurídica reflexa no procedimento.
II - Os n. os 1 e 2, alínea 1) do artigo 9.º da Lei n.º 4/2003, quando referem que para efeitos de concessão de autorização de residência na RAEM, deve atender-se, nomeadamente, aos “Antecedentes criminais, comprovado incumprimento das leis da RAEM ou qualquer das circunstâncias referidas no artigo 4.º da presente lei”, confere verdadeiros poderes discricionários à Administração.
III - A decisão judicial de não transcrição da sentença condenatória no certificado do registo criminal não tem natureza vinculativa para a Administração na decisão quanto à autorização de residência, tomada ao abrigo do disposto no art.º 9.º n.º 2, al. 1) da Lai n.º 4/2003, que permite a Administração indeferir o pedido de autorização de residência do interessado, tendo em consideração os seus antecedentes criminais.
O Relator,
Viriato Manuel Pinheiro de Lima
ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU:

I – Relatório
A (doravante, também designada por recorrente), interpôs recurso contencioso de anulação do despacho do Secretário para a Economia e Finanças, de 19 de Junho de 2012, que indeferiu o seu pedido de fixação de residência temporária em Macau.
Por acórdão de 16 de Janeiro de 2014, o Tribunal de Segunda Instância (TSI) julgou improcedente o recurso.
Inconformada, interpõe A recurso jurisdicional para o Tribunal de Última Instância (TUI), defendendo que o acórdão recorrido aplicou mal os princípios da desburocratização e eficiência, interpretou incorrectamente o artigo 9.º, n.º 2, alínea 1) da Lei n.º 4/2003 e avaliou mal o exercício do poder discricionário pela Administração.
O Ex.mo Procurador-Adjunto emitiu douto parecer em que se pronuncia pela improcedência do recurso.

II - Os Factos
O acórdão recorrido deu como provados os seguintes factos:
  O despacho recorrido foi notificado ao recorrente nos seguintes termos:
  “Instituto de Promoção do Comércio e do Investimento de Macau
   [Endereço (1)]
  Sr.ª A
  Vossa referência
  Data de emissão
  Nossa referência: (ilegível)/GJFR/XXXXX/2003
  Data: 27.09.2004
  Assunto:
  Pedido da fixação de residência
  temporária – notificação de indeferimento
  
  1. Nos termos do art.º 68.º alínea a) do Código de Procedimento Administrativo, vem notificar V. Ex.ª de que com o poder conferido pelo Chefe do Executivo da RAEM, o Secretário para a Economia e Finanças proferiu aos 10 de Setembro de 2004 o despacho de 「Indefiro」, no qual se indeferiu o vosso requerimento da fixação de residência temporária.
  2. O despacho foi elaborado com base no teor constante das fls. 101 a 102 dos vossos autos, cuja cópia ora se junta aqui para o efeito de justificação do indeferimento.
  3. Nos termos do Código de Procedimento Administrativo, se não se conformar com a decisão referida, pode apresentar reclamação em 15 dias por meio de correspondência ao Secretário para a Economia e Finanças, ou interpor recurso contencioso.
  Com os melhores cumprimentos!
  Presidente do IPIM
  Ass. vide o original
  Lee Peng Hong
  (Pel’O Vogal Executivo, Cheong Chou Weng)”
  São do teor seguinte o despacho proferido, a documentação e a proposta em que aquele se louvou:
  
“Despacho do Secretário para a Economia e Finanças:
Concordo com a proposta.
  
  Parecer da Comissão Executiva do IPIM
  Secretário para a Economia e Finanças:
  Segundo a investigação e análise deste parecer, a requerente uma vez permaneceu em Macau por período superior ao autorizado e foi condenada pelo TJB, pela prática de declaração falsa, na pena de 6 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 18 meses. Tendo em conta a necessidade da ordem e segurança pública da RAEM, nos termos do artigo 9.º, n.º 2, da Lei n.º 4/2003 aplicável subsidiariamente, por força d disposto no artigo 23.º do Regulamento Administrativo n.º 3/2005, foi deduzido o parecer do indeferimento do pedido de autorização de residência temporária da requerente. Venho agora sugerir o indeferimento deste pedido.
  
  Núm.
  NOME
  RELAÇÃO
  1.
  A
  Requerente
  Submeto à apreciação de V. Exa.
  (Ass. Vide o original)
  Cheong Chou Weng/presidente
  
  
  Parecer do Director do Gabinete Jurídico e de Fixação de Residência
  Concordo com a proposta.
  (Ass. Vide o original)
  D
  Director-Adunto, Substituto
  
  Assunto: Apreciação do requerimento de residência temporária
  Comissão Executiva:
  1. Apresenta-se a seguir a identificação da requerente :
Num.
Nome
Relação
Documento
Num. Do documento
Prazo de validade
1.
A
Requerente
Passaporte da China
XXXXXXXXX
1 de Março de 2011
  
  
  
Bilhete de Identidade de estrangeiro de Gâmbia
XXXXX

  2. Em 6 de Fevereiro de 2009 a requerente deduziu este pedido de autorização de residência temporária segundo o artigo 3 do Regulamento Administrativo n.º 3/2005 e apresentou os documentos seguintes:
  (1) Dados dos bens imóveis
  (A) Número de imóvel: XXXXX
  [Endereço (2)] Valor: MOP$958.830,00
  Data de registo: 18 de Dezembro de 2002 (XXX)
  (B) Número de imóvel: XXXXX
  [Endereço (3)](XXXXXX)
  Valor: MOP56.705,00
  Data de registro: 18 de Dezembro de 2002 (XXX)
  (2) Certificado de depósito a prazo
  Entidade emissora: [Banco (1)]
  Conta N.º: XXX-X-XXXXX-X
  Valor: HKD$500.000,00 (agora correspondente a MOP$515.000,00)
  Natureza: nenhum encargo constituído (renovação do capital)
  Prazo de depósito: 20 de Janeiro de 2009 a 20 de Abril de 2009
  Data de emissão: 5 de Fevereiro de 2009
  (3) Documento da habilitação académica
  Nome do documento: Escritura
  Entidade emissora: Divisão de Notariado da Cidade de Zhu Hai da Província de Guang Dong
  Escola: [Escola (1)]
  Habilitação académica: Turismo, habilitada com o ensino secundário complementar
  Período da frequência: Setembro de 2004 a Maio de 2006
  Data de notariado: 29 de Agosto de 2006
  (4) Documento sobre a relação familiar
Nome do documento: Escritura da relação familiar
  Cartório notarial: Divisão de Notariado da Cidade de Zhu Hai da Província de Guang Dong
  Nome da família: B
  Relação familiar com a requerente: linha recta (mãe e filho)
  Tipo do documento e n.º: BIRPM N.º XXXXXXX(X)
  Data da primeira emissão: 31 de Julho de 2001
  Data de notariado: 16 de Outubro de 2006
  3. Analisado este pedido de autorização de residência temporária, comprovou-se, através da sentença penal de 16 de Fevereiro de 2004 do TJB (vd. fls. 96 a 100 da sentença), que a requerente tinha sido condenada, por este Tribunal, pela prática de declaração falsa, na pena de 6 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 18 meses.1
  4. Segundo o disposto nos artigos 9 e 4 da Lei n.º 3/20042, tais factos supracitados são desfavoráveis ao pedido de residência da requerente. Por isso, o advogado da requerente (em diante designado por “interessado”) apresentou por esta o requerimento por escrito, em que aquele fez as seguintes alegações com os respectivos fundamentos, bem como pediu o deferimento do requerimento de autorização de residência temporária.
  (1) Segundo o interessado, a sentença penal supra referida mostra que as circunstâncias do facto praticado pela requerente são ligeiras e não constituem ameaça para a segurança de Macau.
  (2) Segundo o interessado, os factores enumerados no artigo 9, n.º 2 da Lei supracitada não causam necessariamente o indeferimento do pedido de residência, e este só é indeferido quando a segurança pública de Macau ser ameaçada.
  (3) O interessado entende que deve considerar que a requerente preenche o disposto no artigo 9, n.º 2 da Lei n.º 4/2003 por não se ter encontrado nenhuma prática de crime no certificado de registo criminal. Além disso, a requerente não praticou qualquer crime nos últimos 10 anos, sendo reabilitado o seu direito.
  (4) Citando doutrinas e as respectivas disposições, o interessado entende que aos órgãos administrativos são conferidos os poderes discricionários para a justiça substancial, devendo estes exercê-lo de forma proporcional. O interessado indica que a decisão da Administração deve ser adequada e proporcional, e que a concessão ou não de autorização de residência deve ter em conta a natureza e o grau de gravidade do crime.
  (5) O interessado também alegou a relação entre antecedente criminal e regime de migração em Hong Kong e nos EUA. Aquele entende que não se verificará qualquer incompatibilidade entre a concessão à requerente de autorização de residência temporária em Macau e o interesse pública.
  (6) Além disso, segundo o interessado, a requerente dispõe de meios de subsistência, tem investimentos em Macau que se consideram relevantes, e é mãe dum menor de Macau, pelo que deve ser deferido o seu pedido de reagrupamento familiar, devendo o processo ser tratado com atitude humanitário positivo.
  5. Em relação aos pedidos supra referidos do interessado, vem-se apresentando as seguintes análises:
  (1) De acordo com o artigo 9, n.º 2 da Lei n.º 4/2003, sabe-se que para efeito de concessão da autorização de residência, atente-se primeiro aos aspectos: “antecedentes criminais, comprovado incumprimento das leis da RAEM ou qualquer das circunstâncias referidas no artigo 4.º da presente lei”, isso revela a importância desses requisitos.
  (2) O pressuposto que o disposto supracitado considera é que se se verifica antecedente criminal ou qualquer das circunstâncias referidas no artigo 4.º da presente lei. Mas não é que, como entende o interessado, considera-se preenchido o disposto em causa desde que a circunstância criminal é ligeira, que não se encontra qualquer crime no certificado de registo criminal, que não se constitui ameaça para a segurança de Macau e que se verifica a reabilitação do direito.
  (3) Nesta causa, a requerente uma vez permaneceu em Macau por período superior ao autorizado e foi condenada pelo TJB, pela prática de declaração falsa, na pena de 6 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 18 meses. Não se deixará de reconhecer que a requerente praticou ilícitos em Macau e foi condenada criminalmente. Nestes termos, segundo o artigo 9 da Lei acima, tendo em conta a prática ilícita da requerente e para a garantia da segurança e interesse pública, têm a Administração poderes discricionários3 quanto ao pedido de residência da requerente.
  (4) Por outro lado, “como foi decidido pelo TUI no seu acórdão de processo n.° 36/2006 proferido em 13 de Dezembro de 2007, ‘os requisitos para a concessão de autorização de residência previstos no regime de entrada, permanência e autorização de residência, a Lei n.º 4/2003, têm o seu fundamento diferente que o regime de registo criminal. Naquele relevam mais os interesses de ordem pública e segurança da comunidade da RAEM, neste preocupa com a ressocialização de delinquentes condenados criminalmente na Região através da reabilitação. São diferentes os interesses que se visam proteger. Por isso, não é possível aplicar pura e simplesmente as disposições de um regime para o outro.’”4
  (5) Além disso, independentemente de quando tempo passa desde a prática de crime ou a respectiva sentença, ainda se verifica a causa da preocupação e da alerta para a ordem e segurança pública da RAEM, que não pode ser excluída pela reabilitação judicial. Pelo que a Administração ainda deve ter aquela em conta quanto à concessão da autorização de residência.
  (6) O interessado alegou as regras quanto ao antecedente criminal e regime de migração em Hong Kong e nos EUA, bem como o seu entendimento destas, importa indicar, entretanto, que tal regime e entendimento não afecta a aplicação e execução da Lei n.º 4/2003. Além disso, tal como refere o interessado, a requerente tem em Macau um/uma filho/filha menor, disso resulta que a mesma tem outro meio de requerer o reagrupamento familiar em Macau.
  6. Face ao exposto, tendo em conta o facto de que a requerente tinha permanecido em Macau por período superior ao autorizado e que esta tinha sido condenada pelo TJB, pela prática de declaração falsa, na pena de 6 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 18 meses, nos termos do artigo 23 do Regulamento Administrativo n.º 3/2005 e artigo 9, n.º 2 da Lei n.º 4/2003 que se aplica subsidiariamente, sugiro, em consideração das necessidades da ordem e segurança pública da RAEM, que seja indeferido o pedido de autorização de residência temporária apresentado pela requerente A.
  Submeto à apreciação.
  Técnica Superior
  (Ass. Vd. o original)
  C
  Aos 17 de Maio de 2012”
  


III – O Direito
1. As questões a apreciar
Examinar-se-á se o acórdão recorrido aplicou mal os princípios da desburocratização e eficiência, se interpretou incorrectamente o artigo 9.º, n.º 2, alínea 1) da Lei n.º 4/2003, se avaliou mal o exercício do poder discricionário pela Administração.

2. Princípios da desburocratização e eficiência
Entende a recorrente que foram violados os princípios da desburocratização e eficiência, em virtude de a Administração ter demorado 30 meses para apreciar o seu pedido.
Não se entende muito bem o que pretende a recorrente com esta alegação. Será que defende que, por ter demorado demasiado tempo a apreciação do seu pedido, ele teria necessariamente de ser deferido, independentemente do seu mérito?
Seria demasiada ousada esta pretensão. Mas, a não ser assim, não se entende o objectivo da alegação.
Como dissemos no Acórdão de 14 de Dezembro de 2011, no Processo n.º 54/2011, e aqui é de manter:
«Há que rejeitar desde já qualquer violação dos princípios da desburocratização e da eficiência, previstos no artigo 12.º do Código do Procedimento Administrativo, segundo o qual a Administração Pública deve ser estruturada e funcionar de modo a aproximar os serviços das populações e de forma não burocratizada, a fim de assegurar a celeridade, a economia e a eficiência das suas decisões.
Como referem MÁRIO ESTEVES DE OLIVEIRA, PEDRO COSTA GONÇALVES e J. PACHECO DE AMORIM, “são princípios dos quais, naturalmente, os interessados não tiram mais do que uma protecção jurídica reflexa no procedimento, tendo maior valia programática, do que sancionabilidade jurídica, enquanto princípios procedimentais”5.»
Improcede o vício suscitado.

3. Violação do artigo 9.º, n.º 2, alínea 1) da Lei n.º 4/2003
Diz a recorrente que as autoridades administrativas têm tomado a posição de que se não concede autorização de residência sempre que haja registo criminal. E que isso é evidenciado na recusa de recepção por parte do funcionário do balcão n.º 5, quando a recorrente apresentou de novo, em 25 de Abril de 2007, o pedido de autorização de residência.
Mas esta alegação é insubsistente.
Não nos interessa muito o que é que as autoridades administrativas têm considerado noutros casos. O que nos interessa é a interpretação da lei e sua aplicação no caso dos autos.
Também não releva muito a actuação de um funcionário do balcão n.º X, na recepção dos pedidos de autorização. Não foi ele que praticou o acto administrativo recorrido.
Dispõe o artigo 9.º da Lei n.º 4/2003 que:
Artigo 9.º
Autorização

1. O Chefe do Executivo pode conceder autorização de residência na RAEM.
2. Para efeitos de concessão da autorização referida no número anterior deve atender-se, nomeadamente, aos seguintes aspectos:
1) Antecedentes criminais, comprovado incumprimento das leis da RAEM ou qualquer das circunstâncias referidas no artigo 4.º da presente lei;
2) Meios de subsistência de que o interessado dispõe;
3) Finalidades pretendidas com a residência na RAEM e respectiva viabilidade;
4) Actividade que o interessado exerce ou se propõe exercer na RAEM;
5) Laços familiares do interessado com residentes da RAEM;
6) Razões humanitárias, nomeadamente a falta de condições de vida ou de apoio familiar em outro país ou território.
3. A residência habitual do interessado na RAEM é condição da manutenção da autorização de residência.

No caso dos autos, o acto administrativo não decidiu que, sempre que alguém tivesse sido condenado judicialmente, não poderia obter autorização de residência. O que decidiu foi que, por a recorrente ter sido condenada judicialmente, não lhe era concedida tal autorização. Inscreve-se no exercício de poderes discricionários por parte da Administração.
Não houve qualquer erro na interpretação e/ou aplicação do artigo 9.º, n.º 2, alínea 1) da Lei n.º 4/2003.
Improcede o vício suscitado.

4. Poder discricionário pela Administração.
Na tese da recorrente, a Administração utilizou mal os seus poderes discricionários designadamente, porque já está reabilitada. Isto é a condenação judicial deixou de constar do certificado do registo criminal.
Sobre esta questão já nos pronunciámos no Acórdão de 31 de Julho de 2012, no Processo n.º 38/2012, tendo aí referido que a decisão judicial de não transcrição da sentença condenatória no certificado do registo criminal não tem natureza vinculativa para a Administração na decisão quanto à renovação, ou não, da autorização de residência tomada ao abrigo do disposto no art.º 9.º n.º 2, al. 1) da Lai n.º 4/2003, que permite a Administração indeferir o pedido de autorização de residência do interessado, tendo em consideração os seus antecedentes criminais.
E no acórdão de 10 de Junho de 2011, no Processo n.º 13/2011, recordando o decidido pelo TUI no seu acórdão de processo n.º 36/2006, proferido em 13 de Dezembro de 2007, dissemos que “os requisitos para a concessão de autorização de residência previstos no regime de entrada, permanência e autorização de residência, a Lei n.º 4/2003, têm o seu fundamento diferente que o regime de registo criminal. Naquele relevam mais os interesses de ordem pública e segurança da comunidade da RAEM, neste preocupa com a ressocialização de delinquentes condenados criminalmente na Região através da reabilitação. São diferentes os interesses que se visam proteger. Por isso, não é possível aplicar pura e simplesmente as disposições de um regime para o outro.”
E, a propósito do exercício de poderes discricionários na renovação de autorização de residência temporária, com fundamento em antecedentes criminais do interessado, dissemos o seguinte no Acórdão de 11 de Maio de 2011, no Processo n.º 12/2011:
«Por outro lado, como se disse, nos termos dos n. os 1 e 2, alínea 1) do artigo 9.º da Lei n.º 4/2003, para efeitos de concessão de autorização de residência na RAEM, deve atender-se, nomeadamente, aos “Antecedentes criminais, comprovado incumprimento das leis da RAEM ou qualquer das circunstâncias referidas no artigo 4.º da presente lei”.
A lei não especifica de que antecedentes criminais se trata, de qual a sua gravidade, qual o número de infracções cometidas.
A propósito da discricionariedade, dissemos o seguinte no Acórdão de 3 de Maio de 2000, no Processo n.º 9/2000, momento este recordado no nosso Acórdão de 27 de Outubro de 2010, no Processo n.º 50/2010, em que se apreciou, igualmente, um recurso jurisdicional relacionado com a aplicação dos n. os 1 e 2, alínea 1) do artigo 9.º da Lei n.º 4/2003:
“10. É clássica a explicação que MARCELLO CAETANO6 dá para distinguir os poderes vinculados e discricionários dos órgãos administrativos: «umas vezes a lei ou os estatutos regulam as circunstâncias em que o órgão deve exercer o poder que lhe está confiado, impondo-lhe que actue sempre que concorram essas circunstâncias, e determinam o modo de actuar e o conteúdo do acto.
Outras vezes a norma deixa ao órgão certa liberdade de apreciação acerca da conveniência e da oportunidade de exercer o poder, e até sobre o modo desse exercício e o conteúdo do acto, permitindo-lhe que escolha uma das várias atitudes ou soluções que os termos da lei admitam».
No primeiro caso trata-se de poder vinculado. No segundo, o poder é discricionário.
Cabe aqui referir que, como tem sido assinalado, não há, em regra actos totalmente vinculados, nem actos totalmente discricionários. Em qualquer acto administrativo se projectam poderes vinculados a par do exercício, em maior ou menor grau, de discricionaridade, resultando sempre da lei a competência e o fim, isto é o interesse público fixado ao exercício da competência no caso concreto, ao menos implicitamente7.
No que respeita às finalidades da lei na concessão do poder discricionário, explica aquele Professor8 que «a discricionaridade de certos poderes conferidos por lei aos órgãos da Administração traduz o reconhecimento pelo legislador da impossibilidade de prever na norma toda a riqueza e variedade das circunstâncias em que o órgão pode ser chamado a intervir e das soluções mais convenientes consoantes os casos» 9.
Enfim, como refere DAVID DUARTE10 «a existência de uma margem de acção permite a valorização das circunstâncias na sua imprevisibilidade, dá espaço e tempo de manobra e, para além de se lhe reconhecer uma função relevante de legitimação administrativa, realiza a vantagem que resulta da proximidade existente entre o decisor e a situação».

11. Uma matéria importante no âmbito da discricionariedade, relativamente ao caso em apreciação, é a que se refere aos limites do poder discricionário, por razões que estão ligadas à sindicabilidade judicial do exercício destes poderes.
As limitações do poder discricionário podem classificar-se com utilização de vários critérios.
Quanto ao critério da origem dos limites, costuma distinguir-se entre os limites legais, os que resultam da própria lei, e a auto-vinculação, isto é, de normas elaboradas pela própria Administração para disciplinar o uso de determinado poder discricionário.
Outra classificação distingue entre limites internos e limites externos.
De acordo com J. M. SÉRVULO CORREIA11, «por limites internos da discricionariedade, entendem-se os factores que condicionam a própria escolha entre as várias atitudes possíveis, fazendo com que algumas deixem de o ser nas circunstâncias concretas».
Os limites externos serão os restantes, os que se referem à orientação dos poderes de livre decisão a priori e ao seu controlo a posteriori12.
Entre estes limites externos, costuma referir-se a densidade normativa mínima.
A lei fundamental, por vezes, determina que certas matérias estejam reservadas à lei. Nestes casos, a atribuição de poderes discricionários à Administração deve conter uma exigência de densidade normativa mínima13.
Mas não só nos casos de reserva de lei se deve exigir tal densidade normativa mínima à norma que concede o poder discricionário. «O princípio da legalidade, na mesma vertente em que materializa a exigência de um título de decisão, não se limita, no entanto, a uma mera permissão decisória. Simultaneamente, por razões de densidade substantiva, a legalidade exige que o suporte da decisão contenha uma intensidade razoável de pré-determinações, sob pena de frustração da própria ratio do princípio14».
No que respeita aos limites internos, o primeiro será o da vinculação ao fim, «a necessidade de conformar o exercício da discricionariedade com o interesse público visado pela norma que a concede15».
O desvio de poder é o vício típico do exercício de poderes discricionários.
Dispunha o art. 19.º da Lei Orgânica do STA que «o exercício de poderes discricionários só pode ser atacado contenciosamente com fundamento em desvio de poder», existindo este sempre «que o motivo principalmente determinante da prática do acto recorrido não condizia com o fim visado pela lei na concessão do poder discricionário» (§ único do referido art. 19.º).
Dispondo a lei (art. 6.º do ETAF) que os recursos contenciosos são de mera legalidade e que o exercício de poderes discricionários só pode ser atacado contenciosamente com fundamento em desvio de poder, daqui resulta que os tribunais não controlam o mérito da decisão discricionária da Administração.

12. No que toca aos restantes limites internos do poder discricionário, interessa-nos destacar a consagração dos princípios jurídicos por que a Administração deve nortear a sua actividade.
De acordo com os arts. 5.º e 6.º do CPA, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 35/94/M, e vigente à data da prática do acto impugnado, no exercício da sua actividade, a Administração deve observar os princípios da igualdade, da proporcionalidade, da justiça e da imparcialidade.
Estes são, pois, limites internos do poder discricionário, factores que condicionam a própria escolha do decisor entre as várias atitudes possíveis16.
Entre tais princípios, os que, à partida, podem estar em causa no nosso caso serão os da proporcionalidade e da justiça. O nosso exame limitar-se-á a estes.
O CPA prevê o princípio da proporcionalidade no seu art. 5.º, n.º 2, estabelecendo que «as decisões da Administração que colidam com direitos subjectivos ou interesses legalmente protegidos dos particulares só podem afectar essas posições em termos adequados e proporcionais aos objectivos a realizar».
Não cabe aqui fazer a história da génese do princípio ou a sua fundamentação filosófica.
Como refere VITALINO CANAS17 o princípio da proporcionalidade só poderá aplicar-se na apreciação de comportamentos em que o autor goze de uma certa margem de escolha.
A doutrina tem dissecado o princípio em três subprincípios, da idoneidade, necessidade e proporcionalidade, em sentido estrito, ou de equilíbrio.
A avaliação da idoneidade de uma medida é meramente empírica, podendo sintetizar-se na seguinte pergunta: a medida em causa é capaz de conduzir ao objectivo que se visa?
Aceitando-se que uma medida é idónea, passa a verificar-se se é necessária.
O centro das preocupações desloca-se para a ideia de comparação. Enquanto na máxima da idoneidade se procurava a certificação de uma relação causal entre um acto de um certo tipo e um resultado que se pretende atingir, na máxima da necessidade a operação central é a comparação entre uma medida idónea e outras medidas também idóneas. O objectivo da comparação será a escolha da medida menos lesiva.
«A aferição da proporcionalidade, em sentido estrito, põe em confronto os bens, interesses ou valores perseguidos com o acto restritivo ou limitativo, e os bens, interesses ou valores sacrificados por esse acto. Pretende-se saber, à luz de parâmetros materiais ou axiológicos, se o sacrifício é aceitável, tolerável. Para alguns, esta operação assemelha-se externamente à análise económica dos custos/benefícios de uma decisão. Se o custo (leia-se o sacrifício de certos bens, interesses ou valores) está numa proporção aceitável com o benefício (leia-se a satisfação de certos bens, interesses ou valores) então a medida é proporcional em sentido estrito»18 19.
O CPA determina no art. 6.º que «no exercício da sua actividade, a Administração Pública deve tratar de forma justa e imparcial todos os que com ela entrem em relação».

13. Não se têm suscitado dúvidas tanto na doutrina como na jurisprudência, que os tribunais podem fiscalizar o respeito pelos princípios da igualdade, da proporcionalidade, da justiça e da imparcialidade. A dúvida está em saber em que medida deverão os tribunais intervir nesta matéria.
DAVID DUARTE20, referindo-se à proporcionalidade em sentido estrito, «que engloba a técnica do erro manifesto de apreciação, técnica jurisdicional francesa que compreende, em termos avaliativos, para além do erro na qualificação dos factos, a utilização de um critério decisório proporcional que se revela numa decisão desequilibrada entre o contexto e a finalidade. O erro manifesto de apreciação, na vertente de controlo da adequação da decisão aos factos…é, como meio de controlo do conteúdo da decisão, um dos degraus mais elevados da intervenção do juiz na discricionariedade administrativa. E, por isso, só é utilizável na medida da evidência comum da desproporção21» (o sublinhado é nosso).
Nas mesmas águas navega MARIA DA GLÓRIA F. P. DIAS GARCIA22 defendendo que«em face da fluidez dos princípios (da proporcionalidade, da igualdade, da justiça), só são justiciáveis as decisões que, de um modo intolerável, os violem23» (o sublinhado é nosso).
O novo CPAC, no seu art. 21.º, n.º 1, alínea d), embora não aplicável à situação dos autos, a respeito dos fundamentos do recurso contencioso refere-se ao «erro manifesto ou a total desrazoabilidade no exercício de poderes discricionários»”.
Após esta longa citação do nosso anterior Acórdão, não parecem suscitar-se dúvidas que os n.º os 1 e 2, alínea 1) do artigo 9.º da Lei n.º 4/2003, quando referem que para efeitos de concessão de autorização de residência na RAEM, deve atender-se, nomeadamente, aos “Antecedentes criminais, comprovado incumprimento das leis da RAEM ou qualquer das circunstâncias referidas no artigo 4.º da presente lei”, confere verdadeiros poderes discricionários à Administração.
Para efeitos do artigo 21.º, n.º 1, alínea d) do CPAC, que se aplica aos autos, não se afigura ter havido erro manifesto ou total desrazoabilidade no exercício dos poderes discricionários.
Entendemos, assim, que o acto recorrido não violou os princípios da igualdade, da proporcionalidade e da justiça, ao não ter deferido o pedido de autorização de residência, com fundamento em antecedentes criminais da recorrente.

IV – Decisão
Face ao expendido, nega-se provimento ao recurso.
Custas pela recorrente, com taxa de justiça que se fixa em 7 UC.
Macau, 9 de Julho de 2014.
Juízes: Viriato Manuel Pinheiro de Lima (Relator) – Song Man Lei – Sam Hou Fai


O Magistrado do Ministério Público
presente na conferência: Vítor Manuel Carvalho Coelho




1 Consultados os dados dos pedidos de fixação de residência, comprovou-se que em 28 de Janeiro de 2003 e de acordo com o Decreto-Lei n.º 14/95/M, a requerente solicitou a fixação de residência temporária em aquisição de bens imóveis em Macau não inferior a um milhão de patacas como fundamento, requerimento esse que foi, no entanto, indeferido pela Administração em 10 de Setembro de 2004 pelo facto de que a requerente tinha permanecido em Macau por período superior ao autorizado e que esta tinha sido condenada pelo TJB, pela prática de declaração falsa, na pena de 6 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 18 meses. O número deste requerimento de residência é XXXX/2003 (vd. fls. 109 a 112 do documento).
2 Nos termos do artigo 9 da Lei n.º 4/2003:
1. O Chefe do Executivo pode conceder autorização de residência na RAEM.
2. Para efeitos de concessão da autorização referida no número anterior deve atender-se, nomeadamente, aos seguintes aspectos:
1) Antecedentes criminais, comprovado incumprimento das leis da RAEM ou qualquer das circunstâncias referidas no artigo 4.º da presente lei;
2) Meios de subsistência de que o interessado dispõe;
3) Finalidades pretendidas com a residência na RAEM e respectiva viabilidade;
4) Actividade que o interessado exerce ou se propõe exercer na RAEM;
5) Laços familiares do interessado com residentes da RAEM;
6) Razões humanitárias, nomeadamente a falta de condições de vida ou de apoio familiar em outro país ou território.
3. A residência habitual do interessado na RAEM é condição da manutenção da autorização de residência.

3 Entendemos que, os n. os 1 e 2, alínea 1) do artigo 9.º da Lei n.º 4/2003, quando referem que para efeitos de concessão de autorização de residência na RAEM, deve atender-se, nomeadamente, aos “Antecedentes criminais, comprovado incumprimento das leis da RAEM ou qualquer das circunstâncias referidas no artigo 4.º da presente lei”, confere verdadeiros poderes discricionários à Administração. (vd. a descrição de linha 4 a 8 em fls. 23 do Acórdão do Recurso de decisão jurisdicional em matéria administrativa no âmbito do processo n.º 12/2011 do TUI)
4 vd. a descrição de linha 9 a 14 em fls. 9 do Acórdão do Recurso de decisão jurisdicional em matéria administrativa no âmbito do processo n.º 12/2011 do TUI
5 MÁRIO ESTEVES DE OLIVEIRA, PEDRO COSTA GONÇALVES e J. PACHECO DE AMORIM, Código do Procedimento Administrativo Comentado, Coimbra, Almedina, 2.ª edição, 1997, p. 131.
     6 MARCELLO CAETANO, Manual, vol. cit., p. 214.
7 MARCELLO CAETANO, ob. e vol. cits., p 490, FREITAS DO AMARAL, ob. e vol cits. , p. 112 e segs. e DAVID DUARTE, ob. cit., p. 343.
8 MARCELLO CAETANO, ob. e vol. cits., p. 214 e 215.
9 Na lição de MARTIM BULLINGER, Verwaltungsermessen im modernen Staat (Deutschland), Baden-Baden, 1986, p. 149 a 156, citado por MARIA DA GLÓRIA F. P.DIAS GARCIA, Da Justiça Administrativa em Portugal, Sua Origem e Evolução, Lisboa, 1994, p. 645, tais finalidades são as de:
- Âmbito livre para considerações estratégicas ou tácticas, como acontece com a polícia, a fim de adequadamente reagir aos perigos contra a segurança e ordem públicas;
- Âmbito livre para adaptar a lei a circunstâncias especiais do caso concreto, como acontece com uma licença excepcional de construção para um caso típico;
- Âmbito livre para valorações técnicas, como é o caso actos tomados na base de dados fornecidos por comissões de peritos de instalação de centrais nucleares;
- Âmbito livre para projectos que concretizam a lei e actos configuradores similares (discricionariedade do plano);
   - Âmbito livre para a optimização flexível de prestações estatais.
   10 Ob. cit., p. 351.
   11 Ob. cit., p. 499.
12 BERNARDO DINIZ DE AYALA, ob. cit., p. 176.
13 BERNARDO DINIZ DE AYALA, ob. cit., p. 176 a 178.
14 DAVID DUARTE, ob. cit., p. 344, que acrescenta que a norma deve ser determinada, não sendo possível que a habilitação decisória seja a do exemplo caricaturalmente utilizado por JESCH: “A Administração tem a faculdade de poder fazer tudo aquilo que considere necessário para a prossecução do interesse público”.
15 J. M. SÉRVULO CORREIA, ob. cit., p. 493. Cfr, sobre esta matéria, também, MARCELLO CAETANO, ob. e vol. cits., p. 214.
16 Sobre esta matéria, M. ESTEVES DE OLIVEIRA, Direito Administrativo, vol. I, 1980, Livraria Almedina, Lisboa, p. 255 e segs.
17 VITALINO CANAS, Princípio da Proporcionalidade, in Dicionário Jurídico da Administração Pública, vol VI, Lisboa, 1994, p. 616, que se seguirá de perto na exposição subsequente.
   18 VITALINO CANAS, ob. cit., p. 628.
   19 Sobre o emprego no princípio da proporcionalidade da contabilização custos-benefícíos (ou vantagens) pelo Conselho de Estado francês, cfr. J. M. SÉRVULO CORREIA, ob. cit., p. 75, que enumera, a p. 114 e segs. da mesma obra, os elementos do princípio em termos semelhantes aos traçados acima.
   20 DAVID DUARTE, ob. cit., p. 323.
21 O mesmo autor, ob. cit., p. 323, nota 205, a propósito da questão de saber qual a medida da desproporcionalidade que uma decisão deve ter para poder ser controlada pelo tribunal, cita uma decisão judicial britânica de 1945 (Associated Provincial Picture House Ltd. v. Wednesbury Corporation), que criou um standard aplicável à medida da intervenção judicial, estabelecendo que “if an authority`s decision was so unreasonable that no reasonable authority could ever have como to it, then the courts can interfere”.
22 Ob. cit., p. 642.
23 No mesmo sentido, M. ESTEVES DE OLIVEIRA, ob. cit., p. 256 e 257 e J.C. VIEIRA DE ANDRADE, O Dever da Fundamentação Expressa de Actos Administrativos, Livraria Almedina, Coimbra, 1991, p. 137.
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Processo n.º 29/2014

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Processo n.º 29/2014