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Processo nº 342/2014 Data: 26.06.2014
(Autos de recurso penal)

Assuntos : Crime de “consumo de estupefacientes” e de “detenção de utensilagem”.
Concurso (real ou aparente).
Erro notório na apreciação da prova.
(Irrelevância).



SUMÁRIO

1. A existência dos vícios da decisão da matéria de facto elencados nas alíneas do n.° 2 do art. 400° do C.P.P.M. só devem dar lugar ao reenvio se não for possível decidir da causa.

2. É inútil conhecer do imputado vício de erro notório na apreciação da prova e consequente erro na decisão da matéria de facto se esta for irrelevante para a decisão de direito.

O relator,

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José Maria Dias Azedo

Processo nº 342/2014
(Autos de recurso penal)






ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:





Relatório

1. O Digno Magistrado do Ministério Público junto do Tribunal Judicial de Base vem recorrer da sentença proferida nos Autos de Processo Comum Singular n.° CR2-14-0051-PCS, imputando à dita sentença o vício de “erro notório na apreciação da prova”; (cfr., fls. 214 a 216 que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).

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Após resposta dos arguidos A (XXX) e B (XXX), considerando que o recurso não merecia provimento, (cfr., fls. 219 a 222), e junto que foi neste T.S.I. o douto Parecer do Ilustre Procurador Adjunto, pugnando também pela improcedência do recurso, (260 a 261), vieram os autos à conferência.

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Nada parecendo obstar, cumpre decidir.

Fundamentação

2. Vem o Digno Magistrado Ministério Público recorrer da sentença proferida pelo Mmo Juiz do T.J.B., afirmando que incorreu o mesmo no vício de “erro notório na apreciação da prova” ao dar como não provado que os mencionados arguidos tinham utilizado uma palhinha para o consumo de Ketamina.

E, sendo (apenas) esta a questão colocada, afigura-se-nos de consignar o que segue.

Os arguidos dos autos estavam acusados da prática em autoria material e em concurso real de 1 crime de “consumo ilícito de estupefacientes” e 1 outro de “detenção de utensilagem”, p. e p. pelos art°s 14° e 15° da Lei n.° 17/2009.

E sendo que em consequência da sua decisão de dar como não provado que as ditas arguidas tinham “utilizado uma palhinha para o consumo de Ketamina” decidiu o Mmo Juiz a quo absolver as mesmas arguidas do imputado crime de “detenção de utensilagem” do art. 15°da Lei n.° 17/2009, (condenando-as pelo crime de “consumo”), (cfr., fls. 201 a 204-v), cremos que se terá de confirmar o assim decidido, (ainda que com fundamentação diversa).

Vejamos.

Mostra-se-nos acertado o entendimento no sentido de que os vícios da decisão da matéria de facto elencados no art. 400°, n.° 2, al. a), b) e c) do C.P.P.M. apenas devem dar lugar ao reenvio dos autos para novo julgamento quando possível não for uma decisão sobre a causa; (neste sentido, cfr., v.g., P. Pinto de Albuquerque in “Comentário ao C.P.P.”, 2011, pág. 1172 e o Ac. do Vdo T.U.I. de 06.11.2013, Proc. n.° 51/2013).

E, nesta conformidade, mostrando-se-nos de entender que os crimes de “consumo de estupefacientes” e o de “detenção de utensilagem”, quando cometidos pelo mesmo agente (arguido), estão numa relação de “concurso aparente” (e não “real”); (neste sentido, cfr., v.g., a declaração de voto anexa ao Ac. de 31.03.2011, Proc. n.° 81/2011), irrelevante é também assim verificar do assacado “erro”.

Passa-se a (tentar) explicitar este nosso ponto de vista.

Vejamos.

Punindo o crime de “consumo de estupefacientes” prescreve o art. 14° da Lei n.° 17/2009 que:

“Quem consumir ilicitamente ou, para seu exclusivo consumo pessoal, cultivar, produzir, fabricar, extrair, preparar, adquirir ou detiver ilicitamente plantas, substâncias ou preparados compreendidos nas tabelas I a IV, é punido com pena de prisão até 3 meses ou com pena de multa até 60 dias”.

Por sua vez, e sobre o crime de “detenção de utensilagem” estatui o art. 15° da mesma Lei que:

“Quem detiver indevidamente qualquer utensílio ou equipamento, com intenção de fumar, de inalar, de ingerir, de injectar ou por outra forma utilizar plantas, substâncias ou preparados compreendidos nas tabelas I a IV, é punido com pena de prisão até 3 meses ou com pena de multa até 60 dias”.

Atento o assim estatuído, cremos que adequado é o entendimento no sentido de que ambos os comandos legais visam tutelar (essencialmente) o mesmo bem jurídico: a saúde (individual) do consumidor.

O primeiro – art. 14° – visa prevenir e reprimir (directamente) o “consumo de estupefacientes”, e o segundo – art. 15° – punindo a “detenção de utensílio ou equipamento” com intenção de ser utilizado no consumo de estupefacientes, visa também prevenir esta “actividade”.

Desta forma, e notando-se que foram tais ilícitos imputados aos mesmos arguidos (dos autos), afigura-se-nos pois que correcta não será uma decisão no sentido do seu cometimento em “concurso real”; (em sentido contrário, v.d. v.g., o Acórdão do então T.S.J. de 15.05.1996, Processo n.°475, in “Jurisprudência”, 1996, Tomo I, página 366).

De facto, importa ter também em conta que aquando do debate da então Proposta de Lei intitulada “Proibição da produção, do tráfico e do consumo ilícito de estupefacientes e substâncias psicotrópicas” ocorrido na Assembleia Legislativa, (agora Lei n.° 17/2009), e em expressa resposta à questão ora em causa assim se pronunciou o Exmo. Assessor do Gabinete da Secretária para a Administração e Justiça:

“Ora bem, eu gostaria antes de mais de dizer que a detenção indevida de cachimbos e outros utensílios consta actualmente no artigo 12 do Dec-Lei 5/91/M e é punida com multa de até um ano, ou de 500 a 10.000 patacas. Porquê então agora 6 meses? É que não se entende porque é que eu tenho, porquê que de eu ter um cachimbo hei-de ter uma pena de um ano, um cachimbo para fumar, e fumando ter uma pena de seis… que antigamente era de 3 meses, ou seja, era pena maior ter um utensílio do que por consumir. Como os objectivos são os mesmos, optou-se por pôr a mesma pena dos 6 meses.
A questão colocada e bem pela Sra. Deputada aplicam-se cumulativamente os dois? A minha resposta é não. Se eu tenho o utensílio e não fumei, sou punido pela detenção. Se eu tenho o utensílio, por exemplo, o cachimbo, fumei, sou punido pelo consumo. Porque é aquilo que se diz em termos jurídicos, um crime consome o outro”, (cfr., Diário da Assembleia da R.A.E.M., I Série, n.° III – 100, pág. 17 e 18); (sub. nosso).

Nesta conformidade, (e inútil sendo assim a apreciação e decisão sobre o imputado vício de “erro”), há pois que confirmar a decisão recorrida.
Decisão

3. Nos termos que se deixam expostos, confirma-se a sentença recorrida.

Sem tributação.

Honorários ao Exmo. Defensor no montante de MOP$1.800,00.

Macau, aos 26 de Junho de 2014
José Maria Dias Azedo
Chan Kuong Seng (vencido na decisão do recurso, porquanto entendo que podendo haver concurso efectivo entre o crime de consumo de estupefaciente e o crime de detenção indevida de utensilagem, este TSI deve conhecer do mérito do recurso).

Tam Hio Wa (subscrevo a decisão da absolvição do crime de detenção indevida de utensílio ou equipamento, p.p. pelo art.º 15º da Lei n.º 17/2009, por entender que as palhinhas plásticas são consumíveis e carecem a durabilidade exigida pelo art.º 15º referido).

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