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Processo nº 588/2013
(Revisão de Sentença do Exterior)

Data: 3/Julho/2014

   
   Assuntos:
- Revisão de Sentença do Exterior

    
    SUMÁRIO :
    
    É de confirmar uma sentença homologatória de conciliação civil, proferida pelos Tribunais do Interior da China, relativa a um divórcio litigioso convertido em mútuo consentimento, desde que se mostre a autenticidade e inteligibilidade da decisão revidenda, desde que transitada, não se tratando de matéria da competência exclusiva dos Tribunais de Macau e não se vendo em que tal confirmação possa ofender os princípios de ordem pública interna.


O Relator,
(João Gil de Oliveira)


Processo n.º 588/2013
(Revisão de Sentença do Exterior)
Data : 3/Julho/2014

Requerentes : A
B

Requeridos : Os mesmos

    ACORDAM OS JUÍZES NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
    I - RELATÓRIO
    A, de sexo masculino, de nacionalidade chinesa, mais bem identificado nos autos, e B, de sexo feminino, de nacionalidade chinesa, também ela ali mais bem identificada,
     vêm requerer junto deste Tribunal de Segunda Instância da R.A.E.M. a REVISÃO E CONFIRMAÇÃO DA SENTENÇA proferida na República Popular da China, que aí dissolveu o seu casamento,

    o que fazem nos termos e com os seguintes fundamentos:
1. No dia 23 de Dezembro de 1999, os requerentes contraíram o casamento civil no Serviço para os Assuntos Cíveis da Cidade de Xiamen da Província de Fu Jian da China.
2. Os requerentes não têm filhos.
3. Após o casamento, em virtude de desarmonia sentimental, os requerentes deduziram a acção de divórcio junto ao Tribunal Popular do Distrito de Siming da Cidade de Xiamen da Província de Fujian da China em 23 de Agosto de 2006.
4. O Tribunal Popular do Distrito de Siming procedeu o julgamento em relação à acção de divórcio interposta pelos requerentes, através a conciliação presidida pelo mesmo Tribunal, os requerentes chegaram o acordo de divórcio por consentimento próprio.
5. No dia 20 de Setembro de 2006, o Tribunal Popular do Distrito de Siming emitiu um termo de conciliação civil aos requerentes, com vista a homologar o acordo de divórcio por mútuo consentimento entre eles. (vide o anexo 3)
6. O aludido termo de conciliação civil foi transitado no mesmo dia, isto é, 20 de Setembro de 2006. (vide o anexo 4)
7. O “Termo de conciliação civil” no anexo 3 é o original, emitido pelo Tribunal Popular do Distrito de Siming da Cidade de Xiamen da Província de Fujian da China em 20 de Setembro de 2006, produzido em chinês, na página um consta o número do processo, o nome dos requerentes, tanto como a data de casamento e a data de divórcio dos requerentes, na página dois consta a assinatura do juiz e o carimbo do mesmo Tribunal no lado direito inferior.
8. O Termo de conciliação civil supracitado é explicitamente articulado, fácil de compreender, não existe qualquer dúvida, uma pessoa normal pode ler e compreender o seu teor. Pelo que, preenche o disposto do art.º 1200º, noº1, al. a) do Código de Processo Civil.
9. A decisão de divórcio confirmada pelo Tribunal Popular do Distrito de Siming da Cidade de Xiamen da Província de Fujian da China em 20 de Setembro de 2006 é determinada, transitada em julgado no mesmo dia conforme a lei da China, pelo que, preenche o disposto do art.º 1200º, noº1, al. b) do Código de Processo Civil.
10. O Tribunal Popular do Distrito de Siming é competente, não há qualquer vício ou dúvida, o objecto da respectiva decisão é para resolver a relação matrimonial, que não se constitui a competência exclusiva dos tribunais de Macau, pelo que, preenche o disposto do art.º 1200º, noº1, al. c) do Código de Processo Civil.
11. Não há excepção de litispendência ou de caso julgado com fundamento em causa afecta a tribunal de Macau. Pelo que, preenche o disposto do art.º 1200º, noº1, al. d) do Código de Processo Civil.
12. Pelo teor do respectivo Termo de Conciliação Civil, sabe-se que no mesmo processo de julgamento têm sido observados os princípios do contraditório e da igualdade das partes.
13. O respectivo registo de divórcio que o vosso tribunal confirmará não conduza a um resultado incompatível com a ordem pública. Pelo que, preenche o disposto do art.º 1200º, noº1, al. f) do Código de Processo Civil.
14. Os requerentes necessitam requerer a confirmação da aludida decisão pelo vosso tribunal, a fim que esta pode produzir efeito legal na RAEM, para realizar as finalidades legais, nomeadamente tratar o registo civil e alterar o estado civil junto às autoridades administrativas de Macau.
15. Face pelo exposto, preenche todos os pressupostos do art.º 1200º, noº1 do Código de Processo Civil.
16. Nos termos do art.º 1º (garantia de acesso aos tribunais) do Código de Processo Civil: “a protecção jurídica através dos tribunais implica o direito de obter, em prazo razoável, uma decisão judicial que aprecie, com força de caso julgado, a pretensão regularmente deduzida em juízo, bem como a possibilidade de a fazer executar. A todo o direito, excepto quando a lei determine o contrário, corresponde a acção adequada a fazê-lo reconhecer em juízo, a prevenir ou reparar a violação dele e a realizá-lo coercivamente, bem como as providências necessárias para acautelar o efeito útil da acção.”
17. Por final, os requerentes têm capacidade e personalidade judiciária, representam-se com a legitimidade, e estão representados judicialmente. O processo tem valor. O tribunal é competente.
   Face ao exposto, pedem se julgue procedente o pedido de confirmação da respectiva decisão de divórcio por mútuo consentimento, cujo teor resolve a relação matrimonial contraída entre os requerentes, emitida no dia 20 de Setembro de 2006 e transitada em julgado no mesmo dia pelo Tribunal Popular do Distrito de Siming da Cidade de Xiamen da Província de Fujian da China, de forma a produzir efeitos na RAEM.
    
    
    O Digno Magistrado do Ministério Público pronuncia-se no sentido de não vislumbrar obstáculo à revisão em causa.

Foram colhidos os vistos legais.
    
    II - PRESSUPOSTOS PROCESSUAIS

O Tribunal é o competente internacionalmente, em razão da matéria e da hierarquia.
As partes são dotadas de personalidade e capacidade judiciária, dispondo de legitimidade ad causam.


    Inexistem quaisquer outras excepções ou questões prévias de que cumpra conhecer.
    
    III - FACTOS
    
    Com pertinência, têm-se por assentes os factos seguintes:
Vem certificada a seguinte sentença homologatória de divórcio por mútuo consentimento:

1. “República Popular da China
Tribunal Popular do Distrito de Siming da Cidade de Xiamen da
Província de Fujian
Termo de Conciliação Civil

*
Tribunal Popular do Distrito de Siming da Cidade de Xiamen da Província de Fujian
Termo de Conciliação Civil

SI MIN CHU ZI n.º 4517(2006)
   A autora, B, de sexo feminino, nascida em 2 de Dezembro de 1963, residente em RAEM, Taipa, XXX.
   O réu, A, de sexo masculino, nascido em 11 de Junho de 1963, residente em Macau, XXX.
   O nosso tribunal admitiu, no dia 23 de Agosto de 2006, o processo de conflito de divórcio entre a autora B e o réu Lam Ioiwo. O tribunal colectivo, composto pelo juiz XXX, que exerceu o cargo de presidente, o juiz XXX e o juiz adjunto XXX, fez o julgamento ao processo. A autora B declarou que contraiu casamento com o réu Lam Ioiwo no Serviço para Assuntos Cíveis da Cidade de Xiamen no dia 23 de Dezembro de 1999, de casamento não tinham filho, por desarmonia sentimental, pediu o divórcio com o réu, este concordou no divórcio.
   No processo de julgamento, através da conciliação presidida por este tribunal, as partes chegaram os seguintes acordos por vontade própria:
   1. A autora B e o réu A divorciam por mútuo consentimento.
   2. O processo tem custas de 50 Yuans, ficando ao cargo da autora B.
   As partes aceitam ambos com o teor deste acordo de conciliação, no qual vão assinar ou pôr impressão digital para produzir efeito legal.
   Por não violar o disposto legal, o presente tribunal homologa o acordo supracitado.
   
Juiz presidente (Ass.) XXX
Juiz (Ass.) XXX
Juiz (Ass.) XXX

Aos 20 de Setembro de 2006


A presente cópia está conforme o original.
Escrivão em substituição (Ass.) XXX”


2. “Tribunal Popular do Distrito de Siming da Cidade de Xiamen da Província de Fujian
     Certidão
    O Termo de Conciliação de SI MIN CHU ZI n.º 4517 (2006) no processo em relação ao conflito de divórcio entre a autora B e o réu Lam Ioiwo, julgado pelo nosso tribunal, foi transitado em 20 de etembro de 2006.
    Aos 10 de Setembro de 2013
    (carim.) Tribunal popular do Distrito de Siming da Cidade de Xiamen”
    
    III - FUNDAMENTOS
   
1. O objecto da presente acção - revisão de sentença proferida em processo de divórcio pelo Tribunal Popular do Distrito de Siming da Cidade de Xiamen da Província de Fujian, República Popular da China -, de forma a produzir aqui eficácia, passa pela análise das seguintes questões:
   
   - Requisitos formais necessários para a confirmação;
   - Colisão ou não com matéria da exclusiva competência dos Tribunais de Macau;
   - Compatibilidade com a ordem pública;
   
2. Prevê o artigo 1200º do C. Processo Civil:
   
   “1. Para que a decisão proferida por tribunal do exterior de Macau seja confirmada, é necessária a verificação dos seguintes requisitos:
a) Que não haja dúvidas sobre a autenticidade do documento de que conste a decisão nem sobre a inteligibilidade da decisão;
b) Que tenha transitado em julgado segundo a lei do local em que foi proferida;
c) Que provenha de tribunal cuja competência não tenha sido provocada em fraude à lei e não verse sobre matéria da exclusiva competência dos tribunais de Macau;
d) Que não possa invocar-se a excepção de litispendência ou de caso julgado com fundamento em causa afecta a tribunal de Macau, excepto se foi o tribunal do exterior de Macau que preveniu a jurisdição;
e) Que o réu tenha sido regularmente citado para a acção, nos termos da lei do local do tribunal de origem, e que no processo tenham sido observados os princípios do contraditório e da igualdade das partes;
f) Que não contenha decisão cuja confirmação conduza a um resultado manifestamente incompatível com a ordem pública.
2. O disposto no número anterior é aplicável à decisão arbitral, na parte em que o puder ser.”
   
   Com o Código de Processo Civil (CPC) de 1999, o designado privilégio da nacionalidade ou da residência - aplicação das disposições de direito privado local, quando este tivesse competência segundo o sistema das regras de conflitos do ordenamento interno - constante da anterior al. g) do artigo 1096º do CPC, deixou de ser considerado um requisito necessário, passando a ser configurado como mero obstáculo ao reconhecimento, sendo a sua invocação reservada à iniciativa da parte interessada, se residente em Macau, nos termos do artigo 1202º, nº2 do CPC.
   
   A diferença, neste particular, reside, pois, no facto de que agora é a parte interessada que deve suscitar a questão do tratamento desigual no foro exterior à R.A.E.M., facilitando-se assim a revisão e a confirmação das decisões proferidas pelas autoridades estrangeiras, respeitando a soberania das outras jurisdições, salvaguardando apenas um núcleo formado pelas matérias da competência exclusiva dos tribunais de Macau e de conformidade com a ordem pública.
   
   Não se conhecendo do fundo ou do mérito da causa, na revisão formal, o Tribunal limita-se a verificar se a sentença estrangeira satisfaz certos requisitos de forma e condições de regularidade1, pelo que não há que proceder a novo julgamento tanto da questão de facto como de direito.
   
   3. Vejamos então os requisitos previstos no artigo 1200º do CPC.
   
   Autenticidade e inteligibilidade da decisão.
   
   Parece não haver dúvidas de que se trata de um documento autêntico devidamente selado e traduzido, certificando-se uma decisão proferida em acção de divórcio intentada pela esposa do ora requerente no Tribunal respectivo da cidade de Xiamen, proferida em 20 de Setembro de 2006, cujo conteúdo facilmente se alcança, por ruptura conjugal e impossibilidade de recuperação do convívio e harmonia entre o casal, em particular no que respeita à parte decisória - dissolução do casamento -, sendo certo que é esta que deve relevar.2
   
   4. Quanto aos requisitos relativos ao trânsito em julgado, competência do tribunal do exterior, ausência de litispendência ou de caso julgado, citação e garantia do contraditório, dispõe o artigo 1204º do CPC:
   
   “O tribunal verifica oficiosamente se concorrem as condições indicadas nas alíneas a) e f) do artigo 1200º, negando também oficiosamente a confirmação quando, pelo exame do processo ou por conhecimento derivado do exercício das suas funções, apure que falta algum dos requisitos exigidos nas alíneas b), c), d) e e) do mesmo preceito”.
   
   Tal entendimento já existia no domínio do Código anterior3, entendendo-se que, quanto àqueles requisitos, geralmente, bastaria ao requerente a sua invocação, ficando dispensado de fazer a sua prova positiva e directa, já que os mesmos se presumiam4.
   
   É este, igualmente, o entendimento que tem sido seguido pela Jurisprudência de Macau.5
   Ora, nada resulta dos autos ou do conhecimento oficioso do Tribunal, no sentido da não verificação desses requisitos que assim se têm por presumidos.
   
   5. Já a matéria da competência exclusiva dos Tribunais de Macau está sujeita a indagação, implicando uma análise em função do teor da decisão revidenda, à luz, nomeadamente, do que dispõe o artigo 20º do CC:

“A competência dos tribunais de Macau é exclusiva para apreciar:
a) As acções relativas a direitos reais sobre imóveis situados em Macau
b) As acções destinadas a declarar a falência ou a insolvência de pessoas colectivas cuja sede se encontre em Macau.”
   
   Ora, facilmente se observa que nenhuma das situações contempladas neste preceito colide com o caso sub judice, tratando-se aqui da revisão de um divórcio requerido apenas por um dos cônjuges e contestado pela outra parte.
   
   6. Da ordem pública.
   Não se deixa de ter presente a referência à ordem pública, a que alude o art. 273º, nº2 do C. Civil, no direito interno, como aquele conjunto de “normas e princípios jurídicos absolutamente imperativos que formam os quadros fundamentais do sistema, pelo que são, como tais, inderrogáveis pela vontade dos indivíduos.”6
   
   E se a ordem pública interna restringe a liberdade individual, a ordem pública internacional ou externa limita a aplicabilidade das leis exteriores a Macau, sendo esta última que relevará para a análise da questão.
   No caso em apreço, em que se pretende confirmar o acórdão que dissolveu o casamento, decretando o divórcio entre ambos os requerentes, não se vislumbra que haja qualquer violação ou incompatibilidade com a ordem pública.
   
   Aliás, sempre se realça que o nosso direito substantivo prevê a dissolução do casamento, até por mútuo consenso, tal como acabou por se verificar neste caso, constando-se da documentação que se alegou que o casamento chegou a um ponto em que já não era possível continuar, por desarmonia sentimental e ruptura dos laços conjugais, situação essa que a sentença não deixa de reflectir.
   
   O pedido de confirmação de sentença do Exterior não deixará, pois, de ser procedente.
   
    V - DECISÃO

    Pelas apontadas razões, acordam conceder a revisão e confirmar a decisão proferida no processo de divórcio entre os requerentes A e B, decisão judicial essa, proferida pelo Tribunal Popular do Distrito de Siming da Cidade de Xiamen da Província de Fujian, República Popular da China - na acção MIN CHU ZI n.º 4517(2006), com decisão proferida no dia 20 de Setembro de 2006 transitada no mesmo dia, que decretou o divórcio dos cônjuges, tudo como consta do certificado de fls. 8 a 12.

Custas pelos requerentes.
   Macau, 3 de Julho de 2014,
   João A. G. Gil e Oliveira
   Ho Wai Neng
   José Cândido de Pinho
1 - Alberto dos Reis, Processos Especiais, 2º, 141; Proc. nº 104/2002 do TSI, de 7/Nov/2002

2 - Ac. STJ de 21/12/65, BMJ 152, 155
3 - cfr. artigo 1101º do CPC pré-vigente
4 - Alberto dos Reis, ob. cit., 163 e Acs do STJ de 11/2/66, BMJ, 154-278 e de 24/10/69, BMJ, 190-275
5 - cfr. Ac. TSJ de 25/2/98, CJ, 1998, I, 118 e jurisprudência aí citada, Ac. TSI de 27/7/2000, CJ 2000, II, 82, 15/2/2000, CJ 2001, I, 170, de 24/5/2001, CJ 2001, I, 263 de 11/4/2002, proc. 134/2002 de 24/4/2002, entre outros
6 -João Baptista Machado, Lições de DIP, 1992, 254
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588/2013 14/14