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Processo n.º 43/2014
Recurso Penal
Recorrente: A
Recorridos: B e Ministério Público
Data da conferência: 23 de Julho de 2014
Juízes: Song Man Lei (Relatora), Sam Hou Fai e Viriato Manuel Pinheiro de Lima

Assuntos: - Assistente em processo penal
- Legitimidade e interesse em agir no recurso

SUMÁRIO
O assistente, em processo penal, não pode recorrer quanto à escolha e medida da pena, a menos que demonstre, concretamente, um interesse próprio nessa impugnação.
A Relatora,
Song Man Lei
ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU:

1. Relatório
Por Acórdão proferido pelo Tribunal Colectivo do Tribunal Judicial de Base em 10 de Outubro de 2012, A, arguido nos presentes autos, foi condenado, pela prática de um crime de ofensa grave à integridade física p.p. pelo art.º 138.º, al. d) do Código Penal de Macau, na pena de 2 anos e 9 meses de prisão, cuja execução foi declarada suspensa por 3 anos.
Foi ainda condenado a pagar ao assistente B a indemnização no montante de MOP$161,657.70, acrescido de juros legais desde a data da decisão até ao efectivo e integral pagamento.
Inconformado com a decisão, recorreu o assistente B para o Tribunal de Segunda Instância, que decidiu julgar parcialmente procedente o recurso, passando a condenar o arguido na pena de 3 anos e 3 meses de prisão efectiva e no pagamento de indemnização no montante de MOP$266,400.00, para além da quantia já atribuída pelo Tribunal Judicial de Base.
Vem agora o arguido A recorrer para o Tribunal de Última Instância, recurso este que foi admitido apenas na parte penal, formulando na sua motivação do recurso as seguintes conclusões:
1. O presente recurso é interposto por o acórdão do TSI padecer dos seguintes vícios:
- O assistente não tem legitimidade e interesse em agir no recurso quanto à medida da pena (art.º 391.º, n.º 1, al. b) e n.º 2 do CPP);
- A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada (art.º 400.º, n.º 2, al. a) do CPP);
- A contradição insanável da fundamentação (art.º 400.º, n.º 2, al. b) do CPP);
- Erro notório na apreciação da prova (art.º 400.º, n.º 2, al. c) do CPP);
- A severidade excessiva da pena, violou os art.ºs 138.º, al. d), 28.º, 65.º, 66.º, n.º 2, al. c), al. f) e n.º 3, 40.º e 48.º do CP (art.º 400.º, n.º 1 do CPP);
2. O Magistrado do Ministério Público, junto do TJB, deu a sua resposta, entendendo que o tribunal a quo, ao proferir o respectivo acórdão, já tinha considerado todas as circunstâncias no caso, designadamente a de o arguido ter confessado francamente o espancamento do ofendido e a de o arguido não ter 18 anos de idade na altura dos factos, revelando-se, pois, adequada a pena lhe imposta de 2 anos e 9 meses de prisão, suspensa na sua execução por 3 anos, por isso, improcede o recurso e deve-se manter o acórdão do tribunal a quo.
3. O Procurador-Adjunto, junto do TSI, também emitiu o seu parecer, dizendo expressamente que o facto de a vida do ofendido ser colocada em perigo pela agressão já constituiu, independentemente, uma circunstância agravante, resultando num aumento significativo, quer no limite superior quer no limite inferior, da moldura penal. É por isso que esta circunstância, após a determinação da moldura penal, não deve ser considerada “pela segunda vez” e de forma infinitiva e exagerada na medida concreta da pena. Apesar de o facto de o arguido ter apenas 17 anos não constituir automaticamente uma circunstância atenuante especial, não deixa de ser, sem dúvida, um elemento a que tem de atender na medida da pena, ou seja a capacidade de fazer autocrítica e de emendar-se do agente, tudo isso tem uma relação inseparável com a medida da pena. Ao mesmo tempo, o arguido fez uma confissão na audiência de julgamento, revelando-se, pois, adequada a pena concreta de 2 anos e 9 meses aplicada pelo tribunal a quo. Quanto à suspensão da execução da pena, para efeitos de prevenção geral e especial, pode-se ver que a ameaça da prisão realiza melhor as finalidades da punição, podendo assim o agente ter uma oportunidade de reabilitação e reintegração na sociedade. Por fim, o Procurador-Adjunto entendeu integralmente improcedente o recurso na parte penal e que devia ser rejeitado.
4. O 1º Juiz-Adjunto do Colectivo do TSI recorrido também elaborou a declaração de voto, entendendo que devia observar a decisão no acórdão do TUI de 18/09/2013, no recurso penal n.º 45/2013, que entendeu que só o Ministério Público tinha a legitimidade para recorrer da medida da pena, e o assistente apenas pode recorrer quando tem legitimidade para recorrer e interesse concreto em agir.
5. Assim, a decisão feita pelo Colectivo do TSI de, com base no recurso interposto pelo assistente, passar a condenar o recorrente numa pena mais grave, deve ser considerada nula por o assistente não ter legitimidade para recorrer ou interesse em agir.
6. A parte do acórdão que padece do vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada é a seguinte: “Segundo, as outras circunstâncias mais concretas que podem e têm de ser atendidas incluem o modo de execução do facto e o grau de culpa, etc. Notamos que o Ministério Público não esclareceu na acusação, nem o tribunal a quo nos factos provados, o motivo e a razão da prática dos actos de ofensas qualificadas por parte do arguido, pelo que podemos concluir que o arguido agrediu, de forma gratuita, o ofendido, o que revela o elevado grau da culpa subjectiva do arguido e a elevada censurabilidade.”
7. Desde que o acórdão recorrido entendeu que não constou da acusação, e o tribunal a quo não apurou o motivo e a razão da prática dos actos de ofensas qualificadas por parte do arguido, devia, com o fundamento de que o acórdão a quo padeceu do vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, previsto pelo art.º 400.º, n.º 2, al. a) do CPP, e de acordo com o art.º 418.º, n.º 1 do mesmo Código, ordenar o reenvio do processo para novo julgamento, a fim de apurar o motivo e a razão em causa. Não devia concluir, sem apreciação de qualquer facto, que o recorrente agrediu “de forma gratuita” o ofendido, e em consequência, agravar a pena aplicada ao recorrente.
8. Por outro lado, as duas instâncias também não apreciaram o facto de se na altura estava presente no local um homem chamado “C”, ou se foram as condutas do recorrente que causaram necessariamente as lesões graves. Segundo os factos provados, na altura, estava presente no local um indivíduo chamado “C”; e o recorrente, por vontade conjunta, praticou dolosamente e junto com outras pessoas as supracitadas condutas.
9. Conforme os factos provados, o recorrente só desferiu socos à orelha esquerda do ofendido, deixando-o a cair no chão, e depois desferindo socos e pontapés ao corpo deste. De acordo com as regras da experiência comum, não é possível que as condutas do recorrente causassem contusões a diversas partes do corpo do ofendido, incluindo a aurícula da orelha esquerda, a articulação temporomandibular direita, o membro superior esquerdo e a parede torácica inferior esquerda, bem como fracturas dos 3º, 4º e 5º ossos da mão esquerda e da base do crânio, as quais que necessitaram de 110 dias para se recuperarem; ou causassem perigo para a vida do ofendido.
10. Ademais, o despacho de arquivamento constante de fls. 82 dos autos e o depoimento do ofendido indicaram a existência de vários outros homens de identidade desconhecida no local. De acordo com o art.º 28.º do CP, cada comparticipante é punido segundo a sua culpa, não podendo o recorrente suportar todas as consequências desfavoráveis por não terem sido detidos os referidos vários homens de identidade desconhecida.
11. O mais importante é que após a agressão, o ofendido disse que tinha sido agredido por objecto sólido, e a polícia encontrou no local um pau de madeira (com comprimento de cerca de 67,5cm) com vestígios de sangue (vide as fls. 3 a 4, 8 a 10 e 46v dos autos), mas nos factos provados, só fica provado que o recorrente desferiu socos e pontapés ao ofendido.
12. Devido à falta do devido apuramento da totalidade do objecto do processo, deve-se revogar o acórdão recorrido, e segundo o princípio de “in dubio pro reo” e o art.º 137.º, n.º 1 do CP, aplicar ao recorrente uma pena mais leve suspensa na sua execução; ou manter a decisão feita pelo tribunal a quo; ou de acordo com o art.º 418.º, n.º 1 do CPP, ordenar o reenvio do processo para novo julgamento, para apurar o motivo e a razão das condutas de ofensas qualificadas pelo recorrente, e as condutas de quem causaram ofensas graves à integridade física do ofendido.
13. O acórdão recorrido, por um lado, disse que o recorrente e um homem chamado “C” dirigiram-se até à frente do ofendido, sem indicar se este homem participou ou não na agressão ao ofendido, e por outro lado, provou que com base na vontade conjunta, o arguido agiu de forma livre, consciente e voluntária, ao praticar dolosamente e junto com outras pessoas as referidas condutas, a fim de ofender o corpo do ofendido. Então, quem são as “outras pessoas” indicadas no facto de “Com base na vontade conjunta, o arguido…praticar dolosamente e junto com outras pessoas as referidas condutas, a fim de ofender o corpo do ofendido.”?
14. Descobrimos de imediato a contradição entre os factos provados acima referido, e tal contradição é ostensiva, insanável e irredutível, isto é, não pode ser ultrapassada com o recurso à decisão recorrida no seu todo e às regras da experiência comum.
15. Por o acórdão recorrido padecer do vício da contradição insanável da fundamentação, deve ser revogado, e segundo o princípio de “in dubio pro reo” e o art.º 137.º, n.º 1 do CP, deve-se aplicar ao recorrente uma pena mais leve suspensa na sua execução; ou manter a decisão feita pelo tribunal a quo; ou de acordo com o art.º 418.º, n.º 1 do CPP, ordenar o reenvio do processo para novo julgamento, para apurar o motivo e a razão das condutas de ofensas qualificadas pelo recorrente, e as condutas de quem causaram ofensas graves à integridade física do ofendido.
16. O acórdão recorrido indicou que o recorrente agrediu, “de forma gratuita”, o ofendido, porque, obviamente, não teve em consideração o conteúdo do relatório social do recorrente constante de fls. 381 dos autos, através do qual podemos saber a razão da agressão do ofendido por parte do recorrente. Foi o recorrente primeiro espancado pelo ofendido e seus amigos, pelo que agrediu o ofendido para se desforçar.
17. De facto, segundo o relatório social em causa, o recorrente já conheceu o ofendido na escola secundária, sentiu-se ralado de remorsos, tinha a vontade de pedir desculpas ao recorrente e à sua família e de reconciliação, mas a outra parte solicitou uma indemnização de mais de cem mil patacas, e segundo a situação económica do recorrente na altura, ele não podia pagar tal indemnização, pelo que não conseguiu a reconciliação, o que não corresponde ao que o acórdão recorrido disse: “não acompanhada de qualquer acto demonstrativo de arrependimento sincero”.
18. Além disso, o acórdão recorrido ainda indicou que foi inscrito no registo criminal do recorrente que o TJB condenou o arguido, no processo comum singular n.º CR3-10-0238-PCS, pela prática, em 23 de Abril de 2009 (após a agressão no presente caso), dum crime de ofensas simples à integridade física, na pena de multa de MOP$9.000,00, conversível em 2 meses de prisão, entendendo, pois, que não deve suspender a execução da pena.
19. De facto, a referida sentença penal foi oportunamente anexa aos autos (vide as fls. 181 a 183v dos autos) antes da audiência de julgamento e o proferimento do acórdão em causa, o tribunal a quo, ao determinar a medida da pena, já considerou este registo criminal (vide as fls. 386 dos autos), e na referida sentença penal, foi o recorrente condenado apenas na pena de multa, cremos que era relativamente baixo o seu grau da culpa e da má fé, razão pela qual o tribunal a quo, depois de ter considerado o respectivo registo criminal do recorrente, aplicou-lhe uma pena de prisão relativamente grave, e o Ministério Público nas duas instâncias entendeu adequada a decisão do tribunal a quo. Por isso, não é necessário ponderar de novo a agravação da pena aplicada ao recorrente.
20. O acórdão recorrido não fez a ponderação detalhada segundo os dados constantes dos autos, designadamente o relatório social e a sentença do processo comum singular n.º CR3-10-0238-PCS, e indicou genericamente que o recorrente agrediu, de forma gratuita, o ofendido, não praticou qualquer acto demonstrativo de arrependimento sincero, a conduta do recorrente posterior ao crime não faz crer que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma suficiente e adequada as finalidades da punição. É difícil cremos que o agente, se fosse-lhe aplicada a suspensão da execução da pena, irá aprender as suas lições, deixar de cometer crimes ou reintegrar-se na sociedade. Não há prova para suportar a referida parte do acórdão recorrido, que é ilógica e violou as regras da experiência comum. E o erro é muito grave, de modo que qualquer pessoa comum possa notar de imediato o conflito entre a referida medida da pena e os factos provados, bem como a violação das regras da experiência comum; e o erro é ostensivo, de tal modo evidente que não passe despercebido ao comum dos observadores.
21. Por se verificar o erro notório na apreciação da prova, deve-se revogar o acórdão recorrido e manter o acórdão do tribunal a quo.
22. É obviamente excessiva a medida da pena feita no acórdão recorrido, e ao praticar os factos em causa, o recorrente ainda não tinha 18 anos, não tinha antecedência e era primário, porém; o acórdão recorrido, com base no registo da conduta do agente posterior ao facto, determinou e medida da pena aplicada ao recorrente, violando, sem dúvida, os art.ºs 40.º e 65.º do CP.
23. Desde que não constaram dos factos provados o motivo e a razão das condutas do arguido, não podia o tribunal recorrido chegar à conclusão de “de forma gratuita”, e em consequência, agravou a pena aplicada ao recorrente. Esta decisão violou, obviamente, os art.ºs 65.º e 66.º, n.º 3 do CP, porque o tribunal a quo, ao determinar a medida da pena, já considerou a conduta do recorrente anterior ao facto a posterior a este. O TSI usou de novo tais factos como fundamentos da agravação da pena, e fez um juízo afastado dos factos provados sobre o motivo da conduta do recorrente, violando, sem dúvida, as disposições legais acima referidas.
24. Por isso, a decisão feita pelo tribunal colectivo do TSI de passar a condenar o recorrente numa pena efectiva de 3 anos e 3 meses, violou o art.º 138.º, al. d) do CP, deve ser revogada (art.º 400.º, n.º 1 do CPP), e de acordo com os art.ºs 28.º, 65.º, 66.º, n.º 2, al.s c) e f), e n.º 3, 40.º e 48.º do CP, substituída por uma justa decisão que aplique ao recorrente uma pena mais leve suspensa na sua execução, ou deve-se manter a decisão do tribunal a quo.

Responderam o assistente e o Ministério público, terminando as suas respostas com as seguintes conclusões:
- Do assistente
I - O acórdão recorrido, prolatado pelo T.S.I., fez uma correcta aplicação do direito ao caso concreto.
II - Considerando quer a jurisprudência do T.S.I. quer o acórdão tirado em 2013 pelo T.U.I., resulta que o assistente detém legitimidade e interesse em agir para impugnar a “medida da pena”.
III - O arguido não recorreu do acórdão do T.J.B. nem apresentou quaisquer contra-alegações quanto ao recurso que dele foi interposto pelo assistente, razão pela qual o arguido no seu presente recurso apenas poderá insurgir-se e impugnar vícios que entenda assacar à própria decisão do T.S.I.
IV - O arguido ao invocar a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada mais não quis senão atacar a livre convicção do T.J.B., a qual, ex vi do art. 114.º do C.P.P., é insindicável uma vez que o Tribunal é livre na apreciação da prova produzida e examinada em audiência, conjugando entre si os critérios da experiência comum e da livre convicção.
V - O arguido ao invocar o in dubio pro reo pretendeu uma vez mais colocar em causa a regra da livre convicção do Tribunal, ao ter no fundo aludido a uma pretensa violação de regras sobre o valor de eventual prova vinculada, das regras de experiência ou das legis artis.
VI - Em relação ao pedido de reenvio do processo para novo julgamento, não estão notoriamente preenchidos os pressupostos previstos na lei, desde logo porque nos termos do art. 418.º, n.º 1, do C.P.P., um dos seus requisitos essenciais é a verificação de algum dos vícios referidos nas várias alíneas do n.º 2 do art.º 400.º do C.P.P., o que não ocorre.
VII - Quanto à pretensa severidade da pena que o T.S.I. lhe determinou, o contra-alegante sustenta que o seu aumento pelo T.S.I. para 3 anos e 3 meses é, apesar de ser ainda baixa face à moldura penal, mais consentânea e adequada aos factos e ao Direito.
VIII - Por outro lado, o entendimento do T.U.I. tem sido que «(...) Ao Tribunal de Última de Instância, como Tribunal especialmente vocacionado para controlar a boa aplicação do Direito, não cabe imiscuir-se na fixação da medida concreta da pena, desde que não tenham sido violadas vinculações legais – como por exemplo, a dos limites da penalidade – ou regras da experiência, nem a medida da pena encontrada se revele completamente desproporcionada (...)» (cfr. Acórdãos de 23 de Janeiro e 19 de Setembro de 2008 e 29 de Abril de 2009, respectivamente, nos Processos n.ºs 29/2008, 57/2007 e 11/2009).
IX - O que não sucedeu in casu.
- Do Ministério Público
1. O assistente não tem legitimidade para recorrer de decisão penal quanto à escolha ou medida da pena, no caso de não ter qualquer interesse próprio em agir.
2. Por esse motivo, deve-se revogar o acórdão recorrido.
3. Não se verifica in casu qualquer vício de facto.
4. No entanto, existe erro na aplicação da lei.
5. Não se pode equiparar um motivo não apurado pelos factos a um “motivo fútil” no sentido de o configurar como uma circunstância agravante.
6. Por fim, deve ser mantida a decisão de primeira instância na parte referente à determinação da pena.

Nesta instância, o Digno Procurador-Adjunto do Ministério Público emitiu o douto parecer, mantendo a posição já assumida na resposta à motivação do recurso.
Foram corridos vistos.

2. Os factos
Nos autos foram dados como provados os seguintes factos:
­ Em 27 de Fevereiro de 2007, pelas 11 horas da noite, B (ofendido), D e outros amigos dirigiram-se ao [Bar] sito na [Endereço] para se divertirem.
­ Na altura, A (arguido) e um outro homem chamado “C” (de identidade desconhecida) estavam a divertir-se no mesmo bar, sentando-se ao lado da mesa do ofendido.
­ Pelas 02h30 do dia seguinte, o ofendido saiu sozinho do bar e andou a pé para casa. Quando o ofendido chegou ao cruzamento da Rua de Lei Pou Ch’ôn com a Avenida do General Castelo Branco, o arguido e “C” dirigiram-se à frente dele.
­ O arguido desferiu socos à orelha esquerda do ofendido, deixando-o a cair no chão.
­ Depois, o arguido desferiu de novo socos e pontapés ao corpo do ofendido.
­ As condutas do arguido causaram contusões a diversas partes do corpo do ofendido, incluindo a aurícula da orelha esquerda, a articulação temporomandibular direita, o membro superior esquerdo e a parede torácica inferior esquerda, bem como fracturas dos 3º, 4º e 5º ossos da mão esquerda e da base do crânio, as quais que necessitaram de 110 dias para se recuperarem. As lesões são melhor descritas no relatório de exame directo e no parecer clínico de medicina legal constantes das fls. 12 e 34 dos autos (cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido).
­ As fracturas da base do crânio constituíram perigo para a vida do ofendido.
­ Com base na vontade conjunta, o arguido agiu de forma livre, consciente e voluntária, ao praticar dolosamente e junto com outras pessoas as referidas condutas, a fim de ofender o corpo do ofendido.
­ O arguido sabia bem que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei de Macau.
Foram dados como provados os seguintes factos do pedido cível:
­ As costas da mão do ofendido ficaram com duas cicatrizes.
­ Por causa das fracturas dos ossos da mão, o ofendido recebeu tratamentos de redução e de imobilização interna e externa com metais, e posteriormente, submeteu-se à extracção de material da fixação interna. Devido aos problemas na mão esquerda, o ofendido sofreu duma incapacidade permanente à taxa de 6%.
­ Por causas das lesões sofridas, o ofendido ficou internado e submeteu-se a operações desde 27 de Fevereiro até 6 de Março de 2007 (7 dias) e nos dias 13 e 14 de Maio de 2008 (2 dias), e depois, recebeu tratamento ambulatório.
­ Na altura, o ofendido andava na [Escola Secundária].
­ Durante o período em que ficava lesado o ofendido, foi limitada a sua vida quotidiana.
­ Durante o internamento hospitalar e a fase inicial da recuperação, o ofendido sentiu dores no corpo, e tinha dificuldade em adormecer por ficar com medo das agressões.
­ O ofendido necessitou de 110 dias para a recuperação, e mais 10 dias para a extracção de material da fixação interna.
­ Para o tratamento das lesões, o ofendido pagou as despesas de internamento hospitalar e de tratamento médico no valor total de MOP$11.657,70.
­ Devido aos problemas na mão esquerda, o ofendido sofreu duma incapacidade permanente à taxa de 6%.
­ Na altura dos factos, o ofendido tinha 17 anos de idade.

Mais se provou:
­ De acordo com o CRC, o arguido tem registo criminal: em 14 de Outubro de 2011, o TJB condenou o arguido, no processo comum singular n.º CR3-10-0238-PCS, pela prática, em 23 de Abril de 2009, dum crime de ofensas simples à integridade física, na pena de multa de MOP$9.000,00, conversível em 2 meses de prisão. O arguido pagou a multa e foi cumprida a pena.
­ O arguido alegou ser trabalhador de estaleiro de obras, auferiu mensalmente cerca de MOP$11.000,00, teve a seu cargo um irmão mais novo, e tinha como habilitações literárias o ensino primário.

Factos não provados:
­ Não foram provados os outros factos relevantes constantes da acusação e do pedido de indemnização cível que não corresponderam aos referidos factos provados, designadamente:
­ Não provado: o arguido ainda levou cerca de 6 a 7 homens (de identidades desconhecidas) até à frente do ofendido.
­ Não provado: os outros homens, por indicação do arguido, desferiram conjuntamente socos e pontapés a diversas partes do corpo do ofendido.
­ Não provado: o arguido necessitou de 360 dias para a recuperação.
­ Não provado: as lesões sofridas pelo ofendido resultaram em que ele não pudesse continuar o estudo.
­ Não provado: as agressões fizeram com que o ofendido, ao andar na rua, tivesse medo dos transeuntes, especialmente à noite.

3. Direito
Ora, constata-se nos autos que, inconformado com a decisão de 1.ª instância que tinha condenado o arguido, pela prática de um crime de ofensa grave à integridade física p.p. pelo art.º 138.º, al. d) do Código Penal de Macau, na pena de 2 anos e 9 meses de prisão, cuja execução foi declarada suspensa por 3 anos, e no pagamento da quantia indemnizatória, recorreu o assistente para o Tribunal de Segunda Instância, tanto na parte penal como na parte cível.
Admitido o recurso, o Tribunal de Segunda Instância decidiu julgar parcialmente procedente o recurso, passando a condenar o arguido na pena de 3 anos e 3 meses de prisão efectiva e aumentando a quantia indemnizatória.
E o arguido interpôs recurso deste Acórdão, sendo que, por despacho do Juiz relator do processo do Tribunal de Segunda Instância, foi apenas admitido o recurso na parte penal.
Foram suscitadas as seguintes questões:
- O assistente não tem legitimidade e interesse em agir para interpor recurso para o Tribunal de Segunda Instância, quanto à medida da pena;
- A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;
- A contradição insanável da fundamentação;
- O erro notório na apreciação da prova; e
- A medida concreta da pena.

Desde logo, é de apreciar a questão de legitimidade e de interesse em agir do assistente.
Trata-se duma questão nova, não suscitada nem apreciada em sede do recurso no Tribunal de Segunda Instância.
Como é sabido, o recurso para o Tribunal de Última Instância tem como objecto o Acórdão de segunda Instância e não para apreciar questão que nunca foi alegada, a não ser de conhecimento oficioso.
A questão ora em causa é de conhecimento oficial do tribunal, pelo que nada obsta à sua apreciação por este Tribunal de Última Instância.

Tal como decorre dos autos, o recurso interposto pelo assistente para o Tribunal de Segunda Instância é motivado tanto na parte penal como na parte cível, sendo que o recurso do segmento penal da decisão de 1.ª instância se restringe à pena concreta aplicada ao arguido, pretendendo o assistente a agravação da pena ou, pelo menos, a execução imediata da pena.
Trata-se de saber se o assistente pode interpor recurso da sentença condenatória penal, com fundamento na sua discordância com a escolha e medida da pena.
Sobre a mesma questão, este Tribunal de Última Instância teve já a oportunidade de se pronunciar.
No processo n.º 45/2013, de 18 de Setembro de 2013, e sobre a intervenção do assistente em processo penal, dissemos o seguinte:
“Ao Ministério Público compete o exercício da acção penal [artigo 56.º, n.os 1 e 2, alínea 3), da Lei de Bases da Organização Judiciária], esclarecendo a lei que compete, em especial ao Ministério Público, neste âmbito, receber denúncias e queixas e apreciar o seguimento a dar-lhes, dirigir o inquérito, deduzir acusação e sustentá-la efectivamente na instrução e no julgamento, interpor recursos, ainda que no exclusivo interesse da defesa e promover a execução das penas e medidas de segurança (artigo 42.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, como serão todos os preceitos citados sem indicação de proveniência).
A lei processual penal permite a constituição de assistente no processo, que é uma parte acusadora privada, que intervém como colaborador do Ministério Público, a cuja actividade subordina a sua intervenção no processo, salvas as excepções da lei (artigo 58.º).
Podem constituir-se assistentes no processo penal, três grupos de pessoas (artigo 57.º):
- O ofendido (seus sucessores, no caso de morte, e seus representantes, se for incapaz);
- A pessoa de cuja queixa ou acusação particular depender o procedimento penal;
- Qualquer pessoa, nos crimes cujo procedimento não depender de queixa nem de acusação particular e ninguém se possa constituir assistente, nos termos das regras anteriores (não interessa agora aprofundar esta noção).
Quando o procedimento penal depender de queixa, isto é, nos crimes semipúblicos, é necessário que a pessoa com legitimidade para a apresentar dê conhecimento do facto ao Ministério Público, para que este promova o processo (artigo 38.º, n.º 1).
Quando o procedimento penal depender de acusação particular, isto é, nos crimes particulares, é necessário que a pessoa com legitimidade para tal se queixe, se constitua assistente e deduza acusação particular (artigo 39.º, n.º 1).
Nos crimes públicos em que há ofendido – como é o caso dos autos - só este se pode constituir assistente.
O Código de Processo Penal acolheu a noção estrita de ofendido, que é o titular do interesse que a lei especialmente quis proteger com a incriminação [artigo 57.º, n.º 1, alínea a)], noção essa que já resultava da legislação anterior, o artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 35007, de 13.10.19451.
O artigo 58.º, n.º 2, estatui sobre os poderes que competem, em especial, ao assistente:
a) Intervir no inquérito e na instrução, oferecendo provas e requerendo as diligências que se afigurarem necessárias;
b) Deduzir acusação independente da do Ministério Público e, no caso de procedimento dependente de acusação particular, ainda que aquele a não deduza;
c) Interpor recurso das decisões que o afectem, mesmo que o Ministério Público o não tenha feito.
A intervenção do assistente no inquérito é totalmente subordinada à do Ministério Público, podendo oferecer provas e requerer diligências que se afigurarem necessárias. Não tem, porém, acesso ao processo, que está em segredo de justiça (artigo 76.º).
O assistente pode, no inquérito, requerer, nomeadamente, a aplicação de medidas de coacção ou de garantia patrimonial, que se proceda a buscas domiciliárias ou noutros locais e a apreensões, incluindo de correspondência (artigo 250.º, n.º 2), que seja ouvida testemunha em declarações para memória futura e estar presente ao seu interrogatório, podendo solicitar a formulação de perguntas ao juiz (artigo 253.º).
O assistente pode deduzir acusação independente da do Ministério Público nos crimes públicos e semipúblicos, pelos factos da acusação do Ministério Público, por parte deles ou por outros que não importem uma alteração substancial daqueles (artigos 58.º, n.º 2 e 266.º).
Nos crimes particulares o assistente pode deduzir acusação, ainda que o Ministério Público o não faça (artigos 58.º, n.º 2 e 267.º).
O assistente pode requerer a abertura de instrução, tanto em caso de acusação do Ministério Público (relativamente a factos pelos quais o Ministério Público não tiver deduzido acusação e importem uma alteração substancial desta), como de arquivamento (artigos 269.º e 270.º) e aí intervir, participando no debate instrutório (artigo 284.º).
Vejamos, agora, os poderes do assistente em matéria de recursos.
Como se disse, a lei prescreve que compete ao assistente interpor recurso das decisões que o afectem, mesmo que o Ministério Público o não tenha feito.
O artigo 391.º, n.º 1, alínea b), subordinado à epígrafe “Legitimidade e interesse em agir”, dispõe que o assistente tem legitimidade para recorrer de decisões contra ele proferidas, acrescentando o n.º 2, que não pode recorrer quem não tiver interesse em agir.
A interpretação dos segmentos “decisões que o afectem” e “decisões contra ele proferidas” tem levantado alguma controvérsia, especialmente a legitimidade e o interesse em agir do assistente para recorrer da medida da pena.
Em matéria de recursos, é praticamente pacífico que o assistente pode recorrer da decisão absolutória do arguido, na medida em que, tendo exercido o direito de queixa ou de acusação por determinado crime, a absolvição do arguido constitui decisão que afecta o assistente2. É do interesse do assistente a condenação do arguido.
Pela mesma ordem de razões, também se tem entendido, pacificamente, que o assistente pode recorrer da decisão de não-pronúncia.
Igualmente, deve-se entender que o assistente pode recorrer da decisão que condenou o arguido por crime diverso do que foi objecto da sua acusação3. Também está em causa decisão que afecta o assistente.
Quanto à medida da pena.
A maioria expressiva da jurisprudência e, ao que parece também da doutrina, nega que, sem mais, o assistente possa recorrer quanto à medida da pena, se o Ministério Público o não fizer.
Diz-se que a medida concreta da pena, em geral, não afecta o assistente, já que esta questão faz parte do núcleo punitivo do Estado (interesse punitivo), cuja defesa não cabe aos particulares, mas sim ao Ministério Público. Aduz-se, também, que permitir que o assistente recorra para agravar a pena do condenado seria voltar ao tempo da justiça privada.
Admite-se, nalguns casos, no âmbito da escolha e medida da pena, que o assistente tenha interesse em agir. Por exemplo, quando defenda que a suspensão da pena só se justifica como condição de pagamento indemnizatório ao ofendido/assistente, em determinado prazo.
É esse o entendimento de MAIA GONÇALVES4, quando afirma:
“Questão que tem sido controvertida e objecto de decisões contraditórias é a da legitimidade do assistente para recorrer da medida da pena. Cremos que a esta questão não pode ser dada resposta geral, e que deve ser apreciada caso a caso. Assim, o assistente poderá recorrer da medida da pena quando, no caso, tiver um interesse concreto e próprio em agir, por da medida da pena poder tirar um benefício, v.g. evitando a prescrição. Caso contrário, não lhe será dado recorrer. Neste preciso sentido foi fixada a jurisprudência”.
Também GERMANO MARQUES DA SILVA5 discorre no mesmo sentido:
“A lei, porém, só permite que recorra das decisões que o afectem …, o que representa uma efectiva limitação, porventura ditada pela preocupação de evitar que o assistente, subvertendo a razão da sua intervenção de colaborador da justiça, use o processo para se desforçar.
As finalidades da punição, que hão-de traduzir-se na espécie e medida da pena, não visam dar satisfação ao ofendido pelo crime, pelo menos não é essa a sua finalidade imediata, e por isso que não possa considerar-se que possam afectá-lo”.
J. DAMIÃO DA CUNHA6considera que o assistente tem interesse em agir em matéria de recursos, podendo “interpor recurso restrito à questão da medida da pena, quando durante a audiência de julgamento ele tenha formulado uma qualquer pretensão sobre tal matéria que não tenha merecido acolhimento na decisão final. Ora, esta «pretensão» tem evidentemente de ser formulada – o que poderá manifestamente suceder quer nas chamadas exposições introdutórias, quer nas alegações finais. Daí que só possa decidir sobre a verificação do pressuposto do interesse em agir quem tenha, em primeira mão, de pronunciar um juízo de admissibilidade do recurso – o tribunal a quo.”
Mas, com razão, já se opôs a esta ideia que nem as exposições introdutórias, nem as alegações finais, na audiência, ficam registadas em acta, pelo que seria impraticável esta doutrina. Além de que o interesse em agir se deve aferir autónoma e objectivamente e não por qualquer opinião vertida em audiência.
Em suma, afigura-se-nos serem ponderosos os argumentos dos que têm defendido que o assistente não pode recorrer quanto à escolha e medida da pena, a menos que demonstre, concretamente, um interesse próprio nessa impugnação, como nos exemplos atrás referidos.”

Não é de alterar tal posição.
No caso dos autos, não decorre dos autos que o assistente tenha mostrado algum interesse concreto que fundamente o seu recurso, para o Tribunal de Segunda Instância, do segmento penal da decisão de 1.ª instância no tocante à escolhe e à medida da pena, limitando-se a formular o pedido cível de indemnização, sem que tenha deduzido acusação nem aderido à acusação do Ministério Público, nem ainda pretendido que a suspensão da execução da pena aplicada deve ser decretada com a condição de pagamento da indemnização.
Por outro lado, os pedidos formulados pelo assistente em sede do recurso dirigido ao Tribunal de Segunda Instância – aplicação de uma pena de prisão de 5 anos e revogação da suspensão da execução da pena – revelam apenas a sua pretensão, de ver imediatamente executada a pena de prisão.
Assim, é de concluir que o assistente não pode interpor recurso para o Tribunal de Segunda Instância, julgando-se procedente o presente recurso interposto pelo arguido, o que conduz necessariamente à manutenção da decisão de 1.ª instância, na parte penal.
Está prejudicado o conhecimento das restantes questões suscitadas pelo arguido.

IV – Decisão
Pelo exposto, acordam em julgar procedente o recurso, revogando a parte da decisão penal do Acórdão recorrido, para ficar a valer a condenação penal do arguido A em 1.ª instância.
Custas pelo assistente.

Macau, 23 de Julho de 2014

   Juízes: Song Man Lei (Relatora) – Sam Hou Fai –
Viriato Manuel Pinheiro de Lima

1 M. CAVALEIRO DE FERREIRA, Curso de Processo Penal, I, Lisboa, 1955, p. 130 e JORGE DE FIGUEIREDO DIAS, Direito Processual Penal, Coimbra Editora, 1.º Volume, 1974, p. 505 e segs.
2 GERMANO MARQUES DA SILVA, Curso de Processo Penal, Lisboa/São Paulo, Verbo, 2.ª edição, 2000, III, p. 332.
3 GERMANO MARQUES DA SILVA, Curso…, III, p. 332.
4 MAIA GONÇALVES, Código de Processo Penal Anotado, Coimbra, Almedina, 15.ª edição, 2005, p. 800.
5 GERMANO MARQUES DA SILVA, Curso…, III, p. 332.
6 J. DAMIÃO DA CUNHA, A participação dos particulares no exercício da acção penal, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 8, fasc. 4.º, p. 647 e 648.
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1
Processo n.º 43/2014