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Processo n.º 66/2014. Recurso jurisdicional em matéria administrativa.
Recorrente: A.
Recorrida: Secretária para a Administração e Justiça.
Assunto: Suspensão da eficácia do acto administrativo. Grave lesão do interesse público. Ónus da prova. Suspensão preventiva. Necessidade, adequação e proporcionalidade das medidas cautelares.
Data da Sessão: 30 de Julho de 2014.
Juízes: Viriato Manuel Pinheiro de Lima (Relator), Song Man Lei e Sam Hou Fai.
SUMÁRIO:
I – O ónus da alegação e da prova da existência do requisito da grave lesão do interesse público para a suspensão da eficácia do acto administrativo cabe à entidade requerida, sem prejuízo dos poderes oficiosos do tribunal.
II – O interesse público concretamente prosseguido pelo acto que determina a suspensão preventiva é apenas a inconveniência para o serviço e para o apuramento da verdade da presença do arguido em funções.
III – Todas as medidas cautelares a tomar em processo disciplinar e, em particular, a de suspensão preventiva do arguido, têm que ser necessárias para evitar a lesão que sem a sua determinação poderia resultar para as exigências disciplinares do serviço, terão que ser adequadas a salvaguardar estas exigências disciplinares e devem ainda revelarem-se proporcionais aos interesses em presença.
IV - Ainda que o tribunal não dê como verificado o requisito da grave lesão do interesse público, a suspensão de eficácia pode ser concedida quando, preenchidos os restantes requisitos, sejam desproporcionadamente superiores os prejuízos que a imediata execução do acto cause ao requerente, o que pode acontecer se se prefigura a perda irreversível de clientela de notário.
O Relator,
Viriato Manuel Pinheiro de Lima

ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU:

I – Relatório
A (doravante também designado por ora recorrente) requereu a suspensão da eficácia do despacho da Secretária para a Administração e Justiça, de 4 de Abril de 2014, que o suspendeu preventivamente das funções de notário privado até à decisão final no processo disciplinar que lhe foi instaurado nessa qualidade (processo disciplinar esse que, por sua vez, está suspenso até decisão final de processo-crime que deu causa ao processo disciplinar).
O Tribunal de Segunda Instância, (TSI) indeferiu o requerido, por Acórdão de 15 de Maio de 2014, por ter considerado que a suspensão da eficácia do acto acarretaria grave lesão do interesse público prosseguido pelo mesmo acto.
Inconformado, interpõe A recurso jurisdicional para o Tribunal de Última Instância (TUI), sustentando:
- Que a suspensão da eficácia do acto não acarretaria grave lesão do interesse público concretamente prosseguido pelo mesmo acto;
- Ainda que assim não fosse, são desproporcionadamente superiores os prejuízos que a imediata execução do acto causa ao recorrente.
O Ex.mo Procurador-Adjunto emitiu parecer em que se pronuncia pela improcedência do recurso.

II – Os factos
Estão provados os seguintes factos:
  O requerente A é advogado e notário privado.
  Por acórdão proferido pelo Tribunal Judicial de Base, no âmbito do processo CR4-13-0026-PCC, ainda não transitado em julgado, o requerente foi condenado na pena de um ano e seis meses de prisão, suspensa na sua execução por dois anos, com a condição de pagar à RAEM a quantia de MOP$50.000,00, pela prática, na forma de cumplicidade e consumada, de um crime de falsificação de documento previsto e punível pelo artigo 11.º, n.º 1 e 2 da Lei n.º 2/90/M.
  Fundamentou-se aquela decisão condenatória na seguinte matéria provada:
  
  “O arguido B, em 2002, na [Endereço (1)], criou a [Companhia (1)], dedicando-se à actividade de mediação na compra e venda de imóveis e no tratamento de formalidades de fixação de residência em Macau através de investimento, em nome dos residentes do Interior da China.
  Os senhores C e D eram residentes do Interior da China, tendo, ambos os dois, respectivamente, incumbido o arguido B de tratar as formalidades para a fixação de residência em Macau através de investimento. No dia 12 de Agosto de 2002, sob o testemunho do arguido A, o arguido B, C e D celebraram um “Contrato de Fixação de Residência em Macau através de Investimento” e um “Contrato-Promessa de Compra e Venda de Imóvel”.
  De acordo com o conteúdo do referido “Contrato de Fixação de Residência em Macau através de Investimento”, o arguido B, em nome das famílias de C com três membros e de D com quatro membros, iria tratar as formalidades necessárias para fixar residência em Macau e obter bilhete de identidade de residente de Macau e, pelo que comprometeu-se a vender aos dois o bem imóvel de todo o bloco do [Endereço (2)], bem como a emprestar-lhes uma ordem de caixa no valor de MOP2.000.000, enquanto os dois residentes do Interior da China comprometeram-se a pedir emprestada a supracitada propriedade pertencente ao arguido B para tratar as formalidades de fixação de residência em Macau, a fim de que C e D pudessem satisfazer o requisito de fazer investimento relevante em Macau previsto no art.º 1.º, n.1, al. b) do D.L n.º14/95/M como lei de fixação de residência por investimento, de tal modo a requerer o direito de residência. E mais segundo o referido contrato, após terem obtido o bilhete de identidade de residente de Macau, a família de C com três membros e a de D com quatro membros tinham de retransmitir o imóvel de forma gratuita ao arguido B.
  Por isso, C e D pagaram respectivamente ao arguido B, HK$350.000 como remuneração.
  Antes de celebrar os supracitados contratos com C e D, o arguido B sabia que o seu acto podia provavelmente constituir violação da lei, por isso, foi consultar o advogado A, tendo este considerado viável e mostrado vontade para servir como testemunha na celebração dos dois contratos e recebido MOP5.000 como remuneração.
  No dia 12 de Agosto de 2002, na qualidade de advogado, o arguido A serviu como testemunha nos supracitados “Contrato de Fixação de Residência em Macau através de Investimento” e “Contrato-Promessa de Compra e Venda de Imóvel”, tendo celebrado os ditos contratos em nome do arguido B, de C e de D.
  Ao servir como testemunha nos supracitados dois contratos, o arguido A tinha perfeito conhecimento de que entre o arguido B e C e D, não existia uma efectiva compra e venda do respectivo imóvel e que a celebração do Contrato-Promessa de Compra e Venda de Imóvel entre o arguido B e C e D tinha como objectivo permitir a satisfação pelos últimos dois das disposições da lei de fixação de residência através de investimento.
  O arguido A sabia bem que o acto do arguido B envolvia a celebração de contrato simulado, promovendo ainda o respectivo negócio jurídico, no intuito de receber benefícios pecuniários.
  Mais tarde, C e D submeteram o pedido de fixação de residência junto do Instituto do Comércio e do Investimento de Macau, tendo, por isso, apresentado o supracitado contrato de compra e venda de imóvel.
  No dia 25 de Janeiro de 2003, sob o testemunho do arguido E funcionário de escritório de advogado, o arguido B celebrou com o F o “Contrato de Tratamento de Formalidades para a Fixação de Residência Permanente em Macau por Investimento Celebrado nesta Companhia por Toda a Família”. Segundo o conteúdo do contrato, F pediu emprestadas as lojas A e B sitas no [Endereço (3)] e sita no [Endereço (4)], todas pertencentes ao arguido B, para efeitos do pedido de fixação de residência, mas tinha que restituir tais propriedades após obtido o bilhete de identidade de residente de Macau. Naquela altura, no contrato foi aposto pelo arguido E o carimbo do advogado G e aposta a assinatura do arguido E para servir de testemunho.
  No dia 31 de Janeiro de 2003, o arguido B celebrou com H o “Contrato de Tratamento de Formalidades para a Fixação de Residência Permanente em Macau por Investimento Celebrado nesta Companhia por Toda a Família”. Segundo o conteúdo do contrato, igualmente, foram emprestadas as supracitadas propriedades a H para efeitos do pedido de fixação de residência, mas H tinha de restituir tais propriedades, após obtido o bilhete de identidade de residente de Macau. Naquela altura, no contrato foi aposto pelo arguido E o carimbo do advogado G e aposta a assinatura do arguido E para servir de testemunho.
  As assinaturas do arguido E constantes dos supracitados contratos correspondem à assinatura dele próprio no bilhete de identidade de residente de Macau.
  Antes de celebrar os supracitados dois contratos com H e F, o arguido B sabia que o seu acto podia provavelmente constituir violação da lei, por isso, foi consultar o arguido E, tendo este considerado viável e mostrado vontade para servir como testemunha na celebração dos dois contratos e recebido remuneração.
  Ao servir como testemunha nos supracitados dois contratos, o arguido E tinha perfeito conhecimento de que entre o arguido B e H e F, não existia uma efectiva compra e venda dos respectivos imóveis e que a celebração do Contrato-Promessa de Compra e Venda de Imóvel entre o arguido B e H e F tinha como objectivo permitir a satisfação pelos últimos dois das disposições da lei de fixação de residência através de investimento.
  O arguido E sabia bem que o acto do arguido B envolvia a celebração de contrato simulado, promovendo ainda o respectivo negócio jurídico, no intuito de receber benefícios pecuniários.
  Mais tarde, F e H submeteram o pedido de fixação de residência junto do Instituto do Comércio e do Investimento de Macau, tendo sido descoberta a presumível falsificação de documento.
  Posteriormente, o Ministério Público deduziu acusação contra o arguido B, e este, na audiência de julgamento para o processo CR4-08-112-PCC, contou ao Tribunal que foi o arguido E quem o tinha ensinado para que emprestasse imóveis para celebrar os contratos-promessa de compra e venda de imóveis em causa, no sentido de ajudar os residentes do Interior da China para tratar as formalidades de fixação de residência. Por outro lado, o arguido B também referiu que tinha consultado o arguido A, e dado que este considerou viável, o arguido B celebrou respectivamente os contratos nos escritórios dos advogados A e G, sob o testemunho dos arguidos A e E, respectivamente.
  A fim de obter benefícios ilegítimos, os arguidos B e A agiram de comum acordo, dividindo tarefas entre si, mediante, como forma de engano, o empréstimo do direito de propriedade e da ordem de caixa concedidos pelo arguido B, conluiando-se, em nome dos dois residentes do Interior da China C e D, para a celebração e testemunho dos contratos-promessa de compra e venda de imóvel simulados, no intuito de ajudar os ditos indivíduos do Interior da China e seus agregados familiares ao satisfazerem o disposto no art.º 2.º, n.º1, al. d) do D.L n.º14/95/M, de tal modo a obter os documentos comprovativos para a fixação de residência de Macau e conseguir o direito de residência em Macau.
   A fim de obter benefícios ilegítimos, os arguidos B e E agiram de comum acordo, dividindo tarefas entre si, mediante, como forma de engano, a utilização pelo arguido E do carimbo do advogado G sem a autorização deste e o empréstimo do direito de propriedade concedido pelo arguido B, conluiando-se, em nome dos dois residentes do Interior da China F e H, para a celebração e testemunho dos contratos-promessa de compra e venda de imóvel simulados, no intuito de ajudar os ditos indivíduos do Interior da China e seus agregados familiares ao satisfazerem o disposto no art.º 2.º, n.º1, al. d) do D.L n.º14/95/M, de tal modo a obter os documentos comprovativos para a fixação de residência de Macau e conseguir o direito de residência em Macau.
  Os actos dos três arguidos prejudicaram a eficácia do regime jurídico da lei da imigração e permanência ilegal e a eficácia do regime jurídico da lei da imigração por investimento.
  Os arguidos B e E agiram de forma livre, voluntária e consciente ao praticarem os actos acima referidos.
  O arguido A, na qualidade de advogado e notário privado, bem sabendo a força probatória de documento notarial e as obrigações legais que devem observar os notários, ainda agiu de forma livre, voluntária e consciente ao praticar os actos acima referidos.
  Os três arguidos tinham perfeito conhecimento de que os seus actos eram proibidos e punidos por lei.
  Os contraentes C e D nunca foram ouvidos nos autos.
  Algum tempo antes da celebração dos contratos em causa, o arguido B foi consultar o ora recorrente A ao seu escritório e perguntou-lhe se um interessado em obter residência em Macau através de investimento podia adquirir um imóvel por recurso a crédito obtido em Macau, se podia ser o próprio vendedor do imóvel a emprestar-lhe o dinheiro para pagamento do preço e se obtida a residência podia retransmitir o imóvel a quem antes o tinha vendido.
  O ora recorrente respondeu que teria de estudar o assunto porque não tinha antes estudado especificamente aquela questão.
  Dias depois o ora recorrente informou o arguido B de que a situação era viável, com a profunda convicção de que à luz da legislação então vigente em Macau aquela situação não constituía crime de falsificação ou qualquer outro.
  Pouco tempo antes de 12 de Agosto de 2002 o arguido B foi ao escritório do ora recorrente e pediu que este lhe elaborasse um contrato-promessa de compra e venda de imóvel com o teor do contrato-promessa em causa e solicitou que depois o contrato fosse assinado no escritório do ora recorrente e por este testemunhado.
  Esse contrato-promessa foi elaborado no escritório do ora recorrente com base em minuta de contrato anterior, tendo o arguido B sido posteriormente contactado para ali comparecer para efeito de o mesmo ser assinado e testemunhado.
  No dia 12 de Agosto de 2002, o arguido B foi ao escritório do ora recorrente, acompanhado pelos outros contraentes, C e D, para efeitos de assinarem o contrato-promessa sob o testemunho do daquele.”
  Dado o seu estatuto de notário privado, a Secretária para a Administração e Justiça ordenou a instauração de processo disciplinar contra o ora recorrente.
  Por despacho de 4.4.2014 da Secretária para a Administração e Justiça, foi aplicada ao ora recorrente a medida de suspensão preventiva do cargo de notário privado, ao abrigo dos artigos 21.º do Estatuto dos Notários Privados e 331.º, n.º 1 do ETAPM.
  Nesse mesmo despacho, a Secretária para a Administração e Justiça decidiu ainda suspender o processo disciplinar até à tomada de uma decisão transitada em julgado no processo judicial.

III – O Direito
1. As questões a apreciar
O Acórdão recorrido entendeu que do processo não resultavam fortes indícios de ilegalidade do recurso contencioso [requisito da alínea c) do n.º 1 do artigo 121.º do Código de Processo Administrativo Contencioso (CPAC)] e que se aplicava ao caso o disposto no artigo 121.º, n.º 3, do mesmo diploma, segundo o qual não é exigível a verificação do requisito previsto na alínea a) do n.º 1 (que a execução do acto cause previsivelmente prejuízo de difícil reparação para o requerente ou para os interesses que este defenda ou venha a defender no recurso) para que seja concedida a suspensão de eficácia de acto com a natureza de sanção disciplinar. Embora o acto não constitua sanção disciplinar, mas mera medida cautelar de suspensão preventiva, no âmbito de processo disciplinar.
A decisão quanto a estes fundamentos não foi impugnada por quem o poderia fazer, pelo que está adquirido no processo, tanto a verificação do requisito da alínea c) do n.º 1 do artigo 121.º do CPAC, como de que não é exigível a verificação do requisito previsto na alínea a) do n.º 1 do mesmo artigo.
Por conseguinte, as questões a apreciar são as suscitadas pelo ora recorrente:
- Se a suspensão da eficácia do acto não acarreta grave lesão do interesse público concretamente prosseguido pelo mesmo acto;
- E, se assim não se entender, se são desproporcionadamente superiores os prejuízos que a imediata execução do acto causa ao ora recorrente.

3. Grave lesão do interesse público concretamente prosseguido pelo acto administrativo
Nos termos do artigo 121.º, n.º 1, do CPAC, o tribunal concede a providência cautelar de suspensão de eficácia de actos administrativos quando, além do mais que agora não importa, se verifique o seguinte requisito:
- A suspensão não determine grave lesão do interesse público concretamente prosseguido pelo acto.
Nos termos do n.º 1 do artigo 129.º do CPAC, quando não haja contestação do órgão administrativo ou alegação de que a suspensão de eficácia do acto causa grave lesão do interesse público, o tribunal, excepto quando, perante as circunstâncias do caso, seja manifesta ou ostensiva essa grave lesão, considera verificado o requisito previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 121.º.
Daí que se possa dizer que o requisito negativo de que a suspensão não determine grave lesão do interesse público funciona como facto impeditivo da pretensão do requerente, com o sentido que a doutrina processual lhe dá [artigo 407.º, n.º 2, alínea b) do Código de Processo Civil], na medida em que o ónus da alegação e da prova da sua existência (grave lesão do interesse público) cabe à entidade requerida (artigo 335.º, n.º 2, do Código Civil), sem prejuízo dos poderes oficiosos do tribunal (artigo 415.º do Código de Processo Civil) quando, perante as circunstâncias do caso, seja manifesta ou ostensiva essa grave lesão.
Como referem HANS J. WOLFF, OTTO BACHOF e ROLF STOBER1, no estado de direito a vinculação aos fins das funções da Administração Pública significa a salvaguarda e a promoção do interesse público ou do bem comum. Trata-se de um princípio estrutural, não escrito, de toda a forma de manifestação da Administração. Por isso, a actuação no interesse público faz parte dos elementos conceptuais e funcionais mais marcantes da Administração Pública e constitui o fundamento de toda a execução administrativa.
Mas com razão afirma MARIA FERNANDA MAÇÃS 2 que “não se pode argumentar que, prosseguindo o acto administrativo, pelo seu próprio conceito, um fim de interesse público, a sua não execução origine sempre dano para a concretização desse interesse público. É que no âmbito da suspensão da eficácia exige-se a verificação de «grave» lesão do interesse público e não a simples existência deste interesse que é pressuposto de toda a intervenção da Administração”.
Por outro lado, não é qualquer lesão de interesse público que obsta à suspensão da eficácia do acto, mas apenas aquele interesse público concretamente prosseguido pelo acto.
Vejamos, pois, qual o interesse público concretamente prosseguido pelo acto e seguidamente, se existe lesão de interesse público que obsta à suspensão da eficácia do acto.
Do acto e do parecer em que se baseia, transparece claramente que tanto a suspensão preventiva, como a suspensão do processo disciplinar até decisão final do processo-crime que deu causa a este processo disciplinar, se devem aos factos imputados ao ora recorrente, que levaram à sua condenação judicial em 1.ª instância e ao consequente processo disciplinar mandado instaurar pela Secretária para a Administração e Justiça.
Na fundamentação do acto diz-se igualmente que o crime praticado pelo arguido causou grave ofensa à sua reputação e que os jornais divulgaram o assunto e, por isso, as pessoas irão questionar a fé pública do arguido na continuação de funções, o que se revela inconveniente para o funcionamento do cartório notarial do arguido, como para todo o sector do notariado privado.
A suspensão preventiva foi decidida ao abrigo do artigo 331.º do Estatuto dos Trabalhadores da Administração Pública (ETAPM), por força do artigo 21.º do Estatuto dos Notários Privados, constante do Decreto-Lei n.º66/99/M, de 1 de Novembro, onde se dispõe que são subsidiariamente aplicáveis aos notários privados, com as necessárias adaptações, as disposições sobre regime disciplinar dos trabalhadores da Administração Pública.
Ora, estatui o n.º 1 do artigo 331.º do ETAPM:
“Sob proposta do instrutor ou da entidade que mandou instaurar o processo disciplinar e mediante despacho do Governador, os funcionários e agentes arguidos em processo disciplinar por infracção punível com pena de suspensão de 241 dias a 1 ano, aposentação compulsiva ou demissão, podem ser preventivamente suspensos do exercício das suas funções, sem perda do vencimento de categoria, até decisão final do processo … sempre que a sua presença se revele inconveniente para o serviço ou para o apuramento da verdade”.
Pois bem, a suspensão preventiva apenas pode ser decretada, com base em dois fundamentos:
- Sempre que a presença do arguido se revele inconveniente para o serviço;
- Sempre que a presença do arguido se revele inconveniente para o apuramento da verdade.
Quer isto dizer que o interesse público concretamente prosseguido pelo acto que determina a suspensão preventiva é apenas a inconveniência para o serviço e para o apuramento da verdade da presença do arguido em funções.
No que respeita à inconveniência da presença do ora recorrente em funções para o apuramento da verdade nada foi alegado a tal respeito e não se vislumbra que a mesma se verifique.
Já no que concerne à inconveniência da presença do ora recorrente em funções para o serviço, entendeu o Acórdão recorrido que:
“… a Administração, como garante do bom funcionamento das instituições públicas, está obrigada a zelar pela salvaguarda da dignidade e prestígio dessas instituições, e a medida de suspensão provisória da actividade notarial do requerente visa exactamente garantir a defesa da integridade e do prestígio da função notarial.
Uma vez que o requerente foi condenado com pena de prisão, embora suspensa, mas o bom nome do sector do notariado já se encontra gravemente afectado, para além de que o crime imputado era o de falsificação de documento, sendo assim, se lhe permitisse continuar com o desempenho das funções de notário, a confiança que a generalidade da população de Macau deposita nas instituições notariais ou nos notários, como sendo serviços e entidades guardiões da fé pública da função notarial, poderia ser questionada.
Não se deve ignorar que, como notário, o requerente tem o dever especial de obediência aos mais rigorosos princípios da legalidade, nomeadamente o dever de servir de exemplo de bom cumpridor de lei para defesa da credibilidade pública do serviço notarial.
Nestes termos, atento o teor dos factos imputados ao requerente, designadamente, tendo este último promovido e servido como testemunha num negócio jurídico simulado, bem sabendo que este negócio tinha como objectivo propiciar às famílias dos contraentes uma das condições para obter residência permanente em Macau, julgamos que, se o requerente continuasse no pleno exercício da sua actividade notarial, a dignidade da função notarial, e consequentemente, o prestígio da Administração podem ser gravemente comprometidos”.
Ou seja, o Acórdão recorrido considerou que o exercício em funções como notário privado, do ora recorrente, compromete a dignidade da função notarial, dado que o crime imputado a ele é o de cumplicidade em falsificação de documento. Recorde-se que o que é imputado ao recorrente é o aconselhamento e testemunho em negócio que envolveu simulação de promessa de compra e venda de imóvel, com vista a obtenção do estatuto de residente e que o recorrente disputa, no processo-crime, a condenação por falsificação, defendendo que a simulação não constitui nem o crime de falsificação nem qualquer outro. Questão que não cabe examinar neste processo.
Importa ponderar que, como o ora recorrente alega e a entidade requerida aceita, os factos imputados ao ora recorrente não foram praticados na sua actividade de notário privado, mas antes na de advogado.
Certo que não está excluído que factos praticados por uma pessoa, fora do exercício de funções, possam ser disciplinarmente punidos. Resta saber em que circunstâncias, o que tem sido controvertido. Não é ocasião de desenvolver a questão, já que não estamos a examinar punição disciplinar.
Explica PAULO VEIGA E MOURA3que “ … as medidas cautelares estão funcionalmente ligadas ao interesse público que pretendem salvaguardar. Por isso, só podem ser ordenadas após a instauração do procedimento disciplinar e têm que ser necessárias para evitar a lesão que sem a sua determinação poderia resultar para as exigências disciplinares do serviço. Mesmo que se revelem necessárias, as medidas cautelares terão que ser adequadas a salvaguardar estas exigências disciplinares, devendo ainda revelarem-se proporcionais aos interesses em presença, o que é o mesmo que dizer que as vantagens da sua adopção terão que ser superiores aos danos que causam nos interesses do arguido ou de terceiros por elas afectados”.
Referindo-se especificamente à suspensão preventiva, reflecte o mesmo autor4 “que a inconveniência para o serviço que justifica a aplicação desta medida não é uma qualquer inconveniência, exigindo-se antes que a manutenção do arguido seja intolerável para o interesse público ou possa comprometer seriamente o prestígio do serviço ou a dignidade da função pública exercida”.
Pois bem, contra a tese do recorrente pode dizer-se que a sua condenação criminal -ainda que não transitada em julgado, por estar pendente recurso no TSI, da sentença de 2 de Dezembro de 2013 – pela prática de crime de falsificação de documento, ainda que fora da função notarial, afecta o prestígio desta, visto que é da essência desta função conferir fé pública aos actos jurídicos extrajudiciais (artigo 1.º, n.º 1, do Código do Notariado).
Por outro lado, os factos imputados terão ocorrido em Agosto de 2002, o que quer dizer que à data do acto administrativo tinham decorrido quase 12 anos sobre os factos alegadamente praticados pelo ora recorrente.
Durante este lapso de tempo, sempre o recorrente exerceu as funções de notário privado.
Ao que parece, no processo disciplinar ainda não foi deduzida acusação contra o recorrente e a suspensão preventiva apenas se baseia numa condenação judicial provisória, sem nenhuma elaboração jurídica autónoma sobre os factos considerados provados na sentença.
Quer dizer, embora seja possível a suspensão preventiva sem haver ainda acusação – o que, por exemplo, o Estatuto dos Advogados não permite - a medida de suspensão preventiva dos autos baseia-se apenas na condenação, ainda não transitada em julgado, por um crime, que nem sequer está directamente relacionado com a actividade de notário.
Afigura-se, assim, que a suspensão preventiva não é adequada a salvaguardar as exigências disciplinares da função, pelo que não se verifica grave lesão para o interesse público com a suspensão da eficácia do acto administrativo.

4. Falta de proporcionalidade entre os prejuízos para o recorrente da imediata execução do acto e o prejuízo para o interesse público resultante da não execução
Ainda que a suspensão da eficácia do acto que determinou a suspensão preventiva implicasse grave lesão para o interesse público concretamente prosseguido pelo acto, indicia-se serem desproporcionadamente superiores os prejuízos que a imediata execução do acto causa ao ora recorrente.
É que a suspensão preventiva foi decretada até à decisão final no processo disciplinar que foi instaurado ao recorrente, processo disciplinar esse que, por sua vez, está suspenso até decisão final de processo-crime que deu causa ao processo disciplinar.
É, assim, provável que a suspensão preventiva, que se trata de medida cautelar e que não tem, ainda, na sua base sequer qualquer juízo de censura – visto que ainda não existe acusação no processo disciplinar – se prolongue por vários meses, se não anos, podendo levar a perda irreversível de clientela do recorrente, que, entretanto, é desviada para outros notários. Que não pode ser revertida ou que dificilmente o será na totalidade, ainda que o recorrente acabe por não ser punido. Tal perda representa não só danos patrimoniais – teoricamente ressarcíveis – mas também danos não patrimoniais.
Acresce, ainda, a perda de réditos para o recorrente, que resultam da suspensão preventiva, que serão de reparação mais que duvidosa (acção contra a Administração?), ainda que acabe por lhe ser dada razão. Os notários privados não são remunerados enquanto tal, mas certamente que o são como advogados, a título de assessoria daquela actividade.
Ora, de acordo com o n.º 4 do artigo 121.º do CPAC, ainda que o tribunal não dê como verificado o requisito previsto na alínea b) do n.º 1, a suspensão de eficácia pode ser concedida quando, preenchidos os restantes requisitos, sejam desproporcionadamente superiores os prejuízos que a imediata execução do acto cause ao requerente.
O que se afigura ser o caso.
Procede, deste modo, o recurso.

III – Decisão
Face ao expendido, concedem provimento ao recurso e suspendem a eficácia do acto administrativo requerido.
Sem custas nas duas instâncias.

Macau, 30 de Julho de 2014.

Juízes: Viriato Manuel Pinheiro de Lima (Relator) – Song Man Lei – Sam Hou Fai


O Magistrado do Ministério Público
presente na conferência: Vítor Manuel Carvalho Coelho


     1 HANS J. WOLFF, OTTO BACHOF e ROLF STOBER, Direito Administrativo, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, tradução da 11.ª revista, vol. 1, 1999, p. 424.
     2 MARIA FERNANDA MAÇÃS, A Suspensão Judicial da Eficácia dos Actos Administrativos e a Garantia Constitucional da Tutela Judicial Efectiva, Coimbra Editora, 1996, p. 212.

3 PAULO VEIGA E MOURA, Estatuto Disciplinar dos Trabalhadores da Administração Pública Anotado, Coimbra Editora, 2.ª edição, 2011, p. 229.
     4 PAULO VEIGA E MOURA, Estatuto…, p. 231 e 232.
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