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Processo n.º 99/2014
Habeas corpus
Recorrente: A
Data do Acórdão: 11 de Agosto de 2014
Juízes: Song Man Lei (Relatora), Seng Ioi Man e Chan Chi Weng

Assuntos: - Pedido de habeas corpus por prisão ilegal
- Exequibilidade imediata de sentença condenatória
- Arguição de nulidade da sentença

SUMÁRIO
1. O art.° 449.° n.° 1 do Código de Processo Penal deve ser interpretado restritivamente, de forma a permitir a exequibilidade imediata das decisões condenatórias em pena de prisão efectiva, antes do seu trânsito em julgado, ainda que o crime não admita prisão preventiva, desde que não seja interposto recurso por arguido ou pelo Ministério Público no exclusivo interesse daquele, ou não haja arguição de nulidade de sentença no caso de ser inadmissível recurso ordinário.
2. A exequibilidade imediata da decisão condenatória fica quebrada com a interposição do recurso por arguido ou pelo Ministério Público no exclusivo interesse daquele ou com a arguição de nulidade da sentença.
  
A Relatora,
Song Man Lei
  ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU:
  
1. Relatório
A, ora preso no Estabelecimento Prisional de Macau, vem apresentar o requerimento de habeas corpus, requerendo que se declare ilegal a sua prisão e consequentemente seja ordenada a sua libertação imediata, alegando em síntese que:
- a entidade competente para a promoção da execução da pena é o Ministério Público, ao abrigo do disposto nos art.°s 42.° n.° 2, al. e), 451.° e 455.° do Código de Processo Penal;
- a entidade competente para a execução da pena é o tribunal de primeira instância ao abrigo do disposto no art.° 14.° n.°s 1 e 3 do Código de Processo Penal;
- atentas as nulidades arguidas no processo que ainda corre seus termos no Tribunal de Segunda Instância sob o n.° 160/2014 relativamente ao despacho proferido pelo Exmo. Senhor Juiz Relator a fls. 291, que admitiu os recursos interpostos, ao Acórdão proferido pelo Tribunal de Segunda Instância e relativamente aos mandados de condução emitidos no âmbito dos referidos autos, o preceituado no art.° 449.° n.° 1 do Código de Processo Penal não admite a exequibilidade da decisão condenatória nele proferida antes do seu trânsito em julgado.
O Meritíssimo Juiz de Turno do Tribunal de Segunda Instância emitiu a informação a que alude o art.° 207.° n.° 1 do CPP, entendendo que se deve manter a prisão do requerente, já que, atenta a moldura penal do tipo legal de delito em causa, o requerente não tem direito de recorrer para o Tribunal de Última Instância (cfr. o art.° 390.° n.° 1, al. f) do CPP) e da lei processual vigente não resulta nenhuma norma jurídica a permitir que o pedido de arguição de nulidade do Acórdão condenatório do Tribunal de Segunda Instância possa implicar efeito suspensivo do julgado penal final aí feito.

2. Factos provados
Conforme os elementos constantes dos autos, consideram-se provados os seguintes factos com interesse para a decisão da causa:
- Por decisão proferida pelo Tribunal Judicial de Base no processo n.° CR4-13-0161-PCC, foi o ora requerente condenado, pela prática na autoria material e na forma consumada de 3 crimes de gravações ilícitas p.p. pelo art.° 191.° n.° 2, al. a) do Código Penal, na pena de 6 meses de prisão por cada; em cúmulo jurídico, foi o requerente condenado na pena única de 1 ano de prisão, suspensa na sua execução por 2 anos, com condição de pagar à assistente, no prazo de 3 meses a contar do trânsito da decisão, a indemnização no montante de MOP$100,000.00.
- Inconformados com a decisão, recorreram o ora requerente e a assistente para o Tribunal de Segunda Instância, que decidiu, por Acórdão proferido em 31 de Julho de 2014, julgar improcedente o recurso interposto pelo ora requerente e parcialmente procedente o recurso interposto pela assistente, revogando a suspensão da execução da pena declarada pelo Tribunal Judicial de Base.
- Por despacho proferido nesse dia 31 de Julho, o Meritíssimo Juiz Relator do processo ordenou a passagem de mandados de detenção do requerente para efeitos de cumprimento da pena de prisão, a fim de evitar o perigo de mora na sua detenção.
- Os mandados foram cumpridos no mesmo dia, pelas 23h30, e o requerente foi imediatamente conduzido ao Estabelecimento Prisional de Macau, onde entrou pelas 00h35 do dia 1 de Agosto.
- Em 7 de Agosto de 2014, o requerente arguiu as nulidades do despacho do Exmo. Senhor Juiz Relator que admitiu os recursos interpostos, do Acórdão do Tribunal de Segunda Instância e do despacho que ordenou a passagem de mandados de detenção e condução, todos proferidos no processo n.° 160/2014 do Tribunal de Segunda Instância.
- O Tribunal de Segunda Instância não tomou ainda decisão sobre as nulidades arguidas pelo requerente.

3. Direito
Ora, o requerente está preso no Estabelecimento Prisional de Macau para cumprimento da pena a que foi condenado pela prática do crime de gravações ilícitas p.p. pelo art.° 191.° n.° 2, al. a) do Código Penal, punível com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias.
Nos termos da al. f) do n.° 1 do art.° 390.° do Código de Processo Penal, do Acórdão proferido em 31 de Julho de 2014 pelo Tribunal de Segunda Instância não cabe recurso para o Tribunal de Última Instância.
Mesmo assim, o Acórdão não transitou, porém, ainda em julgado, já que foi arguida, dentro do prazo legal, a nulidade do mesmo Acórdão, para além das nulidades dos despachos acima referidos.
A questão a resolver reside em saber se é ilegal a prisão do requerente.

Na óptica do requerente, o despacho que ordenou a emissão dos mandados de detenção e condução foi proferido oficiosamente, sem promoção do Ministério Público e sem que se tivesse remetido os respectivos autos para o Tribunal Judicial de Base, o qual é o único competente para a emissão dos mesmos mandados, ao abrigo do disposto no art.° 14.° do Código de Processo Penal, pelo que aqueles mandados foram emitidos por tribunal incompetente para esse efeito, o que implica a ilegalidade da prisão do requerente, nos termos do art.° 206.° n.° 2, al. a) do Código de Processo Penal.
Ora, a referida norma prevê que a prisão é ilegal se tiver sido efectuada ou ordenada por entidade incompetente.
Será ilegal a prisão ordenada pelo Tribunal de Segunda Instância, quando julgue a causa penal em recurso correspondente a segundo grau de jurisdição? Afigura-se-nos que não.
Na realidade, não obstante a previsão do art.° 14.° do Código de Processo Penal, segundo o qual é competente para a execução o tribunal que em primeira instância tiver proferido a decisão e, no caso de a decisão ter sido proferida pelo Tribunal de Segunda Instância, a execução corre no tribunal de primeira instância, nada impede que o Tribunal de Segunda Instância ordene, em consequência da sua decisão tomada em sede de recurso no sentido de aplicar ao arguido a pena de prisão efectiva ou de revogar a suspensão da execução da pena decretada pelo Tribunal Judicial de Base, a passagem de mandados de detenção e condução do mesmo arguido.
A atribuição ao tribunal de primeira instância de competência para a execução não retira, evidentemente, a competência do Tribunal de Segunda Instância para emitir mandados de detenção e condução, sendo este também órgão judicial, o único competente para tomar decisões nos autos que correm os seus termos neste Tribunal.
Por outro lado, a emissão de mandados sem promoção do Ministério Público não afecta em nada a validade deste acto

Alega ainda o requerente que a decisão condenatória proferida pelo Tribunal de Segunda Instância não havia ainda transitado em julgado, pelo que a sua prisão é manifestamente ilegal, já que, nos termos dos art.°s 449.° n.° 1 e 459.° n.° 1 do Código de Processo Penal, só as decisões condenatórias transitadas em julgado podem ser executadas.
Sobre esta questão, é de relembrar o seguinte entendimento consignado por este Tribunal de Última Instância no Acórdão proferido no Processo n.° 9/2005, de 20 de Abril de 2005, reafirmado no Acórdão mais recente proferido no Processo n.° 98/2014, de 31 de Julho de 2014, que não é de alterar:
《Pode-se discutir a legalidade da decisão de mandar conduzir o arguido a prisão logo depois da leitura da sentença que o condena em pena de prisão efectiva.
Posta a questão doutra forma, trata-se de saber se pode ser executada a sentença condenatória no prazo de interposição do recurso ou de arguição de nulidade de acórdão no caso de não ser admissível recurso ordinário.
Prescreve assim o n.° 1 do art.° 449.° do Código de Processo Penal (CPP): “1. As decisões penais condenatórias transitadas em julgado têm força executiva ...”.
Das letras da norma parece significar que as sentenças condenatórias só podem ser executadas após o seu trânsito em julgado.
No entanto, esta norma deve sofrer uma interpretação restritiva, de forma a permitir a exequibilidade imediata das decisões condenatórias em pena de prisão efectiva, antes do seu trânsito em julgado, ainda que o crime não admita prisão preventiva, desde que não seja interposto recurso por arguido ou pelo Ministério Público no exclusivo interesse daquele, ou não haja arguição de nulidade de sentença no caso de ser inadmissível recurso ordinário.
Na verdade, nesta norma o legislador disse mais do que queria. Não faria sentido o juiz mandar o arguido aguardar em liberdade o trânsito em julgado da decisão, quando lhe imponha na sentença a pena de prisão efectiva, se o próprio arguido ou o Ministério Público no interesse deste não pretendem recorrer ou arguir nulidades.
A pena de prisão deve ser executada logo que a lei admita a sua execução. Tal princípio da execução imediata é justificada pela necessidade de assegurar a exemplaridade da condenação, satisfazendo-se assim as necessidades de prevenção especial e geral das penas, e porque seria desumano retardar um castigo que o condenado sabe ser inelutável.1
Nenhum interesse milita no sentido de libertação imediata de arguido condenado, porque, nestes casos, o trânsito em julgado é inelutável após o prazo para aqueles efeitos.
Perante uma decisão condenatória, o arguido ou o Ministério Público no interesse deste podem interpor recurso que é susceptível de obstar a execução imediata da pena de prisão, quando seja legalmente admitido a recorrer. No caso de a decisão ser proferida em audiência, o recurso pode ser interposto até por simples declaração na acta, apresentando a motivação posteriormente (art.° 401.°, n.° 3 do CPP).
Nestes casos, o arguido não pode ficar privado de liberdade por causa do efeito suspensivo do recurso, a menos que seja aplicada a prisão preventiva. Se não houver recurso nestes dois casos ou a arguição de nulidade da sentença, conforme a situação, o arguido deve ser conduzido para o cumprimento da pena de prisão.》
Resumindo, é de dizer que é admissível a exequibilidade imediata das decisões condenatórias que apliquem pena de prisão efectiva, antes do seu trânsito em julgado, desde que não seja interposto recurso por arguido ou pelo Ministério Público no exclusivo interesse daquele, ou não haja arguição de nulidade da sentença no caso de inadmissibilidade do recurso ordinário.
A exequibilidade imediata da decisão condenatória fica porém quebrada com a interposição do recurso por arguido ou pelo Ministério Público ou com a arguição de nulidade da sentença.

No caso ora em apreciação, não é admissível o recurso ordinário do Acórdão proferido pelo Tribunal de Segunda Instância.
O ora requerente arguiu a nulidade do Acórdão condenatório, que obsta ao trânsito em julgado do Acórdão bem como à execução imediata do mesmo.
Daí que, em consequência da posição supra exposta, afigura-se que se deve declarar ilegal a prisão do requerente e ordenar a libertação imediata do mesmo, nos termos dos art.°s 206.° n.° 2, al, b) e 207.° n.° 4, al. d) do Código de Processo Penal.

4. Decisão
Pelo exposto, acordam em deferir o pedido de habeas corpus e ordenar a libertação imediata do requerente.
Sem custas.
Emita-se o mandado de soltura.
Comunique-se imediatamente ao Processo n.º 160/2014 do Tribunal de Segunda Instância.
  
  Macau, 11 de Agosto de 2014
  
   Juízes: Song Man Lei (Relatora) – Seng Ioi Man – Chan Chi Weng
1 Cfr. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, vol. III, 2ª ed., Editorial Verbo, 2000, p. 400; Manuel Lopes Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado e Comentado, 12ª ed., Almedina, 2001, p. 867.
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Processo n.º 99/2014 3