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Processo n.º 81/2014. Recurso jurisdicional em matéria penal.
Recorrente: A.
Recorrido: Ministério Público e B.
Assunto: Crime continuado. Quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente. Recurso para o Tribunal de Última Instância. Medida da pena.
Data do Acórdão: 24 de Setembro de 2014.
Juízes: Viriato Manuel Pinheiro de Lima (Relator), Song Man Lei e Sam Hou Fai.
SUMÁRIO:
  I – O pressuposto fundamental da continuação criminosa é a existência de uma relação que, de fora, e de maneira considerável, facilite a repetição da actividade criminosa, tornando cada vez menos exigível ao agente que se comporte de maneira diferente, isto é, de acordo com o direito.
II – Os tribunais devem ser particularmente exigentes no preenchimento dos requisitos do crime continuado, em especial na diminuição considerável da culpa do agente, por força da solicitação de uma mesma situação exterior.
III - Ao Tribunal de Última de Instância, como Tribunal especialmente vocacionado para controlar a boa aplicação do Direito, não cabe imiscuir-se na fixação da medida concreta da pena, desde que não tenham sido violadas vinculações legais – como por exemplo, a dos limites da penalidade – ou regras da experiência, nem a medida da pena encontrada se revele completamente desproporcionada.
O Relator
Viriato Manuel Pinheiro de Lima

ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU:
  
I – Relatório
O Tribunal Colectivo do Tribunal Judicial de Base, por Acórdão de 19 de Dezembro de 2013, condenou o arguido A, pela prática em autoria material, na forma consumada, e em concurso, de dois crimes de burla de valor consideravelmente elevado, previstos e puníveis pelo artigo 211.º, n.º 4, alínea a) do Código Penal, nas penas de 3 (três) anos e 6 (seis) meses de prisão e de 3 (três) anos de prisão.
Em cúmulo jurídico, foi condenado na pena única de 4 (quatro) anos de prisão.
Recorreram o arguido e a assistente, esta pedindo que o arguido fosse condenado em penas mais elevadas.
O Tribunal de Segunda Instância (TSI), por Acórdão de 29 de Maio de 2014, julgou improcedente o recurso interposto pelo arguido, alterou oficiosamente o número dos crimes praticados pelo arguido, condenando o arguido como autor de cinco crimes de burla de valor consideravelmente elevado, previstos e puníveis pelo artigo 211.º, n.º 4, alínea a) do Código Penal nas penas de 4 (quatro) anos de prisão por cada um e, em cúmulo jurídico, na pena única de 8 (oito) anos de prisão, dando provimento parcial ao recurso do assistente.
Recorre, novamente, o arguido, para este Tribunal de Última Instância (TUI), suscitando as seguintes questões quanto à parte penal do julgado:
- Entende que os factos consubstanciam um só crime de burla, na forma continuada;
- Considera que a medida concreta da pena não deve ser superior a 3 anos de prisão, suspensa na sua execução.
O Ex.mo Procurador-Adjunto pronunciou-se pela improcedência do recurso.
  
II – Os factos
Estão provados os seguintes factos:
1. Em 2009, o arguido A foi contratado pelo Grupo C para desempenhar as funções de gerente superior do Casino C, encarregando-se, principalmente, da gestão da operação dos pisos de jogos do Casino, incluindo a gestão do pessoal da tesouraria, o tratamento das contas de troca de fichas dos jogadores e a operação diária da tesouraria, etc.
2. Em 30 de Março de 2012, o arguido pretendeu criar uma conta de troca de fichas no Clube de VIP D do Casino C com vista a auferir comissão. Como a Sociedade proibia os empregados de criarem conta para si no Clube de VIP, o arguido, auxiliado pelo seu amigo E, criou, em nome deste, uma conta no Clube de VIP D, registada sob o n.º XXXX, cuja operação, porém, era totalmente gerida pelo próprio arguido. Após criada a conta, o arguido nela depositou, em numerário e em datas diferentes, um total de HKD$3.000.000,00.
3. Para ganhar “dinheiro rápido”, o arguido queria levantar dinheiro da aludida conta para jogar pessoalmente. Contudo, enquanto gerente da Sociedade, o arguido não podia jogar nas mesas de jogo em nome próprio, surgindo-lhe, então, a ideia de mentir ao Clube de VIP que havia jogadores do Interior da China que o pediram para fazer apostas telefónicas para eles, pretexto com que já poderia jogar nas mesas de jogo.
4. No dia 10 de Abril de 2012, pelas 23h, o arguido, enquanto estava de serviço no Casino C, foi à tesouraria do Clube de VIP D levantar da conta n.º XXXX supracitada os três milhões de dólares de Hong Kong que tinha depositado. Tendo-os trocados por fichas, foi o arguido jogar à mesa de jogo n.º XXX na sala F, situada no 1º andar do Casino. Nessa altura, o chefe do departamento de relações públicas do Casino G foi mandado auxiliar o arguido a trocar o dinheiro por fichas.
5. A fim de convencer os outros de que estava a fazer apostas telefónicas por conta de cliente, o arguido pegou no seu telemóvel e ligou os auscultadores, fingindo estar a falar com o cliente para fazer apostas e para lhe comunicar, durante o jogo, o resultado do jogo e o valor do capital restante.
6. Em 11 de Abril de 2012, por volta da 1h da madrugada, o arguido perdeu todos os três milhões de dólares de Hong Kong supramencionados.
7. Para recuperar, o mais rápido possível, o dinheiro que perdeu, o arguido pretendia fazer Marker (linha de crédito, sic) através das contas de troca de fichas criadas no Clube de VIP D pelo seu primo H e pelo tio deste I, de maneira a continuar a jogar.
8. Na altura, o arguido ligou à sua chefe J (directora-adjunta da tesouraria do Grupo C), mentindo que I, que tinha conta no Clube de VIP (n.º XXXX), lhe tinha telefonado, dizendo que necessitava de fazer Marker (linha de crédito, sic) para fazer apostas telefónicas por um julgador. Acreditando no que contou o arguido, Jautorizou-o, verbalmente, a fazer Marker (linha de crédito, sic) através da conta de I e a fazer apostas para o cliente.
9. No mesmo dia (11 de Abril de 2012), pela 1h51 da madrugada, o arguido dirigiu-se ao balcão da tesouraria do Clube D e pediu à supervisora de turno da tesouraria K para fazer Marker (linha de crédito, sic) no valor de HKD$5.000.000,00 através da conta de I, a ser utilizado por um cliente que jogava por apostas telefónicas. Quando K, seguindo o procedimento de costume, queria notificar o superior e confirmar com o cliente, o arguido manifestou-lhe que já tinha obtido o consentimento do titular da conta I e da sua chefe J, daí ser desnecessário informá-los. Considerando que o arguido era, na altura, o responsável supremo no Clube de VIP, K, sem perguntar mais, passou-lhe um recibo de empréstimo Marker (linha de crédito, sic) no valor de HKD$5.000.000,00, deixando-o assinar na coluna “devedor”, com vista a comprovar que foi o arguido que levantou a verba. Depois disso, o funcionário de relações públicas de turno G levou à mesa de jogo fichas no valor de HKD$5.000.000,00 para o arguido as usar no jogo.
10. Entre a 1h51 e as 5h40 da madrugada, o arguido, pela mesma maneira, fez quatro Markers (linha de crédito, sic) através da conta de I, na quantia total de HKD$15.000.000,00, para jogar à mesa de jogo n.º XXX da sala F:
- Em 11 de Abril de 2012, por volta da 1h51 da madrugada, fez um Marker (linha de crédito, sic) no valor de HKD$5.000.000,00 através da conta de I;
- Em 11 de Abril de 2012, por volta das 3h37 da madrugada, fez um Marker (linha de crédito, sic) no valor de HKD$6.000.000,00 através da conta de I;
- Em 11 de Abril de 2012, por volta das 5h22 da madrugada, fez um Marker (linha de crédito, sic) no valor de HKD$3.000.000,00 através da conta de I;
- Em 11 de Abril de 2012, por volta das 5h40 da madrugada, fez um Marker (linha de crédito, sic) no valor de HKD$1.000.000,00 através da conta de I.
11. Todas as vezes que o arguido pediu para fazer Marker (linha de crédito, sic), o pessoal da tesouraria perguntou ao arguido se tinha avisado a sua chefe e o cliente, e o arguido respondeu sempre que já o tinha feito, razão pela qual o pessoal da tesouraria não pôs mais pergunta nem ligou ao cliente para confirmar.
12. No mesmo dia (11 de Abril de 2012), pelas 7h21 da manhã, o arguido, tendo perdido os Markers (linha de crédito, sic) feitos através da conta de I no valor total de HKD$15.000.000,00, exprimiu, mais uma vez, à supervisora da tesouraria K que queria fazer Marker (linha de crédito, sic) no valor de HKD$5.000.000,00, desta vez, através da conta n.º XXXX criada por H, alegando-lhe igualmente que tinha ligado à chefe e confirmado com o titular da conta, pelo que K, sem colocar mais pergunta, fez para o arguido Marker (linha de crédito, sic) no valor de HKD$5.000.000,00 através da conta de H. A seguir, o arguido deslocou-se à mesa de «Bacará» n.º XXX na sala L sita no 1º andar do Casino, onde continuaria a jogar.
13. Pelas 8h da manhã, a directora-adjunta da tesouraria J, ao consultar na Internet as contas da Sociedade, descobriu que I e H tinham feito cinco Markers (linha de crédito, sic), na quantia total de HKD$20.000.000,00, e que, em todos recibos de empréstimo assinados, se tinha indicado nas observações o dinheiro ter sido levantado pelo titular da respectiva conta. Todavia, tanto quanto J sabia, I não estava em Macau, e, conforme os registos anteriores, nas duas contas em questão, nunca se tinha feito Marker (linha de crédito, sic) em valor tão elevado. Por isso, J ficou desconfiada.
14. Sendo assim, J, por um lado, mandou funcionários contactar I e H e, por outro, pediu ao arguido para parar de fazer apostas. Contudo, como o arguido não deixou de mentir, alegando que o cliente lhe solicitava ao telefone que continuasse a jogar, acresce que não conseguiram entrar em contacto com I ou H, J deixou o arguido continuar a apostar.
15. No mesmo dia (11 de Abril de 2012), pelas 11h da manhã, J finalmente entrou em contacto com I e H, os quais manifestaram que nunca tinham autorizado o arguido a fazer Marker (linha de crédito, sic) através das suas contas, nem lhe tinham pedido por telefone para fazer apostas telefónicas para eles.
16. Perante isso, J telefonou imediatamente para a Sociedade. Através de um outro gerente da tesouraria, encontrou-se na sala L o arguido, que na altura ainda estava a jogar à mesa, restando-lhe apenas fichas no valor de HKD$1.038.500,00. Solicitou-se ao arguido que parasse imediatamente de jogar e foram retiradas da mesa as fichas restantes.
17. O arguido, com intenção de obter para si enriquecimento ilegítimo, por meio de erro e engano sobre factos que astuciosamente provocou, causou prejuízo patrimonial a outrem, tendo em vista ofender os seus direitos patrimoniais.
18. O arguido agiu, de forma livre, voluntária e consciente, ao praticar os actos supramencionados, sabendo perfeitamente que a sua conduta era proibida e punível por lei.
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Ficaram provados os seguintes factos relevantes para a decisão e constantes do pedido cível e da sua contestação:
A demandante cível (ou seja, a assistente), criada em Abril de 2007, explora as actividades de promoção de jogos de fortuna ou azar ou outros jogos em casino. O Casino C é um dos casinos explorados pela assistente.
Devido à mencionada conduta do arguido, a demandante cível (ou seja, a assistente) sofreu uma perda total de HKD$18.961.500,00, equivalente a MOP$19.530.345,00.
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Mais se provou:
Segundo o Certificado de Registo Criminal, o arguido não tem antecedente criminal.
O arguido declarou ser agente imobiliário, auferindo por mês um salário-base de MOP$5.000,00. Tem a seu cargo os pais e tem como habilitações académicas o curso de licenciatura.
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Factos não provados:
Não foram provados os demais factos relevantes constantes da pronúncia, da contestação criminal, do pedido de indemnização civil e da contestação ao pedido cível que estão em desconformidade com os factos provados supracitados.

III - O Direito
1. As questões a resolver
Este TUI tem entendido que o assistente, em processo penal, não pode recorrer quanto à escolha e medida da pena, a menos que demonstre, concretamente, um interesse próprio nessa impugnação (Acórdãos de 18 de Setembro de 2013 e 23 de Julho de 2014, respectivamente, nos Processos n. os 45/2013 e 43/2014).
Contudo, a legitimidade da assistente para interpor recurso da decisão de 1.ª instância para o TSI não foi suscitada no presente recurso, pelo que não será conhecida. Já assim não seria se fosse o assistente a interpor recurso para o TUI com fundamento na medida da pena. Aí já a questão seria de conhecimento oficioso porque atinente a um pressuposto processual do recurso. Não é o caso.
Apreciar-se-ão, assim, apenas as questões suscitadas pelo arguido, atrás mencionadas.

2. Crime continuado
Trata-se de saber se, como entende o arguido, os factos consubstanciam um só crime de burla, na forma continuada, ou antes dois crimes de burla, como decidiu o Tribunal de 1.ª Instância ou, ainda, cinco crimes de burla, como decidiu o TSI.
Não vamos, assim, apreciar a qualificação dos crimes (como burla), visto que a questão – colocada no recurso para o TSI – não foi agora suscitada.
Os factos e as conclusões pertinentes são as seguintes:
O arguido era gerente de um clube vip de apostas em casino.
Ilegalmente, apostou 3 milhões de dólares de Hong Kong, nesse casino, com dinheiro seu e perdeu.
Para recuperar o dinheiro perdido, menos de uma hora depois, obteve, ilegalmente, empréstimo de 5 milhões de dólares de Hong Kong no mesmo casino, mentindo à responsável pela tesouraria do clube, dizendo que o dinheiro se destinava a jogador com conta no clube, que o tinha instruído telefonicamente para jogar por ele, o que era falso.
Jogou e perdeu.
Na mesma madrugada, durante cerca de quatro horas, o arguido, pelo mesmo processo, contraiu mais 4 empréstimos, respectivamente, de 6 milhões de dólares de Hong Kong, 3 milhões de dólares de Hong Kong, 1 milhão de dólares de Hong Kong e 5 milhões de dólares de Hong Kong, sucessivamente, após ter jogado e perdido sempre.
O arguido ainda tinha na sua posse HKD$1.038.500,00, quando foi detectado o engano e impedido de continuar a jogar.

Este Tribunal, recentemente, apreciou a figura do crime continuado, tendo concluído nos Acórdãos de 16 de Janeiro e 13 de Novembro de 2013, respectivamente, nos Processos n. os 78/2012 e 57/2013, que:
I - O pressuposto fundamental da continuação criminosa é a existência de uma relação que, de fora, e de maneira considerável, facilite a repetição da actividade criminosa, tornando cada vez menos exigível ao agente que se comporte de maneira diferente, isto é, de acordo com o direito.
II - Os tribunais devem ser particularmente exigentes no preenchimento dos requisitos do crime continuado, em especial na diminuição considerável da culpa do agente, por força da solicitação de uma mesma situação exterior.
Dissemos o seguinte, no primeiro destes arestos:
“Artigo 29.º
(Concurso de crimes e crime continuado)
1. O número de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efectivamente cometidos, ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente.
2. Constitui um só crime continuado a realização plúrima do mesmo tipo de crime ou de vários tipos de crime que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico, executada por forma essencialmente homogénea e no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente”.

Recordemos, ainda que, enquanto a punição do concurso de crimes consiste numa pena única, que tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes (artigo 71.º, n. os 1 e 2 do Código Penal), no caso de crime continuado este é punível com a pena aplicável à conduta mais grave que integra a continuação (artigo 73.º do Código Penal).
É sabido que o artigo 29.º do Código Penal de Macau corresponde exactamente ao artigo 30.º do Código Penal português de 1982.
O mesmo se diga, aliás, em termos substanciais, da correspondência dos artigos 71.º e 73.º do Código Penal de Macau ao artigo 78.º do Código Penal português, no que se refere às punições do concurso de crimes e do crime continuado.
A configuração do crime continuado nos Códigos português e de Macau reflectem, nos seus exactos termos, a lição sobre a matéria do autor do Projecto português, EDUARDO CORREIA1, que se referia, ao tema, da seguinte maneira no seu ensino da década de 60 do século passado:
“O núcleo do problema reside em que, como já dissemos, se está por vezes perante uma série de actividades que, devendo em regra - segundo os princípios até agora expostos - ser tratada nos quadros da pluralidade de infracções, tudo parece aconselhar - nomeadamente a justiça e a economia processual2 - que se tomem, unitariamente, como um crime só. Ora, para resolver o problema, duas vias fundamentais de solução podem ser trilhadas: ou, a partir dos princípios gerais da teoria do crime, procurar deduzir os elementos que poderiam explicar a unidade inscrita no crime continuado - e teremos então uma construção lógico-jurídica do conceito3; ou atender antes à gravidade diminuída que uma tal situação revela em face do concurso real de infracções e procurar, assim, encontrar no menor grau de culpa do agente a chave do problema - intentando, desta forma, uma construção teleológica do conceito.
  Este último é, sem dúvida, o caminho mais legítimo, do ponto de vista metodológico, para resolução do problema. Pois, quando bem se atente, ver-se-á que certas actividades que preenchem o mesmo tipo legal de crime - ou mesmo diversos tipos legais de crime, mas que fundamentalmente protegem o mesmo bem jurídico -, e às quais presidiu uma pluralidade de resoluções (que, portanto, em princípio atiraria a situação para o campo da pluralidade de infracções), todavia devem ser aglutinadas numa só infracção, na medida em que revelam uma considerável diminuição da culpa do agente”.
No caso dos autos, o Acórdão recorrido não teve quaisquer dúvidas de que se verificavam alguns requisitos do crime continuado, como:
i) A realização plúrima do mesmo tipo de crime ou de vários tipos de crime que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico;
  ii) Execução dos factos por forma essencialmente homogénea.
  E, na verdade, assim é. Tratou-se da prática de burlas, sendo a mesma pessoa a vítima e tendo sempre como pretexto a contratação de trabalhadores do interior da China, para trabalharem em Macau.
O que o Acórdão recorrido não aceitou foi que estivesse em causa uma “solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente”.
E com razão o fez.
Como ensina EDUARDO CORREIA4 “ … quando se investiga o fundamento desta diminuição da culpa ele deve ir encontrar-se, como pela primeira vez claramente o formulou KRAUSHAAR, no momento exógeno das condutas, na disposição exterior das coisas para o facto. Pelo que pressuposto da continuação criminosa será, verdadeiramente, a existência de uma relação que, de fora, e de maneira considerável, facilitou a repetição da actividade criminosa, tornando cada vez menos exigível ao agente que se comporte de maneira diferente, isto é, de acordo com o direito5”.
E depois, de tipificar quatro casos em que a situação exterior mencionada se verificaria, conclui:
“Não deve porém esquecer-se que, com a tipificação de situações que deixamos esquematizada, nem por um lado se esgota o domínio da continuação, nem por outro se fica legitimado a afirmá-lo sem mais: sempre será necessário, para o alargar ou corrigir, recorrer à ideia fundamental que, como começámos por pôr em relevo, em última instância o legitima: a diminuição considerável do grau de culpa do agente”.
Também J. FIGUEIREDO DIAS6 afina pelo mesmo diapasão: “§ 45 Compatível com a figura do crime continuado, tal como se encontra plasmada no art. 30.º -2, parece pois tanto a hipótese de à série de comportamentos presidir um dolo conjunto ou um dolo continuado, como de se estar perante uma pluralidade de resoluções (7). O ponto a que a lei confere relevo não é esse, mas sim o de – seguindo um pensamento que de Kraushaar vem até Eduardo Correia (8) – exigir que aquele crime seja dominado por uma situação exterior “que diminua sensivelmente a culpa do agente”: aqui se depara com um elemento “subjectivo” que há-de estender-se à inteira relação de continuação”.
MANUEL CAVALEIRO DE FERREIRA9, a propósito da diminuição da culpa que se tem de verificar no crime continuado, pondera: “A situação exterior é tomada como a origem da motivação do agente. O que a lei pretende, portanto, é dar a razão da diminuição da culpa, indo buscar o seu fundamento substancial na motivação da decisão voluntária, motivação que se figura objectivamente na «situação de facto» que a provoca. Por isso Eduardo Correia afirma que «a diminuição da culpa do agente em certos casos de reiteração de condutas criminosas, foi a ideia à luz da qual procurámos delimitar o âmbito do crime continuado»10.
E, sendo assim, o n.º 2 do art. 30.º não define rigorosamente requisitos objectivos do crime continuado, e antes indica caminhos para descobrir a menor ou muito menor gravidade da culpa.
É sintomática a comparação que se lê na obra citada: «Sendo assim, sempre que sucede o agente violar um certo interesse ou valor jurídico, é preciso investigar se, encarnando nas circunstâncias que acompanharam a sua motivação, não terá porventura aparecido a impeli-lo para o facto um valor maior ou igual ao violado, no quadro axiológico a que conduz a aceitação deste último [ ... ]»11.
A questão que se coloca é a de distinguir casos de concurso de crimes que são hoje gravemente punidos, numa exacerbação do sistema punitivo, que não tem confronto com a benevolência instaurada nos Códigos Penais pelo liberalismo do século XIX, dos casos de concurso de crimes nos quais a culpa, considerada no seu conceito integral, tal como deve gizar-se para efeitos de aplicação das penas, se encontra consideravelmente diminuída.
Então, enquanto como regra o concurso de crimes terá como limite máximo da penalidade o cúmulo material de penas se for grave a culpa, o crime continuado (como concurso de crimes) terá como pena aquela correspondente ao facto mais grave cometido (absorção de penas) se a culpa for «sensivelmente diminuída» (Código Penal art. 78.°)”.
É conhecido, por outro lado, que o entusiasmo pelo instituto do crime continuado tem sofrido alguma erosão, sobretudo pela benevolência com que foi acolhida a sua punição relativamente às regras do concurso de crimes e por privilegiar carreiras criminosas longas, sendo que na Alemanha e na Suíça o instituto foi suprimido, como dá conta PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE12.
Certo é que, ao contrário de outras Ordens Jurídicas em que a figura tem carácter jurisprudencial e doutrinal, em Macau e Portugal ela tem como origem a lei, pelo que ao intérprete não cabe discutir a sua pertinência13.
Seja como for, a doutrina tem propendido para que a jurisprudência tenha alguma exigência no preenchimento dos requisitos do crime continuado “… e só admita a existência de um crime continuado quando, em sua convicção, aquela exigibilidade consideravelmente diminuída se tenha verificado. Temos esta condição como indispensável à manutenção da figura, não podendo concordar por isso com os incontáveis casos em que a nossa jurisprudência se tem bastado com frequência com a configuração objectiva da continuação, eventualmente juntando-lhe a afirmação apodíctica de que ela revela uma culpa consideravelmente diminuída.
[…]
As reservas político-criminais que ao crime continuado se possam opor só podem por isso conduzir o intérprete e o aplicador – e, se fundadas, deverão conduzir, de acordo com o princípio do primado da política criminal – a serem particularmente rigorosos e exigentes na aferição dos pressupostos, objectivos mas sobretudo subjectivos, de que depende a existência jurídica da relação de continuação, nos termos do art. 30.º - 2 do CP.”14>.

3. O caso dos autos
No caso dos autos não detectamos a diminuição sensível da culpa do arguido com fundamento em situação exterior, que é pressuposto da figura do crime continuado.
Foi o arguido, como responsável do clube, que dispôs as coisas de modo a obter os cinco empréstimos fraudulentamente. Quando contraiu cada um dos empréstimos e jogou, de seguida, o arguido teve sempre de repetir as mesmas operações: solicitar autorização para o empréstimo, enganando os responsáveis pela tesouraria, invocando consentimento do cliente (falso) e da sua chefe (falso).
Deste modo, não houve uma única resolução criminosa. O arguido tomou cinco vezes tal resolução, quando constatou que não conseguia recuperar o dinheiro que tinha investido inicialmente e o que, entretanto, pedira emprestado.
Não se vislumbra, assim, qualquer situação exterior que tivesse predisposto a situação, de modo a facilitar a conduta do arguido.
Improcede o recurso nesta parte.

4. Medida da pena
Os crimes são punidos com pena de prisão de 2 a 10 anos.
O arguido foi condenado a penas de 4 anos de prisão por cada um dos 5 crimes e, em cúmulo jurídico, a uma pena de 8 anos de prisão (variando a penalidade deste cúmulo entre 4 e 20 anos de prisão).
Não se revela serem as penas desproporcionadas nem ter havido qualquer erro jurídico na sua aplicação, sendo certo que este Tribunal tem entendido que, em princípio, não sindica a medida da pena, na medida em que na sua fixação intervém alguma discricionariedade, que cabe aos tribunais mais perto da situação de facto e com competência para conhecerem desta, a não ser que havido violações legais ou que a pena seja desproporcionada.
É, assim, de manter as penas aplicadas.

IV – Decisão
Face ao expendido, negam provimento ao recurso.
Custas pelo arguido, com taxa de justiça fixada em 5 UC.

Macau, 24 de Setembro de 2014.

Juízes: Viriato Manuel Pinheiro de Lima (Relator) – Song Man Lei – Sam Hou Fai

     1 EDUARDO CORREIA, Direito Criminal, Coimbra, Almedina, reimpressão, 1971, II volume, pp. 208 e 209.
2 O problema do crime continuado está, com efeito, intimamente ligado a uma problemática especificamente processual, relacionada nomeadamente com a extensão do caso julgado e a determinação dos poderes cognitivos do juiz. Cfr., sobre este ponto, EDUARDO CORREIA, A teoria do concurso em direito criminal. Caso julgado e poderes de cognição do juiz, passim, esp, 348 ss.
  3 Neste tipo de construção podem ainda distinguir-se as teorias subjectivas e as objectivas. Para as primeiras o elemento aglutinador das diversas condutas que formam o crime continuado seria a «unidade de determinação da vontade» (SCHROEDER) ou a «unidade de resolução» (MITTERMAIER). Para as segundas ele residiria na homogeneidade das condutas (WORINGEN), na indivisibilidade (SCHWARZ) ou na unidade de objecto (MERKEL).
     4 EDUARDO CORREIA, Direito…, II Volume, p. 209.
5 Ponto é, evidentemente, - como, de resto, em geral pusemos em relevo, ao tratar da não exigibilidade: cf. supra voI. I 455 s. -, que se não trate de um agente com uma personalidade particularmente sensível a pressões exógenas.
     6 J. FIGUEIREDO DIAS, Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, Coimbra Editora, 2.ª edição, 2007, p. 1031.
(7) A esta hipótese de pluralidade de resoluções parece CORRREIA, Eduardo, II. P.209, restringir a figura: ela abrange “certas actividades que preenchem o mesmo tipo legal de crime – ou mesmo diversos tipos legais de crime, mas que fundamentalmente protegem o mesmo bem jurídico – e às quais presidiu uma pluralidade de resoluções (que, portanto, atiraria a situação para o campo da pluralidade de infracções) ”. Se, no entanto, se olhar alguns dos exemplos que aponta de crime continuado (ibid., p. 210, notas 2 e 3, e infra, §46), logo se reconhecerá que esta “pluralidade de resoluções” é compatível com a preexistência de um dolo continuado ou mesmo conjunto.
(8) KRAUSHAAR, Beitrage zur Lehre von dem fortgesetzten Verbrechen, Der Gerichtssaal 12, 1860, p.258 e ss., CORREIA, Eduardo, nota 2, p. 283 e ss., e II, P.209 e ss.
     9 MANUEL CAVALEIRO DE FERREIRA, Lições de Direito Penal, Parte Geral, I, Lisboa/São Paulo, Verbo, 4.ª edição, 1992, p. 552 e 553.
     10 Na reimp. cit., cf. Pág. 271
    11 Ibid., págs. 234-235
     12 PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, Comentário do Código Penal à Luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, Lisboa, Universidade Católica Editora, 2.ª edição, 2010, p. 159.
     13 J. FIGUEIREDO DIAS, Direito…, p. 1041.
     14 J. FIGUEIREDO DIAS, Direito…, p. 1040 e 1041. No mesmo sentido, PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, Comentário…, p. 162.

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