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Processo n.º 72/2014
(Recurso Laboral)

Data: 11/Setembro/2014

RECORRENTE :
Recurso Final
S.T.D.M.

Recurso Interlocutório
S.T.D.M.

RECORRIDA :
A (XXX)

    ACORDAM OS JUÍZES NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
    I - RELATÓRIO
    A, mais bem identificada nos autos, patrocinada por advogado, veio interpor contra Sociedade de Turismo e Diversões de Macau, S.A.R.L.” (澳門旅遊娛樂有限公司), Sociedade Anónima de Responsabilidade Limitada, com sede em Macau, Região Administrativa Especial de Macau, no Hotel Lisboa, 9º andar, acção de processo comum de trabalho, pedindo a condenação da Ré, a título de créditos laborais a pagar-lhe. a quantia de MOP$376.315,00 acrescida dos respectivos juros desde a notificação para a tentativa de conciliação.
    Julgada a causa, foi decidido condenar a Ré a pagar à A. o montante de MOP$350.885,30, acrescido de juros de mora à taxa legal a contar do trânsito da sentença.
     Proferido despacho saneador por força do qual foi julgada improcedente a excepção peremptória de pagamento e remissão, veio a STDM recorrer, propugnando pela relevância da transacção realizada e consequente procedência da excepção, tendo concluído da seguinte forma:
    1 - O douto Despacho Saneador proferido pelo Tribunal Judicial de Base, constante de fls. 104 a 108 dos presentes autos, é aqui posto em crise pelo presente Recurso, devendo ser revisto e reformulado, e, em consequência, deverá a Ré, aqui Recorrente, ser absolvida da totalidade dos pedidos da Autora;
    2 - O presente Recurso respeita à qualificação jurídica da Declaração contida no Documento n.º 1 junto à Contestação e constante de fls. 66 dos presentes autos, bem como aos efeitos extintivos do negócio obrigacional celebrado e constante dos Documentos n.ºs 1, 2 e 3 juntos à Contestação;
    3 - A qual é considerada pelo Tribunal a quo como uma transacção preventiva ou extrajudicial que, uma vez não cumprindo o respectivo formalismo lega" estaria ferida de nulidade, nos termos do disposto nos artigos 212.º e 279.º, ambos do CC;
    4 - Ora, seja qual for a qualificação jurídica atribuída à referida Declaração junta como Documento n.º 1 à Contestação, isto é, como Remissão de créditos ou de dívidas, no entendimento da Ré, Recorrente, nos termos e para os efeitos dos artigos 854.º e seguintes do CC e, também, nos termos dos artigos 863.º e seguintes do CC anteriormente em vigor aqui em Macau; como Quitação com Reconhecimento Negativo de Dívida, segundo o entendimento do Ilustre TUI de Macau; ou, ainda, como uma transacção extrajudicial ou preventiva (artigos 1172º a 1174º do CC), no entendimento do douto Tribunal a quo;
    5 - A verdade é que a mesma não se encontra ferida de nulidade por falta de formalismo negocial ou de formalidade do contrato em causa, pois o mesmo não tinha de ser celebrado sob a forma de escritura pública;
    6 - De facto, a Ré, aqui Recorrente, considera que a Declaração não é nula nos termos do artigo 212.º do CC, preceito invocado pelo douto Tribunal a quo no Despacho Saneador recorrido;
    7 - A parte final do artigo 1174.º do CC e a alínea n) do n.º 2 do artigo 94.º do CN prevêem que: "A transacção preventiva ou extrajudicial deve constar de escritura pública quando dela possa derivar algum efeito para o qual a escritura seja exigida ( ... )";
    8 - Nada na Declaração constante de fls. 66 dos autos, na modesta opinião da Recorrente, justifica, implica ou exige a sua celebração através de escritura pública, para salvaguardar algum efeito para o qual a escritura seja exigida;
    9 - Na parte final do já mencionado artigo 1174.º do CC e na alínea n) do n.º 2 do artigo 94.º do CN consta, ainda, que a transacção preventiva ou extrajudicial "( ... ) deve constar de documento escrito nos casos restantes.";
    10 - A Declaração (junta à Contestação como Documento n.º 1, confirmada, reiterada, ou sublinhada, ainda, pelos Documentos n.º 2 e n.º 3 juntos à mesma) demonstra que o Autora foi compensada, paga, ressarcida e indemnizada pela Ré, aqui Recorrente, pelos descansos semanais, descansos anuais e pelos feriados obrigatórios, sendo pois a mesma remissiva e extintiva das obrigações da ora Recorrente;
    11 - Ademais, demonstra que tendo a Autora recebido o valor referido, nenhum outro direito decorrente da relação de trabalho com a Recorrente subsiste e, portanto, nenhuma outra quantia é exigível à Recorrente, na medida em que nenhuma das partes deve à outra seja o que for, no que ao vínculo laboral se refere;
    12 - Como consta do mesmo douto Despacho Saneador recorrido, foi considerado provado que a Autora recebeu da Ré, STDM, S.A., duas quantias, ou seja, MOP$20.263,82 e MOP$9.536,22, tendo assinado em 13 de Julho de 2003 o documento junto a fls. 66, no qual declarou o seguinte:
    Eu, (…) recebi, voluntariamente, a título de prémio de serviço, a quantia de MOP$ 20.263,82 (…) da STDM, referente ao pagamento de compensação extraordinária de eventuais direitos relativos a descansos semanais, anuais, feriados obrigatórios, eventual licença de maternidade e rescisão por acordo do contrato de trabalho, decorrentes do vínculo laboral com a STDM.
    Mais declaro e entendo que, recebido o valor referido, nenhum outra direito decorrente da relação de trabalho coma STDM subsiste e, por consequência, nenhuma quantia é por mim exigível, por qualquer forma, à STOM, na medida em que nenhuma das partes deve à outra qualquer compensação relativa ao vínculo laboral."
    13 - Ora, atendendo ao supra referido, está confessado pela Autora não só o recebimento, mas também o negócio obrigacional extintivo celebrado entre os ora litigantes, após o termo da relação contratual e laboral;
    14 - O mesmo negócio impede e proíbe a Autora de demandar a Ré, ora Recorrente, no que concerne eventuais compensações por trabalho prestado em dias de descanso, devendo, em consequência, ser a Ré integralmente absolvida de todos os pedidos da Autora, pela procedência da excepção peremptória implícita no Documento n.º 1 junto à Contestação;
    15 - E, com esse acordo obrigacional, extintivo e excepção material ou peremptória, nenhum outro montante e nenhum pedido extra ou superveniente pode vir a ser solicitado ou exigido por qualquer das partes, após a conclusão e perfeição da Declaração negocial contida a fls. 66 destes autos;
    16 - Aliás, a existência desse acordo entre as partes também é referida no douto despacho saneador ora colocado em crise, mais sendo referido o termo do litígio mediante o pagamento da citada quantia;
    17 - O aqui Recorrido recebeu uma outra quantia paga pela Ré, também para compensação, ressarcimento e indemnização pelo trabalho prestado em dias de descanso semanal, anual e feriados obrigatórios, no seguimento do processo de contravenção laboral n.º 1476/2002, o qual foi dirigido pela então DSTE, actual DSAL;
    18 - Por tudo isto, não podia a Autora demandar, reclamar, exigir, peticionar, pedir, qualquer outra quantia por conta dos termos do acordo contido a fls. 66 dos autos;
    19 - A Declaração de fls. 66 é válida, eficaz e produtora de efeitos, devendo, em consequência, ser a aqui Recorrente absolvida dos pedidos;
    20 - Devem improceder, assim, as razões enunciadas a fls. 104 a 105 dos presentes autos, isto é, na parte em que o douto Tribunal recorrido decidiu, na fase do Saneamento, que a mesma Declaração não foi celebrada segundo a forma legalmente exigida e, como tal, deve ser considerada nula nos termos legais;
    21 - Quando o certo - salvo melhor juízo, entendimento e opinião - é que tal Declaração não precisava ser celebrada através da forma solene da escritura pública;
    22 - Logo, quanto aos demais pontos do douto despacho saneador ora posto em crise, reenvia-se o exposto para a Contestação da Ré, aqui Recorrente, e;
    23 - Caso a Declaração de fls. 66 dos autos venha a ser considerada formalmente válida, produzirá os seus efeitos e absolverá a Recorrente do pedido, pela procedência do alegado nos artigos 25.º a 42º da Contestação, revogando-se, pois, o douto Despacho Saneador aqui recorrido, seguindo-se os demais termos subsequentes do processo.
    Nestes termos entende dever o presente recurso Interlocutório ser julgado integralmente procedente, revogando-se a decisão contida no douto despacho saneador proferido pelo Tribunal a quo aqui recorrido em conformidade.
    
    A este recurso não respondeu a A.
    
    Da decisão final vem recorrer a STDM, Sociedade de Turismo e Diversões de Macau, S.A.R.L., R. considerando que as gorjetas não integravam o salário da trabalhadora, pondo em crise a forma como se achou o salário mensal, bem como as respectivas fórmulas de compensação dos descansos e feriados não gozados.
    Não foram oferecidas contra alegações.
    
    Oportunamente, foram colhidos os vistos legais.
    
    II - FACTOS
    Resulta ainda dos autos, com pertinência, a factualidade seguinte (fls 66):
    No dia 13 de Julho de 2003, a Autora subscreveu a declaração cujo teor consta de fls. 66, com o seguinte teor : “Eu, (.........) titular do BIR n.º XXXXXXXX recebi, voluntariamente, a título de prémio de serviço, a quantia de MOP$ 20.263,82 da STDM, referente ao pagamento de compensação extraordinária de eventuais direitos relativos a descansos semanais, anuais, feriados obrigatórios, eventual licença de maternidade e rescisão por acordo do contrato de trabalho, decorrentes do vínculo laboral com a STDM.
    Mais declaro e entendo que, recebido o valor referido, nenhum outro direito decorrente da relação de trabalho com a STDM subsiste e, por consequência, nenhuma quantia é por mim exigível, por qualquer forma, à STDM, na medida em que nenhuma das partes deve à outra qualquer compensação relativa ao vínculo laboral”.
    
    III - FUNDAMENTOS
    1. O objecto do recurso interlocutório, na parte respeitante à validade e consequências da declaração assinada pela trabalhadora, nos termos da qual declarou ter recebido já as compensações devidas, passa pela análise das seguintes questões:
    - Da observância da forma legal
    - Da aplicação do Código Civil em detrimento do DL 87/89/M de 3/Abril
    - Da natureza, validade e alcance da declaração e da disponibilidade ou indisponibilidade dos direitos
    - Do princípio do favor laboratoris
- Da validade da declaração
    Estamos cientes de que, a proceder este recurso, tal prejudicará necessariamente o recurso final, não havendo mais lugar a considerar que permaneçam quaisquer quantias devidas ao trabalhador pela compensação de descansos ou feriados não gozados.
    
    2. A Mma Juíza considerou que a dita declaração consubstanciada no documento de fls 66 era nula por falta de forma, face ao disposto no artigo 1174º do CC, porquanto do que se tratou foi de uma verdadeira transacção - e não já de uma remissão - que pôs termo ao litígio que opunha a trabalhadora à entidade patronal.
    Importa então ver da natureza dessa declaração, de forma a indagar se se observam ou não requisitos devidos quanto à forma da mesma.
    Insurge-se a recorrente contra quem fora pedido o pagamento das compensações devidas pelo pretenso não gozo de determinados descansos (semanal, anual e feriados), durante os anos em que trabalhou para a Ré STDM, pela aplicação do artigo 854º do CC, tomada como remissão dos créditos a declaração acima referida, segundo a qual o trabalhador, aquando da cessação da relação laboral assinou uma declaração dizendo receber as quantias a que considerava com direito, mais dizendo que considerava não subsistir qualquer outro direito decorrente da relação laboral que então findava.
    E por considerar que a situação não integra qualquer lacuna, já que regulada pelos artigos 1º e 33º, entre outros, do RJRL (DL24/89/M, de 3/4), não seria aplicável o regime geral que, no fundo, permite a disponibilidade dos créditos do trabalhador.
    
    3. Antes de esmiuçar esta questão, importa caracterizar a natureza e alcance da declaração que a trabalhadora assinou, para assim se ver se ela está ou não regulada no RJRL. Só se se concluir que se trata de uma renúncia de direitos indisponíveis abrangida por aquele regime se poderá afirmar a inaplicabilidade do regime geral consagrado na lei civil.
    Analisando a transcrita declaração, os seus termos, em chinês e em português, são claros e o sentido que um declaratário normal - e, tal como se assinala na douta sentença recorrida, face ao disposto no artigo 228º do CC, é esse o sentido que há que relevar - dali retira é que o trabalhador, face à rescisão do contrato de trabalho, no que respeita à relação laboral subsistente até então, recebeu uma certa quantia, referente a compensações de eventuais direitos, nomeadamente relativos aos descansos semanais, anuais, feriados obrigatórios, aceitando que nenhuma outra quantia fosse devida.
    Em linguagem simples, deu quitação da dívida.
    4. Mas vem agora a trabalhadora demandar outros montantes, quantitativamente muito maiores, numa desconformidade que desde logo impressiona, em relação àqueles que aceitou receber. E impressiona, porque em face de tais montantes, se não se considerava pago, face ao prejuízo que se afigurava, não devia ter assinado essa declaração.
    Dir-se-á que não tinha consciência do montante dos créditos ou que foi induzida em erro; mas essa é uma outra questão que devia ter sido alegada e comprovada, não se deixando de adiantar que tal como agora ocorreu não havia razões para se aconselhar sobre o alcance dos créditos a que efectivamente teria direito.
    Essa, contudo, é questão que não importa agora apreciar.
    
    5. Nem se diga que se tratou de uma renúncia de direitos indisponíveis.
    Não releva a natureza indisponível dos direitos concedidos ao trabalhador, a natureza proteccionista daquele diploma em relação a tais direitos, a necessidade de protecção da parte mais fraca, a posição dominante da concessionária empregadora, a menor margem de liberdade do trabalhador.
    A protecção que deve ser dispensada ao trabalhador não pode ser absoluta nem fazer dele um incapaz sem autonomia e liberdade, ainda que aceitando os condicionamentos específicos decorrentes de uma relação laboral.
    É verdade que, desde logo, o RJRL ,no seu art. 1°, pugnando pela "observância dos condicionalismos mínimos" nele estabelecidos, prevê que “O presente diploma define os condicionalismos mínimos que devem ser observados na contratação entre empregadores directos e trabalhadores residentes, para além de outros que se encontrem ou venham a ser estabelecidos em diplomas avulsos.”
     E no art. 33º do R.J.R.T. ”O trabalhador não pode ceder, nem a qualquer outro título alienar, a título gratuito ou oneroso, os seus créditos ao salário, salvo a favor de fundo de segurança social, desde que os subsídios por este atribuídos sejam de montante igual ou superior ao dos créditos.”
    Daqui decorre que nenhum desses artigos contempla ex professo a situação em apreço. Antes respeitam a situações diferentes, nomeadamente o artigo 33º o que prevê é a impossibilidade de renúncia a um salário e não já às compensações devidas por trabalho indevido.
    Tais preceitos dispõem sobre a regulação do exercício de uma relação laboral ainda em aberto, compreendendo-se que por essa via, ao trabalhador sejam garantidos aqueles mínimos que o legislador reputa como as condições mínimas de exercício humano, digno e justo do trabalho a favor de outrem.
    Tais cautelas já não são válidas quando finda essa relação, como aconteceu no caso presente.
    E também não são válidas quando já não está em causa o exercício dos direitos, mas apenas uma compensação que mais não é do que a indemnização pelo não gozo de determinados direitos.
    Não deixaria de ser abusivo e contrário à autonomia da vontade e liberdade pessoal, próprias do direito privado, que alguém, incluindo o trabalhador, não pudesse ser livre quanto ao destino a dar ao dinheiro recebido, ainda que a título de compensações recebidas por créditos laborais.
    A não se entender desta forma, pese embora a aberração do argumento, ter-se-ia de obrigar o trabalhador a aceitar o dinheiro e, mais, importaria seguir o destino que ele lhe daria.
    
    6. Diferentes são as coisas quando o trabalhador está em exercício de funções e a sociedade exige que as condições de trabalho sejam humanas e dignificantes, não se permitindo salários ou condições concretas de exercício vexatórias e achincalhantes, materializando a garantia da sua subsistência e do seu agregado familiar. Essa tem de ser a inspiração do intérprete relativamente ao princípio favor laboratoris, mas que não pode ir ao ponto de converter o trabalhador num incapaz de querer, entender e de se poder e dever determinar.
    Nem aquele princípio, consagrado no artigo 5º do mesmo supra citado Regime nos seguintes termos “1. O disposto no presente diploma não prejudica as condições de trabalho mais favoráveis que sejam já observadas e praticadas entre qualquer empregador e os trabalhadores ao seu serviço, seja qual for a fonte dessas condições mais favoráveis. 2. O presente diploma nunca poderá ser entendido ou interpretado no sentido de implicar a redução ou eliminação de condições de trabalho estabelecidas ou observadas entre os empregadores e os trabalhadores, com origem em normas convencionais, em regulamentos de empresa ou em usos e costumes, desde que essas condições de trabalho sejam mais favoráveis do que as consagradas no presente diploma.” , poderá ter o alcance que se pretende, de limitar a capacidade negocial do trabalhador de forma tão extensa.
    O princípio do tratamento mais favorável "...assume fundamentalmente o sentido de que as normas jurídico-laborais, mesmo as que não denunciem expressamente o carácter de preceitos limitativos, devem ser em princípio consideradas como tais. O favor laboratoris desempenha pois a função de um prius relativamente ao esforço interpretativo, não se integra nele. É este o sentido em que, segundo supomos, pode apelar-se para a atitude geral de favorecimento do legislador - e não o de todas as normas do direito laboral serem realmente concretizações desse favor e como tais deverem ser aplicadas"1
    Noutra perspectiva2, considera-se que tratamento mais favorável ao trabalhador deve ser entendido em termos actualistas, como o conjunto dos valores que o Direito do Trabalho, de modo adaptado, particularmente defende e entre os quais, naturalmente, avulta a protecção necessária ao trabalhador subordinado. Quando haja um conflito hierárquico entre fontes do Direito do Trabalho, aplicam-se as normas que estabelecem tratamento mais favorável para o trabalhador, sejam elas quais forem; tal não se verificará quando a norma superior tenha uma pretensão de aplicação efectiva, afastando a inferior.
    Donde decorre que o princípio do tratamento mais favorável ao trabalhador não é erigido para sufragar toda e qualquer interpretação que permita o alargamento de uma tutela proteccionista injustificada, tendo antes na sua génese a exclusão de um regime, entre dois ou mais aplicáveis, que lhe seja menos favorável.
    7. Nesta conformidade falece ainda eventual invocação do artigo 6º do RJRL ”São, em princípio, admitidos todos os acordos ou convenções estabelecidos entre os empregadores e trabalhadores ou entre os respectivos representantes associativos ainda que disponham de modo diferente do estabelecido na presente lei, desde que da sua aplicação não resultem condições de trabalho menos favoráveis para os trabalhadores do que as que resultariam da aplicação da lei”,
     tendo-se como condições de trabalho, nos termos do art. 2º, al. d) todo e qualquer direito, dever ou circunstância, relacionados com a conduta e actuação dos empregadores e dos trabalhadores, nas respectivas relações de trabalho, ou nos locais onde o trabalho é prestado.
    Isto porque, como se disse, já não se trata de conduta e actuação no local de trabalho e exercício de funções.
    Tal é a situação dos autos, em que se mostrou cessada a relação laboral e assim se tem entendido em termos de Jurisprudência comparada.3
    
    8. Quanto à natureza e validade da declaração.
    Afastando-se, como se viu, a aplicabilidade do RJRL em relação à proibição de tal estipulação, importa atentar na natureza que assume a declaração emitida pelo trabalhador aquando da cessação da relação laboral.
    Em termos gerais, a remissão de dívida traduz-se na renúncia do credor ao direito de exigir a prestação, feita com o acordo do devedor.
A primeira questão que se coloca é a de saber se o documento em causa constitui realmente um contrato de remissão. Pode-se entender que a referida declaração não configura um contrato de remissão, pois que tal implicaria uma identificação e reconhecimento de créditos de que prescindiria.
    Mas, o certo é que tal documento contém, pelo menos, uma declaração de quitação que, dada a sua amplitude, abrange todos os créditos resultantes da relação laboral em causa, incluindo os que eventualmente pudessem resultar da sua cessação.
    A remissão é uma das causas de extinção das obrigações e traduz-se na renúncia do credor ao direito de exigir a prestação que lhe é devida, feita com a aquiescência da contraparte4, revestindo, por isso, a forma de contrato, como claramente se diz no art.º 854º, n.º 1, do C.C.: "O credor pode remitir a dívida por contrato com o devedor."
    
    9. O que verdadeiramente caracteriza o contrato de remissão é a renúncia do credor ao poder de exigir a prestação que lhe é devida pelo devedor. Ao contrário do que acontece com o cumprimento (em que a obrigação se extingue pela realização da prestação devida) e ao contrário do que acontece na consignação, na compensação e na novação (em que o interesse do credor é satisfeito, não através da realização da prestação devida, mas por um meio diferente), na remissão, tal como na confusão e na prescrição, o direito de crédito não chega a funcionar. O interesse do credor a que a obrigação se encontra adstrita não chega a ser satisfeito, nem sequer indirecta ou potencialmente e, todavia, a obrigação extingue-se.5
O direito romano admitia a acceptilatio (remissão de uma obrigação verbal, mediante reconhecimento de se ter recebido a prestação, remissão que extinguia o crédito ipso jure), o pactum de non petendo (convenção pela qual o credor prometia ao devedor que não faria valer o crédito, definitiva ou temporariamente, contra todos - pactum in rem - ou contra determinada pessoa - pactum in provissem, produzindo o pacto o efeito de atribuir uma exceptio contra o crédito) e o contrarius consensus (convenção pela qual se extinguia toda uma relação obrigacional, derivada de um contrato consensual, o que só era possível se nenhuma das partes tinha ainda cumprido6
    Pode-se dizer, num certo sentido que, hoje, na remisão, - artigo 854ºdo Código Civil - extinguindo-se a obrigação, o interesse do credor não se satisfaz, nem sequer indirecta ou potencialmente.

10. Mas mesmo que, ainda porventura por algum excesso de rigor formal, se considerasse que o documento em causa não pudesse ser qualificado de remissão, por se entender ser necessário que a declaração nele contida tivesse carácter remissivo, isto é, que a parte tivesse declarado que renunciava ao direito de exigir esta ou aquela concretizada prestação, não se deixará de estar sempre perante uma declaração de quitação em que se consideravam extintos, por recíproco pagamento, ajustado e efectuado nessa data, toda qualquer compensação emergente da relação laboral, o que vale por dizer que todas as obrigações decorrentes do contrato de trabalho tinham sido cumpridas.
    Como diz Leal Amado7., uma quitação com aquela amplitude é, sem dúvida, uma quitação sui generis, uma vez que os credores não se limitaram a atestar que receberam esta ou aquela prestação determinada. Ao declarar que recebia as compensações a determinado título e que mais nenhum direito subsistia, por qualquer forma, nada devendo reciprocamente, atestaram que receberam todas as prestações que lhe eram devidas. E essa forma de quitação, por saldo de toda a conta, não deixa de ser admitida em direito.
    Perante isto, em vez de se perguntar se o autor renunciou ao direito às prestações que eventualmente lhe seriam devidas em consequência da cessação da relação laboral, perguntar-se-á se essas prestações já se mostram realizadas ou se se mostram extintas, sendo que a resposta a esta última questão, tida como relevante, é seguramente afirmativa, perante a clareza daquela afirmação.
    Na verdade, como inequivocamente decorre do teor do documento, os direitos abrangidos pela declaração emitida são os emergentes da relação contratual de natureza profissional que entre A. e Ré se manteve até àquela data.
    
    11. Poder-se-á ainda dizer que a extinção da relação laboral acordada, tornou impossível o cumprimento da obrigação de pagamento à Autor, do que ela solicita. Daí que ele passasse a ser titular de um outro direito; tal como já se assinalou, o crédito peticionado é o crédito à indemnização devida pelo incumprimento das obrigações que decorreram para a entidade patronal de lhe garantir os aludidos repousos enquanto para ele trabalhou.
    Esta perspectiva afigura-se particularmente relevante.
    É que não se trata da disponibilidade de direitos, mas sim da compensação pela sua não satisfação.
    Pelo contrato havido e comprovado, no âmbito do qual foi emitida aquela declaração, as partes acordaram sobre o montante de indemnização ou "compensação" devida à Autora e, com o recebimento dessa quantia, a correspondente obrigação da Ré, surgida em substituição da obrigação inicial, extinguiu-se pelo pagamento de que a A. deu total quitação, sendo legítima a transacção extrajudicial sobre o conteúdo ou extensão de obrigação da Ré nos termos do artigo 1172º do CC, não abrangida já por qualquer indisponibilidade.
    
    12. Anota-se ainda que no aludido documento, para além de que não se deixaram de concretizar a que título ocorreu o acerto final, quais as compensações a que se procedia, deu-se até quitação de todas e eventuais prestações não abrangidas por aquele recebimento.
    Tem-se até noutros casos invocado o argumento de o trabalhador se encontrar em notória situação de inferioridade e dependência ao assinar o recibo, pelo que, não manifestando qualquer vontade negocial, não terá tomado uma opção livre e consciente, uma escolha livre no tocante à assinatura da referida declaração, estaríamos perante uma situação de erro vício previsto no artigo 240º do CC, face à indução da conduta pela entidade pública tutelar e viciação da vontade, por temor, vista a continuação numa sociedade subsidiária da primeira empregadora.
    Trata-se, no entanto, de questão que não é colocada.
    
    13. Não se deixa de referir que esta interpretação, não obstante algumas divergências, não tem deixado de ser acolhida nos Tribunais de Macau, conforme parte da Jurisprudência do TSI e a Jurisprudência do TUI.8
    Assim se conclui pela não existência dos apontados vícios, não sendo de manter a douta decisão proferida, o que prejudica necessariamente o recurso final.

14. Estamos, pois, em condições de concluir que o referido documento assume uma natureza de quitação e de remissão abdicativa pela qual ficou claro que o trabalhador renunciava a quaisquer direitos emergentes da relação laboral que então cessava.
Não se deixará ainda de referir que não só não se vê razão para considerar estarmos perante uma transacção como pretende a Mma Juiz, enquadrável no art. 1174º do CC, como ainda, a considerar esse entendimento, não se vê razão para que o mesmo houvesse de ser celebrado por escritura pública já que a produção de efeitos dali decorrente não obriga a que se exija escritura pública, contentando-se essa declaração negocial com a forma escrita, tal como ocorreu e sendo que nem sequer o contrato principal (o contrato de trabalho) tem de revestir tal forma.

Assim, concluindo, relevando-se o documento de fls. 66, como se releva, procedente deve ser julgada a excepção peremptória invocada, vista a renúncia expressa e relevante de quaisquer créditos sobre a Ré por parte do A.
Prejudicado fica o conhecimento do recurso final.
IV - DECISÃO
Pelas apontadas razões, nos termos e fundamentos expostos, acordam em conceder provimento ao recurso interlocutório interposto, revogando em conformidade o decidido, julgando procedente a excepção relativa à renúncia dos créditos reclamados nos autos por parte da A., e, em consequência absolvem a Ré, STDM, dos pedidos formulados na acção pela trabalhadora A.
Fica prejudicado o conhecimento do recurso da decisão final.
Custas do recurso pela recorrida (sem custas o recurso final por dele se não conhecer).
Macau, 11 de Setembro de 2014,
João A. G. Gil de Oliveira
Ho Wai Neng
José Cândido de Pinho
    
1 - Monteiro Fernandes, Direito do Trabalho, Almedina, 11.ª edição, pág. 118.
2 - Menezes Cordeiro, Direito do Trabalho, pág. 219.
3 - Acs. STJ de 20/11/03, proc. 01S4270, de 12/12/01, proc. 01S2271, de 9/10/02, proc. 3661/02
4 - A. Varela, Das obrigações em geral, Coimbra Editora, 2.ª ed., vol. II, pag. 203
5 - A. Varela - Ob. cit., pág. 204
6 - Professor Vaz Serra, BMJ 43, 57.
7 - A Protecção do Salário, pag. 225, separata do volume XXXIX do Suplemento ao Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra
8 - Acs do TUI46/07, de 27/2/08; 14/08, de 11/6/08; 17/08, de 11/6/08; TSI, proc. 294/07, de 19/7, entre muitos outros
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