打印全文
Processo n.º 103/2014. Recurso jurisdicional em matéria administrativa.
Recorrente: A.
Recorrido: Secretário para a Economia e Finanças.
Assunto: Fixação de residência em Macau. Fortes indícios da prática de crime. Poderes discricionários. Artigos 9.º, n.º 2, alínea 1) e 4.º, n.º 2, alínea 3) da Lei n.º 4/2003.
Data da Sessão: 15 de Outubro de 2014.
Juízes: Viriato Manuel Pinheiro de Lima (Relator), Song Man Lei e Sam Hou Fai.
SUMÁRIO:
I – Os n. os 1 e 2, alínea 1) do artigo 9.º da Lei n.º 4/2003, quando referem que para efeitos de concessão de autorização de residência na RAEM, deve atender-se, nomeadamente, aos “Antecedentes criminais, comprovado incumprimento das leis da RAEM ou qualquer das circunstâncias referidas no artigo 4.º da presente lei”, confere verdadeiros poderes discricionários à Administração.
II – Não viola o princípio in dubio pro reo a decisão da Administração de indeferir pedido de fixação de residência por haver fortes indícios da prática de crime, sem haver qualquer condenação judicial, com fundamento no disposto nos artigos 9.º, n.º 2, alínea 1) e 4.º, n.º 2, alínea 3) da Lei n.º 4/2003.
O Relator,
Viriato Manuel Pinheiro de Lima

ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU:

I – Relatório
A (doravante designado por recorrente) interpôs recurso contencioso de anulação do despacho do Secretário para a Economia e Finanças, de 17 de Julho de 2012, que indeferiu o pedido de residência temporária para si e agregado familiar constituído por cônjuge e filha.
Por acórdão de 22 de Maio de 2014, o Tribunal de Segunda Instância (TSI) negou provimento ao recurso.
Inconformado, interpõe o mesmo A recurso jurisdicional para o Tribunal de Última Instância (TUI), sustentando que:
- O acto recorrido e o acórdão recorrido violaram o princípio in dubio pro reo;
- O acórdão recorrido é nulo por falta de especificação de fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão.
O Ex.mo Procurador-Adjunto emitiu douto parecer em que se pronuncia pela improcedência do recurso.

II - Os Factos
Resulta dos autos o seguinte:
  O recorrente A é residente do interior da China e formulou o pedido de autorização de residência temporária em 7 de Novembro de 2007 com o fundamento de aquisição de bem imóvel.
  O recorrente também requereu que o pedido acima referido fosse estendido aos dois membros do seu agregado familiar, ou seja, o cônjuge B e a descendente C.
  Para a tramitação do pedido acima referido, o recorrente submeteu junto da autoridade a carta de curso de Direito do Instituto de Administração de Jovem de Beijing entre 1999 e 2002 que ele obteve em 2002. No entanto, após a investigação, verificou-se que tal carta de curso não consta da série da educação nacional.
  Comunicada a situação acima referida ao recorrente, ele exigiu a tramitação do pedido de autorização de residência com as habilitações literárias do ensino secundário-complementar e, consequentemente, submeteu em 28 de Julho de 2008 uma escritura pública emitida pelo serviço notarial de Panyu da Cidade de Guangzhou da Província de Guangdong da RPC, para comprovar que ele frequentava a Escola Especializada Secundária dos Trabalhadores da Cidade de Heze e possui habilitações literárias da técnica de comunicação, que equivalem ao ensino secundário-complementar.
  A fim de comprovar a autenticidade das habilitações literárias acima referidas, o recorrente submeteu em 25 de Novembro de 2009, a pedido do IPIM, uma autenticação da certidão de habilitações literárias n.º [2009]XXXXX emitida pelo Departamento da Educação da Província de Shandong em 15 de Outubro de 2009. Nesse documento encontra-se aposto o “carimbo da autenticação das habilitações literárias do graduado da Escola Especializada Secundária e do Ensino Superior do Departamento da Educação da Província de Shandong”.
  Segundo os dados, o recorrente é de Panyu da Província de Guangdong mas frequentava escola na Província de Shandong, sendo o certificado das suas habilitações literárias e os respectivos documentos comprovativos todos documentos notariais não locais.
  Em 5 de Fevereiro de 2010, o IPIM verificou a autenticidade do documento em causa através da Divisão da Educação Básica do Departamento da Educação da Província de Shandong, que respondeu via e-mail em 21 de Fevereiro de 2010, confirmando que a autenticação da certidão de habilitações literárias n.º [2009]XXXXX é falsificada, que o Departamento da Educação não tem o chamado “carimbo da autenticação das habilitações literárias do graduado da Escola Especializada Secundária e do Ensino Superior do Departamento da Educação da Província de Shandong”, e que o número de telefone encontrado no documento falso não pertence ao Departamento.
  Em 8 de Novembro de 2011, o IPIM recebeu uma carta escrita enviada pelo Departamento da Educação da Província de Shandong em 28 de Outubro de 2011. Nessa carta o Departamento de Shandong confirmou que a autenticação da certidão de habilitações literárias n.º [2009]XXXXX é falsificada, que o Departamento da Educação não tem o chamado “carimbo da autenticação das habilitações literárias do graduado da Escola Especializada Secundária e do Ensino Superior do Departamento da Educação da Província de Shandong”, e que o número de telefone encontrado no documento falso não pertence ao Departamento.
  Face à situação acima referida, o IPIM realizou oportunamente a audiência do recorrente. Este alegou que nada sabia da falsidade da autenticação da certidão de habilitações literárias n.º [2009]XXXXX, que encarregou outrem do tratamento do respectivo documento, e que ao saber da sua falsidade, participou o facto junto do órgão de segurança pública no interior da China para a efectivação da responsabilidade do comissário. O recorrente também entendeu que a sua prática pessoal não constitui o crime de uso de atestado falso e o crime de falsificação de documento.
  O mesmo mais entendeu que a vítima do presente caso é ele próprio.
  Em 18 de Junho de 2012, o técnico superior da IPIM elaborou o parecer n.º XXXX/Residência/2007.
  Sobre o parecer acima referido, o presidente do IPIM emitiu em 26 de Junho de 2012 o seu parecer, cujo teor é o seguinte:
  “Após a análise feita no presente parecer, verificou-se que o requerente é suspeito de ter apresentado documento comprovativo de habilitações literárias não verdadeiro, pelo que há fortes indícios de o mesmo ser suspeito de ter infringido a lei penal e pôr em perigo a segurança de Macau. Nestes termos, sugeriu-se o indeferimento do pedido de autorização de residência temporária dos seguintes interessados e a efectivação da responsabilidade jurídica das respectivas pessoas de acordo com a lei. Venho agora propor o indeferimento do respectivo pedido e a efectivação da responsabilidade jurídica das respectivas pessoas de acordo com a lei.
1. A – requerente
2. B – cônjuge
3. C – descendente
  Submeto à vossa apreciação.”
  Em 17 de Julho de 2012, veio o Secretário para a Economia e Finanças proferir, no acima referido parecer n.º XXXX/Residência/2007, o despacho a seguir exposto:
  “Aprovo a proposta.”
É este o acto recorrido.


III – O Direito
1. As questões a apreciar
São as seguintes as questões essenciais a decidir.
Em primeiro lugar importa averiguar se o acto recorrido e o acórdão recorrido violaram o princípio in dubio pro reo.
Em segundo lugar, há que apurar se o acórdão recorrido é nulo por falta de especificação de fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão.

2. Fortes indícios de prática de crime. Princípio in dubio pro reo.

O recorrente requereu a fixação de residência em Macau em 2007, com fundamento em aquisição de imóvel, antes da entrada em vigor do Regulamento Administrativo n.º 7/2007, que suspendeu a eficácia dos artigos 1.º, alínea 4) e 3.º do Regulamento Administrativo n.º 3/2005, pelo que ao seu pedido não se aplica a mencionada suspensão.
O pedido do recorrente foi indeferido, nos termos dos artigos 9.º, n.º 2, alínea 1) e 4.º, n.º 2, alínea 3) da Lei n.º 4/2003, por ter apresentado documento de habilitações literárias falso, havendo assim fortes indícios de ter infringido a lei penal.
Dispõem os artigos 9.º e 4.º da Lei n.º 4/2003:
“Artigo 9.º
Autorização
1. O Chefe do Executivo pode conceder autorização de residência na RAEM.
2. Para efeitos de concessão da autorização referida no número anterior deve atender-se, nomeadamente, aos seguintes aspectos:
1) Antecedentes criminais, comprovado incumprimento das leis da RAEM ou qualquer das circunstâncias referidas no artigo 4.º da presente lei;
2) Meios de subsistência de que o interessado dispõe;
3) Finalidades pretendidas com a residência na RAEM e respectiva viabilidade;
4) Actividade que o interessado exerce ou se propõe exercer na RAEM;
5) Laços familiares do interessado com residentes da RAEM;
6) Razões humanitárias, nomeadamente a falta de condições de vida ou de apoio familiar em outro país ou território.
3. A residência habitual do interessado na RAEM é condição da manutenção da autorização de residência”.

“Artigo 4.º
Recusa de entrada
1. É recusada a entrada dos não-residentes na RAEM em virtude de:
1) Terem sido expulsos, nos termos legais;
2) A sua entrada, permanência ou trânsito estar proibida por virtude de instrumento de direito internacional aplicável na RAEM;
3) Estarem interditos de entrar na RAEM, nos termos legais.
2. Pode ser recusada a entrada dos não-residentes na RAEM em virtude de:
1) Tentarem iludir as disposições sobre a permanência e a residência, mediante entradas e saídas da RAEM próximas entre si e não adequadamente justificadas;
2) Terem sido condenados em pena privativa de liberdade, na RAEM ou no exterior;
3) Existirem fortes indícios de terem praticado ou de se prepararem para a prática de quaisquer crimes;
4) Não se encontrar garantido o seu regresso à proveniência, existirem fundadas dúvidas sobre a autenticidade do seu documento de viagem ou não possuírem os meios de subsistência adequados ao período de permanência pretendido ou o título de transporte necessário ao seu regresso.
3. A competência para a recusa de entrada é do Chefe do Executivo, sendo delegável”.

Entendeu a entidade recorrida que havia fortes indícios de o recorrente ter apresentado documento falso, praticando assim o crime correspondente.
No nosso Acórdão de 9 de Julho de 2014, no Processo n.º 29/2014, decidimos que:
Os n. os 1 e 2, alínea 1) do artigo 9.º da Lei n.º 4/2003, quando referem que para efeitos de concessão de autorização de residência na RAEM, deve atender-se, nomeadamente, aos “Antecedentes criminais, comprovado incumprimento das leis da RAEM ou qualquer das circunstâncias referidas no artigo 4.º da presente lei”, confere verdadeiros poderes discricionários à Administração.
E, a propósito do exercício de poderes discricionários na renovação de autorização de residência temporária, com fundamento em antecedentes criminais do interessado, dissemos o seguinte no Acórdão de 11 de Maio de 2011, no Processo n.º 12/2011:
A lei não especifica de que antecedentes criminais se trata, de qual a sua gravidade, qual o número de infracções cometidas>.
Esta jurisprudência é de manter.
A tese do recorrente é a de que foi violado o princípio in dubio pro reo, já que o recorrente não foi judicialmente condenado.
Sem razão.
A lei estatui que obsta à concessão de residência em Macau, a condenação judicial em pena privativa de liberdade [artigos 9.º, n.º 2, alínea 1) e 4.º, n.º 2, alínea 2) da Lei n.º 4/2003]. Mas não foi com base nesta circunstância que o recorrente viu indeferido o seu pedido de residência. Foi antes por haver fortes indícios de ter praticado crime [artigos 9.º, n.º 2, alínea 1) e 4.º, n.º 2, alínea 3) da Lei n.º 4/2003].
Pela comparação das duas estatuições logo se vê que aquela que serviu de fundamento ao indeferimento do requerimento não requer condenação judicial. Esta é a mencionada na alínea 2); a do recorrente na alínea 3), ambas do artigo 4.º, n.º 2, da Lei n.º 4/2003.
Deste modo, carece de fundamento a invocação de violação do princípio in dubio pro reo.
A existência de fortes indícios de o recorrente ter praticado crime insere-se nos poderes discricionários da Administração, não sindicável pelos tribunais, salvo havendo erro manifesto ou grosseiro, que não se vislumbra. A tese do recorrente, que não sabia que o documento que apresentou à Administração para comprovar as habilitações era falso, é manifestamente inverosímil.
Também não se vê que tenha sido violado o princípio da proporcionalidade, aliás não invocado no recurso contencioso.
O recorrente apresenta como argumento adicional para a sua tese, o de que o serviço administrativo em causa não tem conhecimentos de Direito Penal para afirmar haver fortes indícios de o recorrente ter praticado crime.
Mas não é este o lugar próprio para examinar os dirigentes ou técnicos do serviço em causa nas matérias jurídicas em questão …
Improcede o vício suscitado.

3. Nulidade de acórdão. Falta de fundamentação de facto e direito
Alega o recorrente que o acórdão recorrido é nulo por falta de especificação de fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão.
Como é sabido, este fundamento de nulidade das sentenças só opera quando há omissão total de fundamentação.
Não é o caso. O acórdão recorrido detalhou os factos que considerou provados e arrolou fundamentação jurídica suficiente para explicar a razão por que decidiu como o fez.
Improcede o mencionado fundamento.

IV – Decisão
Face ao expendido, negam provimento ao recurso.
Custas pelo recorrente, com taxa de justiça de 6 UC.
Macau, 15 de Outubro de 2014.

Juízes: Viriato Manuel Pinheiro de Lima (Relator) – Song Man Lei – Sam Hou Fai


O Magistrado do Ministério Público
presente na conferência: Vítor Manuel Carvalho Coelho




1
Processo n.º 103/2014

12
Processo n.º 103/2014