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Processo nº 726/2013
(Autos de recurso civil)

Data: 9/Outubro/2014

Assuntos: Presunção derivada do registo
Acção especial de fixação de prazo

SUMÁRIO
- Presume-se verdadeiro o facto relativo à dissolução e extinção pelo encerramento da liquidação, por se encontrar comprovado pelo registo comercial, e se o recorrente pretende pôr em causa a sua veracidade, terá que ilidir a tal presunção, deduzindo em processo próprio pedido de declaração de invalidade do acto e, simultaneamente, pedido de cancelamento do respectivo registo.
- Para proteger os terceiros de boa fé, não basta dizer, para afastar a presunção dos elementos constantes do registo comercial, que comprovado está um facto juridicamente relevante em processo penal, sem que esses elementos tenham sido apreciados no próprio processo judicial.
- Em bom rigor, a comprovação pelo registo da dissolução e extinção pelo encerramento da liquidação implica necessariamente que as contas finais já foram aprovadas e que os documentos encontravam-se depositados na competente Conservatória (cfr. artigos 323º e 324º do Código Comercial).
- Nesta conformidade, andou bem o Tribunal a quo ao indeferir liminarmente a petição inicial em que se pede a fixação de prazo para apresentação das contas anuais e o relatório da administração, por falta de interesse processual.
       
O Relator,

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Tong Hio Fong

Processo nº 726/2013
(Autos de recurso civil)

Data: 9/Outubro/2014

Recorrente:
- A


Acordam os Juízes do Tribunal de Segunda Instância da RAEM:

I) RELATÓRIO
A intentou uma acção especial de fixação de prazo contra o Réu C junto do Tribunal Judicial de Base da RAEM, pedindo que seja fixado ao Réu um prazo de 30 dias para apresentar a conta e o relatório do exercício de 2010 da sociedade comercial “Companhia de Construção B (Macau), Limitada”, registada na Conservatória dos Registos Comercial e de Bens Móveis sob o nº XXX75 (SO).
Em sede de despacho liminar, o Juiz a quo indeferiu liminarmente a petição inicial, por falta de interesse processual.
Inconformado com a decisão, dela recorreu o Autor jurisdicionalmente para este TSI, em cujas alegações formulou as seguintes conclusões:
1. O presente recurso tem por objecto o despacho judicial de 14/06/2013 que indeferiu liminarmente a petição inicial, por falta de interesse processual.
2. Entende o despacho recorrido que, ao abrigo do disposto no artigo 324º do Código Comercial, e artigo 8º do Código do Registo Comercial, o registo da deliberação de encerramento da liquidação deve ser acompanhado dos documentos aí referidos e que o registo definitivo constitui presunção de que existe a situação jurídica, nos precisos termos em que é definida.
3. Não obstante, o recorrente logrou trazer aos autos documento autêntico comparativo de que, precisamente, a acta de reunião alegadamente ocorrida em 25/08/2010 e a assinatura aí aposta e que serviu de acervo documental para a instrução do pedido de registo de encerramento da sociedade foram falsificados pelo réu C, tendo este sido condenado criminalmente pelo cometimento do crime de falsificação desse documento no processo criminal CR4-12-0294-PCS que correu termos pelo TJB.
4. Assim, não é lícito que se afaste um facto juridicamente relevante e comprovado em processo criminal com a mera invocação de uma presunção ilidível constante de uma norma de direito registral – o artigo 8º do CRC, pois, caso contrário, estaríamos a fazer tábua rasa da validade de uma condenação criminal e a violar o princípio de unidade do sistema jurídico consagrado no n.º 1 do artigo 8º do Código Civil.
5. Correctamente interpretando e aplicando as normas legais em causa invocadas no despacho recorrido, e conjugado com o n.º 1 do artigo 8º do Código Civil, deveria a acção de fixação de prazo ter sido admitida e ordenada a citação do réu bem como o prosseguimento dos ulteriores trâmites legais. Decidindo diversamente, a interpretação legal que se fez no despacho recorrido violou a lei, precisamente, as normas que invocou e constante do artigo 324º do Código Comercial, e artigo 8º do Código de Registo Comercial, e o n.º 1 do artigo 8º do Código Civil.
Conclui, pedindo que seja concedido provimento ao recurso, revogando-se o despacho recorrido, e em consequência, proferindo-se despacho de citação do Réu.
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Citado o Réu para os termos do recurso, apresentou resposta, pugnando pela negação de provimento ao recurso.
Cumpre decidir.
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II) FUNDAMENTOS
Está em causa a seguinte decisão da primeira instância:
“Nos presentes autos, vem o autor propor uma acção destinada à prestação de conta pelo réu, administrador da “Companhia de Construção B (Macau), Limitada.”
Para fundamentar a sua pretensão, o autor alegou que o réu nunca organizou as contas anuais da sociedade nem elaborou os relatórios respeitantes a cada exercício, nem os submeteu à apreciação dos sócios.
Dizendo que a sociedade em causa já foi dissolvida por decisão dos sócios em reunião e acta ocorrida em 25 de Agosto de 2010.
E que por sentença proferida no processo comum singular n.º CR4-12-0294-PCS, o réu foi condenado pela prática dum crime de falsificação de documento, que tem por objecto a acta de reunião e da assinatura do autor.
A presente acção trata-se dum processo especial previsto no Código Comercial respeitante ao exercício do direito dos sócios.
Dispõe-se o n.º 1 do art.º 259º do Código Comercial o seguinte:
“Se as contas anuais e o relatório da administração não forem apresentados aos sócios até três meses após o termo do exercício a que respeitem, pode qualquer sócio requerer ao tribunal a fixação de um prazo, não superior a 60 dias, para a sua apresentação.”
Porém, entende-se que a acção movida pelo autor não pode proceder por seguinte razão:
Segundo o n.º de registo AP/X7/0XXXXX10 na Conservatória dos Registos Comercial e de Bens Móveis, a Companhia de Construção B (Macau), Limitada, encontra-se cancelada por dissolução e extinção pelo encerramento de liquidação.
De acordo com o disposto do art.º 322º, n.º 1 do Código Comercial, “Além das contas, que no fim de cada exercício devem apresentar aos sócios sobre a situação patrimonial da sociedade e o andamento da liquidação, os liquidatários devem apresentar contas finais ou de encerramento, acompanhadas de relatório completo sobre a liquidação, e uma proposta de partilha do activo restante.”
Por outro lado, diz o art.º 324º do Código Comercial que o registo da deliberação de encerramento da liquidação deve ser acompanhado dos documentos acima referidos.
Ou seja, o registo de encerramento da sociedade pressupõe que já foram apresentadas contas do exercício e das contas finais aos sócios.
De acordo com o disposto do art.º 8º do C.R.C., “O registo definitivo constitui presunção de que existe a situação jurídica, nos precisos termos em que é definida.”
A mera invocação da existência de sentença criminal contra o réu pela prática dum crime de falsificação de documento não serve para alterar o efeito do registo comercial.
Pois, dispõe-se o art.º 11º do C.R.C. que os factos comprovados pelo registo não podem ser impugnados em tribunal sem que simultaneamente seja pedido o seu cancelamento.
Assim, de acordo com o registo comercial, a sociedade em causa foi declarada extinta por dissolução e liquidação, já não justifica o sócio vir pedir a apresentação de contas do exercício por a sociedade já deixar de exercer nem dos contas finais, por com o registo de encerramento, presume que já fossem apresentadas e aprovadas as contas finais.
Portanto, antes de cancelamento do registo em causa, a sociedade é considerada liquidada em conformidade com o disposto do Código Comercial, assim, deixando de ter qualquer interesse a exigência do administrador a apresentação das contas.
Nestes termos e ao abrigo do disposto do art.º 394º, n.º 1, alínea c) e do n.º 2 do C.P.C.M., indefiro liminarmente a petição inicial, por manifesta falta de interesse processual.”
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Prevê-se no artigo 589º, nº 3 do Código de Processo Civil de Macau que “nas conclusões da alegação, pode o recorrente restringir, expressa ou tacitamente, o objecto inicial do recurso”.
Com fundamento nesta norma tem-se entendido que se o recorrente não leva às conclusões da alegação uma questão que tenha versado na alegação, o tribunal de recurso não deve conhecer da mesma, por se entender que o recorrente restringiu tacitamente o objecto do recurso.1
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Alega o recorrente que sendo ele sócio da sociedade em causa e o Réu o seu sócio e administrador, este último nunca organizou as contas anuais da sociedade nem elaborou os relatórios respeitantes a cada exercício, nem os submeteu à apreciação dos sócios, acrescentando ainda que o Réu foi condenado na prática de um crime de falsificação de documento, por ter forjado a acta de reunião e a assinatura do recorrente, pelo que vem agora pedir ao tribunal que se fixe prazo ao Réu para apresentar a conta e o relatório do exercício de 2010.
Entretanto, pelo Tribunal a quo foi liminarmente indeferida a petição inicial, com fundamento na falta de interesse processual, por que entende que, antes do cancelamento do registo do facto relativo à dissolução e extinção da sociedade, presume-se que a sociedade já se encontrava liquidada e que as contas do exercício e finais foram apresentadas aos seus sócios, daí que não se justificaria o sócio ora recorrente vir a pedir que o Réu apresente as contas do exercício.
Quid iuris?
Face aos elementos constantes do próprio registo comercial, é de verificar que a sociedade em causa já se encontra dissolvida e extinta pelo encerramento da liquidação.
Não obstante que, conforme o alegado pelo recorrente, o administrador da sociedade ora Réu foi condenado pela prática de um crime de uso de documento falso (e não pelo crime de falsificação de documento como se alega na petição inicial), por ter ordenado a um seu empregado para assinar, em nome mas sem conhecimento e consentimento do recorrente, uma acta de reunião e com base na qual se efectuou o registo de dissolução da sociedade, mas não podemos esquecer que os factos compreendidos no registo definitivo consideram-se provados nos termos nele definidos.
É o que se dispõe no artigo 8º do Código do Registo Comercial:
“O registo definitivo constitui presunção de que existe a situação jurídica, nos precisos termos em que é definida.”
Sendo assim, presume-se verdadeiro o facto relativo à dissolução e extinção pelo encerramento da liquidação, por se encontrar comprovado pelo próprio registo comercial, e se o recorrente pretende pôr em causa a sua veracidade, terá que ilidir a tal presunção, deduzindo, em processo autónomo, pedido de declaração de nulidade ou anulação do acto e, simultaneamente, pedido de cancelamento do respectivo registo.
Por outro lado, pode-se colocar a questão de saber se é aplicável o nº 2 do artigo 11º do mesmo Código, no qual se prevê que não têm seguimento, após os articulados, as acções em que não seja formulado o pedido de cancelamento do respectivo registo, mais precisamente, em vez de indeferir liminar o requerimento inicial, saber se é viável suspender a instância até que seja formulado o pedido de cancelamento do registo.
Salvo o devido respeito por melhor entendimento, julgamos que a referida norma não se aplica ao vertente caso, uma vez que o recorrente para além de não ter formulado o pedido de cancelamento do registo, nem logrou formular no seu requerimento inicial qualquer pedido de declaração de nulidade ou anulação do acto de dissolução e extinção da sociedade, do qual aquele seja dependente.
Mas mesmo que o recorrente tivesse logrado formular nos autos o tal pedido de declaração de nulidade ou anulação do acto, e o respectivo pedido de cancelamento do registo, ainda assim a acção não deixaria de improceder na mesma.
E a razão de improcedência resulta do disposto no nº 2 do artigo 65º, aplicável por remissão do preceituado no nº 1 do artigo 391º, ambos do Código de Processo Civil, na medida em que o pedido de declaração de nulidade ou anulação do acto de dissolução e extinção da sociedade corresponde forma de processo ordinária, enquanto o pedido de fixação de prazo processado nos presentes autos corresponde forma de processo especial que segue uma tramitação manifesta e completamente incompatível com aquela.
Por outro lado, não se diga que a decisão recorrida tentaria impor uma norma de direito registral sobre a validade de um facto juridicamente relevante e devidamente comprovado em sede criminal, violando desta forma o princípio de unidade do sistema jurídico consagrado no nº 1 do artigo 8º do Código Civil.
Na realidade, a presunção da fé pública registral, traduzida em termos de que determinada situação jurídica pode ser presumida nos precisos termos em que é patenteada pelo registo, tem por objectivo proteger os terceiros de boa fé.
Sendo assim, não basta dizer, para afastar a presunção dos elementos constantes do registo comercial, que comprovado está um facto juridicamente relevante em processo penal, sem que esses elementos tenham sido devidamente apreciados em processo judicial.
Finalmente, quanto à alegada violação do disposto no nº 1 do artigo 8º do Código Civil, somos da opinião de que a referida norma manda seguir apenas um conjunto de princípios relacionados com a interpretação da lei, mas com o devido respeito, julgamos que não está em causa no vertente caso o problema de interpretação.
Em bom rigor, a comprovação pelo registo da dissolução e extinção pelo encerramento da liquidação implica que as contas finais já foram aprovadas e que os documentos encontravam-se depositados na competente Conservatória (cfr. artigos 323º e 324º do Código Comercial).
Para ilidir a tal presunção, o recorrente terá que deduzir, em processo autónomo, pedido de declaração de nulidade ou anulação do acto e, simultaneamente, pedido de cancelamento do respectivo registo.
Nesta conformidade, e antes de o facto comprovado pelo registo ter sido impugnado em tribunal, somos a entender que andou bem o Tribunal a quo ao indeferir liminarmente o requerimento inicial em que se pede a fixação de prazo para apresentação das contas anuais e o relatório da administração, por falta de interesse processual.
***
III) DECISÃO
Face ao exposto, acordam em negar provimento ao recurso interposto pelo Autor ora recorrente A, confirmando a decisão recorrida.
Custas pelo recorrente.
Registe e notifique.
***
Macau, 9 de Outubro de 2014

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Tong Hio Fong
(Relator)

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Lai Kin Hong
(Primeiro Juiz-Adjunto)

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João Augusto Gonçalves Gil de Oliveira
(Segundo Juiz-Adjunto)

1 Viriato Manuel Pinheiro de Lima, in Manual de Direito Processual Civil, CFJJ, 2005, página 663
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